Carta Capital
A liberdade só é possível com igualdade e
respeito ao outro
Como sempre ocorre, a vida correu e Lula completou o
primeiro ano de seu terceiro e difícil mandato. Um economista raiz, assim fala
a molecada, embrenhar-se-ia no matagal de suas sapiências econômicas
para esfregar as árvores de suas certezas e despejar conselhos e
recomendações ao presidente. Vou escapar a tais protagonismos e agradecer
a Lula por sua proeza menos celebrada, mas, em minhas modestas avaliações, a
mais valiosa. A vida política nacional voltou a respirar os ares da tolerância
e da busca da convergência, mesmo entre divergentes que divergem de forma
radical.
Sugeri ao amigo e companheiro Gabriel Galípolo que, diante do catennaccio armado pela defesa dos adversários da civilização e da democracia, nos restam as habilidades do bom driblador. Não sabemos se as manobras do habilidoso vão culminar com a bola na rede. Tomara. No momento, resta-nos, torcedores, agradecer pelo retorno da civilidade no Brasil, mais uma vez espargida para além-fronteiras.
Uma pergunta torna-se, no entanto,
inevitável: estamos nós e Luiz Inácio, o Lula, a sofrer no mundo uma crise
que nega os princípios fundamentais que regem a vida civilizada e democrática?
Se isso for verdade, quanto tempo mais a humanidade suportará tamanha
regressão?
A angústia torna-se ainda maior quando
constatamos que as possibilidades de conforto material para a grande maioria da
população deste planeta são reais. É preciso agradecer ao capitalismo, e ao seu
desatinado desenvolvimento, pela exuberância de riqueza gerada. Ele
proporcionou ao homem o domínio da natureza e uma espantosa capacidade de
produzir em larga escala os bens essenciais para as satisfações das
necessidades humanas imediatas. Diante dessa riqueza, é difícil encontrar
razões para explicar a escassez de comida, de transporte, de saúde, de moradia,
de segurança contra a velhice etc. Numa expressão: escassez de bem-estar.
Um bem-estar que marcou os conhecidos “anos
dourados” do capitalismo. A dolorosa experiência de duas grandes guerras e da
depressão pós-1929 nos ensinou que deveríamos limitar e controlar as livres
forças do mercado. Os grilhões colocados pela sociedade na economia explicam
quase 30 anos de pleno emprego, aumento de salários e lucros e, principalmente,
a consolidação e a expansão do chamado Estado de Bem-Estar Social. Os direitos
garantidos não deveriam ser apenas individuais, mas coletivos. Vale dizer, sociais.
Dessa maneira, ao mesmo tempo que o direito à saúde, à previdência, à
habitação, à assistência, à educação e ao trabalho eram universalizados,
milhares de empregos públicos de médicos, enfermeiras, professores e tantos
outros eram criados.
O Welfare State não pode ser interpretado
como mera reforma do capitalismo, mas como uma grande transformação econômica,
social e política. Ele é, nesse sentido, revolucionário. Não foi um presente de
governos ou empresas, mas a consequência de potentes lutas sociais que
conseguiram negociar a repartição da riqueza. Isso fica sintetizado na
emergência de um Estado que institucionalizou a ética da solidariedade.
O indivíduo cedeu lugar ao cidadão portador de direitos. As gerações que cresceram
sob o manto generoso da proteção social e do pleno emprego acabaram, porém, por
naturalizar tais conquistas. As novas e prósperas classes médias esqueceram que
seus pais e avós lutaram e morreram por isso. Um esquecimento que custa e
custará muito caro às gerações atuais e futuras. Caminhamos para um Estado de
Mal-Estar Social.
No mundo, caminhamos para um Estado de
Mal-Estar Social
Essa regressão social se iniciou quando
começamos a libertar a economia dos limites impostos pela sociedade, já no
início dos anos 70. Sob o ideário liberal dos mercados, em nome da eficiência e
da competição, a ética da solidariedade foi substituída pela ética da
concorrência ou do desempenho. É o seu desempenho individual no mercado que
define a sua posição na sociedade: vencedor ou perdedor. Ainda que a grande
maioria seja perdedora e não concorra em condições de igualdade, não existem
outras classificações possíveis. Não por acaso o principal slogan do movimento
Occupy Wall Street é “somos os 99%”. Não por acaso, grande parte da população
espanhola está indignada.
Como acreditar que precisamos escolher entre
o caos e a austeridade
fiscal dos Estados, se essa austeridade é o próprio caos? Como aceitar
que grande parte da carga tributária seja diretamente direcionada para as mãos
de quem ocupa o trono do 1%, os detentores de carteiras de títulos financeiros?
Por que a posse de tais papéis que representam direitos à apropriação da renda
e da riqueza gerada pela totalidade da sociedade ganham preeminência diante das
necessidades da vida dos cidadãos? Por que os homens do século XXI submetem aos
ditames do ganho financeiro estéril o direito ao conforto, à educação e à
cultura?
As respostas para tais questões não serão
encontradas nos meios de comunicação de massa. Os espaços de informação e de
formação da consciência política e coletiva foram ocupados por aparatos
comprometidos com a força dos mais fortes e controlado pela hegemonia das
banalidades. É mais importante perguntar o que o sujeito comeu no café da manhã
do que promover reflexões sobre os rumos da humanidade.
A civilização precisa ser defendida. As
promessas da modernidade ainda não foram entregues. A autonomia do indivíduo
significa a liberdade de se autorrealizar. Algo impensável para o homem que
precisa preocupar-se cotidianamente com sua sobrevivência física e material.
Isso implica uma selvageria que deveria ficar restrita a uma alcateia de lobos
ferozes. Ao longo dos últimos 200 anos de história do capitalismo, o homem
controlou a natureza e criou um nível de riqueza capaz de garantir a
sobrevivência e o bem-estar de toda a população do planeta. Isso não pode ficar
restrito para uma ínfima parte. Mesmo porque, o bem-estar de um só é possível
quando os demais à sua volta se encontram na mesma situação. Caso contrário, a
reação é inevitável, violenta e incontrolável. A liberdade só é possível com
igualdade e respeito ao outro. É preciso colocar novamente em movimento as
engrenagens da civilização.
*Economista e professor
Publicado na edição n° 1291 de CartaCapital, em 27 de dezembro de 2023.
2 comentários:
Muito bom o artigo.
Como sempre, o grande economista e colunista dá uma aula de Economia e interesse público. Outros economistas preferem defender os interesses dos seus patrões, ou os seus próprios...
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