Revista Veja
O enredo de 2023 teve Bolsonaro milionário e acordo de Lula com a direita
No romance da democracia brasileira, o
capítulo 2023 foi um enredo de perdas políticas, com potencial de inibir
mudanças institucionais ainda por um bom tempo.
A derrota eleitoral do extremismo de direita
expôs um talibanismo tropical e carnavalesco, na apropriada definição do
escritor José Eduardo Agualusa, capotado numa tragicômica conspirata para
derrubar o novo governo.
Resignados, alguns desistiram da gritaria tumultuosa por intervenção militar, intercalada por rituais de orações para pneus no meio da rua e de apelo a extraterrestres, com lanternas de celulares acesas sobre a cabeça. Revoltados, outros saíram a depredar as sedes das instituições em Brasília, no domingo 8 de janeiro. O delírio acabou em pesadelo para 1 412 indivíduos presos — três dezenas já condenados a até dezessete anos de cadeia. A democracia só não tem lugar para quem pretenda destruí-la, lembrou o juiz Luís Roberto Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal.
Referência desse movimento subversivo,
Jair Bolsonaro acabou
suspenso de competições eleitorais pelos próximos oito anos. Não poderá se
candidatar até 4 de outubro de 2030. Mas está habilitado para disputar a
presidência na eleição prevista para as 48 horas seguintes.
Neste ano, Bolsonaro perfilou-se num lance
exemplar de esperteza cultivada em décadas de militância no baixo clero do
Congresso: mostrou ser possível desnortear adversários, influenciar eleitores e
ganhar dinheiro com isso.
Um ano atrás, abandonou o poder, enrolou-se
na venda irregular de joias extraídas do acervo público e voltou à cena
inelegível. Recebeu um improvável socorro de Lula e
do Partido dos Trabalhadores, que atravessaram 2023 só falando dele. O excesso
de atenção reverteu-se em propaganda gratuita. Ajudou a reabilitá-lo no próprio
talibã, que vacilava desde sua exibição em aparente fraqueza no bafejo da
derrota nas urnas.
Bolsonaro travestiu-se de vítima e, em
súplica, foi pirangar nas redes sociais. Devotos responderam com generosas
doações para custear-lhe a defesa nos tribunais, embora ele já tivesse o
respaldo do caixa (meio bilhão reais) de dinheiro público manejado por Valdemar
Costa Neto, seu anfitrião no Partido Liberal.
Em dezembro do ano passado, era um presidente
aposentado com patrimônio declarado de 2,3 milhões de reais. Neste Natal,
Bolsonaro é o mais novo político milionário brasileiro, dono 18 milhões de
reais, recebidos via Pix e apostados na ciranda financeira do “sistema” que
costumava criticar.
Enquanto isso, no Palácio do Planalto, Lula
conseguiu garantir estabilidade para governar. Fez acordos de subsistência no
Congresso. Incorporou alguns partidos de centro e de direita ao governo, e
passou a administrar a liberação de verbas orçamentárias para outros, entre
eles, o PL de Costa Neto e Bolsonaro.
Normalizou a coabitação no presidencialismo.
Vista do agrupamento Centrão, funciona assim: enquanto a esquerda estiver no
poder, a direita tem o governo em casa; quando a direita voltar a subir a rampa
do Planalto, o governo continuará em casa.
Por isso, o PT de Lula encerra o ano
criticando o governo do PT de Lula. O partido teme tomar “um tranco da
direita” nas eleições municipais de 2024 e receia ver o Senado em 2026 dominado
por coalizão conservadora. De toda forma, a contestada coabitação permitiu ao
governo aprovar quase tudo o que desejava, incluída a reforma tributária
estancada há três décadas.
O problema de Lula, agora, é com os
eleitores. O Ipec captou evidências de aumento da desconfiança (50% não
confiam, 48% confiam). O descrédito parece ter raízes na incapacidade do
governo em resolver dilemas como o da estagnação da renda nacional, já resumido
pelo poeta Carlos Drummond de Andrade: “Falta renda para distribuir ou falta
descobrir onde a renda se escondeu?”. Daí derivam dificuldades crescentes na
saúde, educação e segurança pública.
A trama ficou mais complexa, também, na
política externa. Ao sul, agora está condicionada pelo fracasso da intervenção
indevida de Lula na eleição da Argentina. Ao norte, flutua no impasse sobre o
apoio aos aliados da cleptocracia da Venezuela, que, ao ameaçar invadir a
Guiana, deram aos Estados Unidos a chance de ampliar a presença militar na
Amazônia.
Vencidas tensões pela sobrevivência (2021) e autodefesa (2022) do regime, termina-se o ano com a busca de um mínimo equilíbrio institucional. Executivo, Legislativo e Judiciário afirmam competências, mas o enredo democrático não está resolvido. Tanto que o Senado julgou necessário criar uma comissão permanente de defesa da democracia. É bom começo para a volta ao futuro.
Publicado em VEJA de 22 de dezembro de
2023, edição nº
2873
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