O Estado de S. Paulo
Em condição histórica marcada pela inovação tecnológica e por abalos que sacodem a organização social, é espantoso que nossos políticos ainda atuem com os olhos para trás
Visto pela ótica do mundo, 2023 não foi um
ano de que possamos nos orgulhar. Duas guerras, muito desentendimento, pressões
por toda parte, poucos avanços na questão climática, ambientes políticos
desgastados e sistemas democráticos com dificuldades.
No Brasil, 2023 começou carregado de nuvens
golpistas. A bandalheira reacionária do 8 de janeiro mostrou que a extrema
direita permanece viva. Ameaçou nossa frágil democracia, mas não a derrubou. Ao
contrário, possibilitou o esboço de um pacto nacional em sua defesa, envolvendo
governadores estaduais, a Presidência da República e os demais Poderes de
Estado, apoiados pela opinião pública. A tentativa de golpe morreu no berço e
seus protagonistas foram expostos ao ridículo. Prisões ocorreram, houve alguns
ajustes de contas, Lula passou a governar, a vida seguiu em frente.
A vitória de Lula em 2022 e a instalação de seu governo imprimiram outra dinâmica ao País. A nova situação exigiu uma controversa inflexão pragmática do presidente, dadas a fraqueza parlamentar do PT e a inexistência de uma base política consistente para o governo. A consequência foi a ocupação do espaço pelo chamado “centrão”, que se impôs na organização ministerial e condicionou o curso das propostas governamentais. O governo cedeu e terminou por empoderar o Legislativo, especialmente ávido nas questões orçamentárias.
Daí vieram as maiores derrotas de Lula (a
desoneração da folha de pagamentos, a reforma do ensino médio, o marco
temporal, as emendas parlamentares obrigatórias), parcialmente compensadas pela
aprovação da reforma tributária. A composição ministerial também foi impactada.
Ficou torta, com cara de puxadinho e sem comando claro. O PT esperneou, mas
empacou em seus dogmas e peculiaridades, abrindo um flanco incômodo para o
governo.
A politização trouxe para o primeiro plano a
articulação política, que havia sido defenestrada durante os anos Bolsonaro.
Mais negociações, conversas e entendimentos entre partidos e grupos passaram a
tingir a política nacional. Lula gastou o verbo para tanto, com direito a
escorregões verborrágicos improdutivos. Os pequenos interesses (pessoais,
eleitorais, regionais), porém, mantiveram-se ativos, criando a sensação de que
o “novo” Brasil nada mais é do que a reposição do mesmo velho País de sempre.
De certo modo, não saímos muito do lugar.
Boa parte do problema se deveu à irremovível
polarização política e ideológica. O País manteve-se dividido. Pesquisas
mostraram uma sociedade estilhaçada em três pedaços: os que apoiam Lula, os que
ainda se referenciam por Bolsonaro e um último terço de pessoas que estão à
espera de maiores definições.
Polarizações fazem parte da política, não há
por que as estigmatizar. Porém, quando se infiltram como ácido nas relações
pessoais, familiares, profissionais, escolares, quando reduzem tudo a um
combate sem tréguas e sem ponderações reflexivas entre dois campos ideológicos
que se tratam como inimigos, as polarizações são paralisantes. Deformam o
embate político. Impulsionadas por redes e desinformação, envenenam a
sociedade, dificultando a convivência coletiva. Bloqueiam o alcance de
consensos substantivos ou só os permitem à custa de muito suor.
Continuamos, também, a sofrer com o peso do
passado. Caminhamos com bolas de chumbo amarradas às pernas. No plano
econômico, o País até tem conseguido deslanchar, mas no restante avança pouco.
O prolongamento do passado se combina com uma desestruturação social em marcha
acelerada, que vai sendo naturalizada. Padrões tradicionais de fazer política e
governar seguem sendo a fonte de profundas desigualdades, da precariedade dos
serviços públicos e da ignorância generalizada que assola a população. A própria
política estacionou em ponto morto, sem poder produzir sua virtude maior: a
comunicação ágil entre Estado e sociedade, a sinalização clara dos rumos
possíveis, a construção de consensos que ordenem os conflitos e criem vida
coletiva.
Isso aparece na reposição contínua de uma
classe política que não adquire perfil qualificado para interagir com os novos
termos do jogo político, social e econômico. É algo que afeta o centro, a
extrema direita, a esquerda, os diferentes partidos, todos fixados em disputas
eleitorais que pouco interferem na fisionomia da sociedade. Há muita ênfase nos
ganhos econômicos, fiscais e orçamentários, mas pouca atenção aos valores, que
são o que movem as pessoas na vida hipermoderna. Numa condição histórica marcada
pela inovação tecnológica e por abalos que sacodem a organização social, chega
a ser espantoso que nossos políticos continuem a atuar com os olhos para trás,
incapazes de alcançar consensos e formular uma ideia de Nação.
Pode ser que não estejamos à beira do abismo.
O País é diversificado, tem recursos para crescer e alcançar melhores patamares
de igualdade, saúde, educação. 2023 não foi um ano perdido, embora não tenha
recebido o benefício dos deuses. Não custa, por isso, esperar que 2024 nos
traga algum avanço.
*Cientista Político e professor titular de Teoria Política na Unesp.
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