sábado, 23 de dezembro de 2023

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Benesses a juízes erodem confiança na Justiça

O Globo

Decisão de Toffoli que restabeleceu promoções automáticas revela descompasso com realidade fiscal

Há pouco mais de um ano, o Conselho da Justiça Federal (CJF) aprovou, a pedido da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), o retorno de um benefício salarial extinto para juízes federais que entraram na carreira até 2006, com direito a pagamento retroativo. O Adicional por Tempo de Serviço é um aumento automático de 5% no salário a cada cinco anos, por isso também chamado quinquênio. Os pagamentos foram interrompidos em abril por decisão do Tribunal de Contas da União (TCU), mas a Ajufe recorreu. Nesta semana, em decisão monocrática, o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), restabeleceu a benesse. O custo aos cofres públicos é estimado em R$ 870 milhões apenas em pagamentos retroativos — dinheiro que fará falta neste momento de crise fiscal.

Trata-se de aumento sem relação com mérito, situação inexistente em qualquer carreira fora do serviço público. Mesmo que estivesse condicionado à produtividade, seria injusto, pois os magistrados integram a elite do funcionalismo, e o Judiciário brasileiro é o mais caro do mundo (custa 1,3% do PIB). A iniciativa para restaurar o quinquênio pela via judicial surgiu diante das tentativas malsucedidas de aprovar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) com tal fim. Nem a PEC do Quinquênio, nem a via judicial que o restabeleceu têm o menor cabimento, por mais que seus defensores sejam capazes de apontar filigranas jurídicas para justificá-lo.

Nada disso surpreende. Inúmeros artifícios têm sido usados para inflar o salário dos magistrados. Mascarar aumentos como “verbas indenizatórias” tornou-se corriqueiro. Em 2022, 94,8% dos juízes receberam mais que o teto constitucional (R$ 41.650,92, o salário dos ministros do Supremo). Entre janeiro de 2021 e outubro de 2023, o pagamento de “indenizações retroativas” somou R$ 3,4 bilhões, beneficiando mais de 19 mil juízes, revelou reportagem do GLOBO. Desses, 446 receberam mais de R$ 1 milhão. Nem o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sabe detalhar todas as “indenizações”. A reportagem mapeou decisões tomadas em causa própria pelo CNJ e por outros conselhos criados para exercer controle sobre o Judiciário.

Em abril, o CNJ estendeu o direito a auxílio-creche a todos os juízes. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais determinou o pagamento de R$ 950, quantia superior ao valor mínimo do Bolsa Família. Não satisfeito, tornou o “direito” retroativo aos últimos cinco anos. Valores devidos de auxílio-alimentação foram recalculados depois de decisão do STF. Com aval dos conselhos, os pagamentos foram feitos. Em outubro, uma decisão do CNJ abriu brecha para que os magistrados reivindiquem benesses comparáveis às que procuradores obtiveram no início do ano.

Pesquisas mostram que os juízes creem receber menos que merecem, mas, assim como os procuradores, estão no percentil de maior renda da população. E, diferentemente da maioria das categorias, muitos podem tomar decisões para engordar o contracheque de seus pares. Além do efeito negativo nos cofres públicos, tais decisões provocam erosão na credibilidade da Justiça. Para tentar restabelecê-la, cabe às instituições competentes revogar aquelas que contribuem para burlar o teto constitucional. O plenário do STF também deveria anular a decisão de Toffoli sobre o quinquênio. Não resolveria todas as distorções, mas seria um bom começo.

Má qualidade de rodovias traz riscos para as viagens de fim de ano

O Globo

Pesquisa da CNT constatou que mais de dois terços das estradas têm qualidade regular, ruim ou péssima

Nos anos de desenvolvimento que sucederam à Segunda Guerra, com destaque para a gestão Juscelino Kubitschek (1956-61), o Brasil fez a opção pelo transporte rodoviário em detrimento do ferroviário. Hoje, passados 70 anos, o país deveria ter uma malha impecável de rodovias. Não é o que acontece. Até hoje o brasileiro carece de um padrão aceitável de estrada, revelou levantamento recente da Confederação Nacional do Transporte (CNT). Depois de percorridos 11.502 quilômetros, a pesquisa concluiu que 67,5% das vias pavimentadas têm qualidade regular, ruim ou péssima.

O ranking das melhores e piores rodovias expõe os desníveis conhecidos entre as regiões. E deixa claríssimo que um dos maiores equívocos de governos estaduais e do governo federal é deixar de fazer concessões à iniciativa privada para administrar estradas. Não é coincidência que as dez piores rodovias estejam distribuídas entre Norte e Nordeste (Norte com sete e Nordeste com três). A pior de todas, a AM-010, liga Manaus a Itacoatiara, no Amazonas. Também não é acaso que todas sejam públicas — oito estaduais e duas federais.

Não causa surpresa, tampouco, a relação das dez melhores rodovias. Sete, todas no Sudeste, são estradas com pedágio, gerenciadas por concessionárias, e apenas três são públicas. Duas são estaduais, no interior de São Paulo, o estado mais rico da Federação. Apenas uma, federal, está em Goiás, um dos polos de produção de grãos. A primeira do ranking, a RJ-124, no Rio de Janeiro, conecta Rio Bonito a São Pedro da Aldeia, com pedágio.

A radiografia tem como pano de fundo a péssima qualidade da gestão no setor público. É perniciosa a influência política nas nomeações, e a crise fiscal que acompanha o Estado brasileiro há tempos restringe os recursos necessários aos investimentos em manutenção. Mesmo unidades da Federação com grande receita tributária passam por dificuldades. Salvo um recapeamento de asfalto prometido por um candidato em campanha, não há como os estados e a União darem conta da malha rodoviária. A expansão do agronegócio tem pressionado a infraestrutura de transporte, em particular no Centro-Oeste, Norte e Sudeste, agravando o desgaste das rodovias. Sempre há tempo de corrigir os erros acelerando as concessões, mas paga-se um preço pelo atraso.

A pesquisa da CNT contou 2.648 pontos críticos nas rodovias — queda de barreiras, pontes caídas ou estreitas, buracos etc. No último feriado de fim de ano, caiu o número de acidentes graves e de feridos. Ainda assim, houve 46 mortos e 560 feridos, entre 30 de dezembro de 2022 e 1º de janeiro deste ano. A Polícia Rodoviária Federal tem de no mínimo manter o padrão de fiscalização do ano passado para não permitir que os acidentes aumentem. Se houvesse mais rodovias privadas, seria menor o risco de pegar a estrada nestas festas.

Terapia de choque

Folha de S. Paulo

Por decreto, Milei avança em plano arriscado ao tenta revirar economia argentina

O megapacote econômico recém-lançado por Javier Milei na Argentina suscitou comparações com o brasileiro Plano Collor, de 1990, o que tem sua razão de ser.

Não se promoveu no país vizinho algo como o confisco da caderneta de poupança e dos demais ativos financeiros, mas sim uma revisão tão ampla quanto brusca do arcabouço normativo a reger as relações entre trabalhadores, empresas e Estado —o que também se fez aqui, em diferentes proporções, há mais de três décadas.

Tornou-se comum no final dos anos 1980 a pregação de que o Brasil, em inflação descontrolada e total desordem orçamentária, precisava de um "choque de capitalismo". É o que Milei tenta fazer agora, em circunstância comparável.

Trocando em miúdos, trata-se de remover controles de preços, subsídios, regras trabalhistas, obstáculos a privatizações, proteções comerciais e outros ditames que esfalfam o erário e impedem ajustes no mercado e no setor público.

É tão extenso o rol de medidas baixadas pela Casa Rosada —mais de 300 leis e normas são revogadas ou alteradas— que não se tem avaliação precisa de seu mérito e alcance. Mas pode-se dizer desde já que o meio empregado é controverso.

Optou-se pela edição de um caudaloso Decreto de Necessidade e Urgência, um instrumento do Executivo para situações de emergência, em vez de buscar antes alguma negociação com as forças representadas no Legislativo.

É a estratégia do choque, como Milei já antecipara em seu discurso de posse, com o argumento de que abordagens gradualistas de ajuste têm falhado no país.

O mandatário parece contar que, apesar dos protestos populares reprimidos e das resistências no Parlamento, todos previsíveis, parte considerável do pacote acabará preservada, uma vez que a situação da economia de fato é dramática.

Os riscos são óbvios —e aqui não se fala do exemplo extremo de Fernando Collor, que não concluiu o mandato. Inexiste saída indolor para a Argentina, mas o caminho será mais difícil para um presidente sem apoio do Parlamento e impondo medidas amargas às dezenas.

O país padece com inflação na casa de 160% em 12 meses, governo deficitário e sem crédito, falta de reservas em dólar e recessão. Essa é a herança de um populismo de esquerda que desdenhou dos limites orçamentários.

A sensatez recomenda entendimento político mínimo em torno das medidas mais prementes para o controle dos gastos e da inflação. É justamente nisso, porém, que a Argentina tem falhado há anos.

Cárcere letal

Folha de S. Paulo

Mortes nas prisões, em parte evitáveis, são resultado de superlotação e descaso

O número de mortos em presídios brasileiros expõe a faceta letal do tratamento desumano reiteradamente visto em ambientes de privação de liberdade. Nos últimos dez anos, foram 17 mil óbitos, num país em que a população carcerária alcançou no ano passado a marca preocupante de 832 mil presos, a maior de sua história.

Para obter esse dado, a Folha apresentou 75 pedidos por meio da Lei de Acesso à Informação a órgãos estaduais e federais, referentes ao período de 2013 a 2023.

Parte desse escopo (8.752 casos entre 2018 e 2022) foi analisado pela organização internacional Vital Strategies. A conclusão foi a de que uma parcela considerável de mortes seria evitável se as instituições contassem com serviços de saúde de qualidade. Ademais, tortura, restrição de água e de comida e infraestrutura insalubre são comuns em presídios no país.

Nota-se o alto índice de óbitos causados por doenças infecciosas e parasitárias (12,1%), como tuberculose, pneumonia, HIV, hepatites, Covid e meningite, e por doenças crônicas não transmissíveis (10,5%), como câncer, diabetes, doenças cardiovasculares e renais.

Somadas, as mortes por enfermidades chegam perto da taxa daquelas que tiveram causas externas (25,7%), como homicídio.

Mais de 50% das ocorrências não têm motivação definida, o que revela precariedade nos sistemas de informação e investigação. A falta de recursos para esclarecer os óbitos de pessoas que estão sob a tutela do Estado escancara o descaso oficial com os direitos humanos das pessoas privadas de liberdade.

Enfrentar a questão demanda uma série de estratégias. Em outubro deste ano, Supremo Tribunal Federal formou maioria para determinar que os governos federal e estaduais apresentem planos para lidar com problemas crônicos no cárcere brasileiro.

Não é tema que se resolva com uma penada do Judiciário, mas há caminhos que demandam coragem e persistência na execução.

Reduzir o inchaço das prisões passa por reconhecer que, no Brasil, prende-se muito e mal. Mudar a cultura do Judiciário e debater no Legislativo a revisão de penas, em especial de crimes sem violência e consumo de drogas, ajudariam a enfrentar as causas estruturais da deplorável situação dos presídios, entre elas o superlotamento.

Só quem se beneficia com presos abarrotados em condições de vida degradantes são as facções criminosas, que dominam o sistema penitenciário em quase todos os estados. A população, fora ou dentro dos cárceres, é quem mais perde.

Mais um Orçamento disfuncional

O Estado de S. Paulo

Quando desempenha seu papel com responsabilidade, o Congresso supera expectativas, como se viu na histórica aprovação da reforma tributária. Ocorre o oposto com as emendas

O Congresso aprovou, no último dia de trabalhos legislativos, o Orçamento de 2024. Como já se tornou uma tradição, a proposta que definirá os gastos da União durante o ano todo não foi discutida com o tempo e a profundidade que merecia. O debate público foi dominado por dois assuntos: as emendas parlamentares e o fundo eleitoral.

Para garantir os recursos que consideram necessários para atender a essas demandas, deputados e senadores reduziram em R$ 7 bilhões a verba para obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e os valores reservados para gastos discricionários de vários ministérios, inclusive as pastas de Saúde e Educação. Não foi uma surpresa, mesmo porque boa parte dessa discussão já havia ocorrido na tramitação da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO).

À primeira vista, o Legislativo sai ainda mais fortalecido desse embate. Sem qualquer dificuldade, os parlamentares conseguiram impor sua vontade ao governo. Serão, ao todo, R$ 53 bilhões divididos em emendas individuais, de bancada e de comissão, um valor recorde. Em contrapartida, o governo ainda tem muita dificuldade para aprovar suas propostas no Congresso, embora tenha distribuído cargos e liberado recursos para conquistar novos aliados.

Para deputados e senadores defensores desse modelo, o Orçamento tem direcionado recursos para áreas normalmente esquecidas pelo governo. Se isso fosse verdade, esse modelo deveria resultar na redução das desigualdades sociais e regionais e em um crescimento econômico mais inclusivo. Mas as emendas parlamentares fragmentaram as políticas públicas do Executivo em obras de pequeno porte que só favorecem lideranças políticas já constituídas.

O debate sobre o fundo eleitoral é ainda mais anacrônico. O Congresso aprovou R$ 4,9 bilhões para as eleições municipais, mesmo valor que custeou a campanha para eleição presidencial, dos governadores, deputados federais, senadores e deputados estaduais no ano passado, bem mais que os R$ 939 milhões que o governo havia proposto. Nem mesmo o apelo do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), para atualizar os valores originais apenas pela inflação foi considerado.

Como já dissemos muitas vezes neste espaço, esse modelo se encaminha para um esgotamento. Da forma como o Orçamento tem sido elaborado e discutido, não há qualquer margem para avaliar a manutenção ou a renovação de políticas públicas na saúde, na educação e na segurança pública. Despesas obrigatórias consomem quase 95% dos recursos públicos. O domínio sobre os nacos restantes tem gerado uma disputa ferrenha entre o Executivo e o Legislativo, com resultados bastante questionáveis em termos de entrega à população.

Mais do que o desequilíbrio entre o Legislativo e o Executivo, o Orçamento reflete a disfuncionalidade dos poderes constituídos. Não cabe aos parlamentares avançar sobre o Orçamento a ponto de controlar até mesmo sua execução. Não satisfeitos em tornar obrigatórias as emendas individuais e de bancada, os parlamentares impuseram até mesmo um calendário para o governo empenhá-las. Segundo a LDO, o Executivo terá de reservar valores para pagá-las até julho.

Quando assume suas prerrogativas com responsabilidade, o Congresso supera expectativas. Foi o que se viu na recente e histórica aprovação da reforma tributária. Com muito diálogo, os parlamentares foram capazes de construir um consenso que parecia impossível e de abandonar um sistema tributário arcaico, confuso, regressivo e injusto. É essa, precisamente, a função do Legislativo.

Passou da hora de o Executivo reassumir o protagonismo sobre o Orçamento, mas esse movimento precisa ser feito de forma bastante realista. Será preciso que o governo aceite algumas das contribuições dos deputados e senadores na peça orçamentária, bem como reavalie, com certa dose de autocrítica, a qualidade de suas próprias políticas públicas – de modo a convencer os parlamentares a bancá-las.

Sinuca de bico nos EUA

O Estado de S. Paulo

O teste de estresse de Trump sobre o Estado de Democrático de Direito agora pressiona o Judiciário. Mas, se a Justiça não agir com prudência, será parte do problema, não da solução

É antidemocrático impedir um candidato popular de concorrer às eleições? É democrático permitir que um golpista seja eleito? A resposta à última questão, na democracia americana como nas outras, é “não”. E, se concretamente for essa a situação, é uma das poucas que justificam responder “não” à primeira pergunta.

A tentativa de Donald Trump de obstruir o resultado das eleições de 2020 foi abominável e é uma das muitas razões pelas quais ele não deveria retornar ao poder. Mas o que a opinião pública americana está se perguntando é a quem cabe decidir se ele pode ou não retornar: ao eleitor ou à Justiça?

Segundo a 14.ª Emenda à Constituição, ninguém pode assumir cargos públicos se tiver se envolvido em uma “insurreição”.

A Suprema Corte do Colorado entendeu que Trump fez isso quando seus apoiadores invadiram o Congresso em 6 de Janeiro de 2021, e o desqualificou para concorrer às primárias de 2024 no Estado.

A decisão é controversa. É a primeira vez que o estatuto é invocado, e ele baseou processos em mais 27 Estados. Algumas cortes os rejeitaram. A juíza da primeira instância do Colorado afirmou que Trump se envolveu numa insurreição, mas que não deveria ser barrado, porque os cargos enumerados na 14.ª Emenda não mencionam a “presidência”. Os juízes da Suprema Corte estadual se dividiram: 4 votos contra 3. Um dos divergentes citou que Trump nunca foi condenado por “insurreição”. A Câmara o condenou ao impeachment por insurreição. Mas o Senado o inocentou. Nos quatro indiciamentos criminais federais abertos contra ele por tentativa de subverter as eleições, o procurador não incluiu a acusação de insurreição.

A Suprema Corte já teria de decidir em janeiro se Trump é imune a acusações criminais por eventos ocorridos enquanto presidente. Agora precisará julgar a sentença do Colorado. Se validá-la, precisará apontar se a inelegibilidade vale só para o Estado ou para o país. Mas a maioria dos analistas acredita que a derrubará.

O choque político é imenso. Não por alterar as posições. Ao contrário. Não só os democratas continuarão clamando que estão salvando a democracia de uma ditadura e os republicanos continuarão acusando os democratas de perverter o sistema legal para interferir nas escolhas políticas, como ambos se enrijecerão e se inflamarão.

Para males extremos, a Constituição prevê remédios excepcionais. O golpismo é como um câncer, e a inelegibilidade, como uma quimioterapia: um mal necessário. Mas, se o tumor puder ser curado com terapias menos agressivas ou, pior, se ele não existir, a quimio é só um mal.

A ascensão de Trump foi sintoma de um mal-estar da política americana. No poder, ele se tornou causa de uma deterioração aguda. Em alguma medida, o eleitorado percebeu isso e rejeitou Trump em 2020 (e puniu trumpistas nas eleições legislativas de 2018, 2020 e 2022). Agora, os democratas, muitos juristas e a Justiça do Colorado alegam que o remédio das urnas é insuficiente, e a Constituição exige um mais extremo. Seja qual for a decisão da Suprema Corte, o risco de estresse social é grande.

Após a eleição de Trump, a maioria dos eleitores mostrou nas urnas que o desaprovou. Mas, se a Justiça lhes tirar a opção soberana de rejeitá-lo ou elegêlo sem uma justificativa convincente, é a Justiça que sairá chamuscada. Em tese, os processos judiciais contra Trump fortalecem a Justiça ao mostrar que há limites na democracia e ninguém está acima da lei. Mas, se, na prática, o povo – de quem, no fim, emana todo o poder – entender que a Justiça está interpretando a lei de maneira dura, parcial e extensiva contra um candidato, então o que era para ser um remédio se tornará veneno.

Não que os juízes devam decidir com base nos humores populares. Tal como a Justiça deve ser cega ante quem julga, deve ser surda à gritaria das ruas. Mas não basta que a Justiça seja cega e surda, é preciso parecer. E a melhor maneira de parecer é efetivamente ser. Do contrário, é ela quem será condenada como antidemocrática pelo povo e, por uma ironia trágica, empurrará esse povo para os braços de Donald Trump, inimigo declarado da democracia.

A história de um jabuti

O Estado de S. Paulo

Caso das subvenções de ICMS mostra descuido do Poder Legislativo em temas tributários

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, encerra o ano com uma importante vitória na Câmara e no Senado. Com a aprovação da Medida Provisória (MP) 1.185/2023, que regulamenta as subvenções de ICMS, ele conseguiu aprovar a proposta mais importante de seu pacote de medidas para ampliar a arrecadação da União e reduzir o déficit fiscal.

A medida provisória, que aguarda sanção presidencial, vai impedir que benefícios fiscais concedidos pelos Estados reduzam a base de incidência de tributos federais. Isso se tornou possível a partir da aprovação, em 2017, da Lei Complementar 160, que equiparou as subvenções de custeio às de investimentos.

É importante observar a gênese desse jabuti tributário. Originalmente, a Lei Complementar 160 tinha a intenção de convalidar os incentivos fiscais concedidos pelos Estados por meio do ICMS até 2032. Foi, inclusive, por essa razão que um dos fundos da reforma tributária teve de ser criado. Sem poder acabar com o ICMS antes desse prazo, coube à União aceitar a criação de um fundo e bancar o custo dessas políticas até lá.

As subvenções de ICMS não eram o objeto principal da lei, mas foram incluídas de última hora. Segundo o parecer do relator, o então deputado Alexandre Baldy (PP-GO), teria sido uma sugestão do deputado Luiz Carlos Hauly (Podemos-PR). Como se pode imaginar, não houve, à época, um amplo debate sobre os impactos dessa medida, e os parlamentares nem sequer apresentaram o impacto decorrente da renúncia fiscal.

O trecho foi vetado pelo então presidente Michel Temer. O governo já sabia que a medida causaria distorções tributárias e comprometeria a arrecadação.

Na justificativa do veto, Temer chegou a mencionar que o benefício ao custeio desfiguraria o próprio espírito da lei, que visava a elevar investimentos. O veto, no entanto, foi derrubado pelo Congresso.

Os efeitos desse jabuti ficaram visíveis com o tempo, especialmente neste ano, quando houve um descasamento entre o Produto Interno Bruto (PIB) e a arrecadação. Não é comum que as receitas caiam quando a economia cresce e, ao investigar os motivos, chegou-se às subvenções.

Em abril, ao analisar o tema, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já havia dado ganho de causa à União, mas ainda era preciso regulamentar o tema. A MP foi parcialmente desidratada no Congresso, mas deve garantir R$ 35 bilhões à União em 2024.

Esse caso ganha importância com a promulgação da reforma tributária. Câmara e Senado terão de analisar as leis complementares que se seguirão à proposta. O exemplo das subvenções de ICMS evidencia o peso das decisões dos parlamentares e mostra o quanto eles precisam ter cuidado na análise de propostas que possam corroer a arrecadação ao longo do tempo. O Supremo Tribunal Federal (STF) também terá relevante papel a cumprir quando os questionamentos jurídicos à reforma começarem a chegar à Corte.

Garantir as condições de financiamento do Estado e de suas políticas públicas é, afinal, um processo coletivo permanente e uma responsabilidade que não é apenas do governo, mas que pertence aos Três Poderes.

Vacinação de volta aos trilhos

Correio Braziliense

Depois de sete anos de declínio, a aplicação de oito imunizantes do calendário infantil aumentou no país

O Brasil encerra 2023 com importante reversão de um movimento considerado um dos maiores desafios em saúde pública na atualidade: a queda na cobertura vacinal. Depois de sete anos de declínio, a aplicação de oito imunizantes do calendário infantil aumentou no país. Em 10 meses, proteções contra doenças como poliomielite, sarampo e caxumba superaram todos os registros feitos em 2022. Ao anunciar o balanço preliminar na última terça-feira, a ministra da Saúde, Nísia Trindade, avaliou que o "movimento pela vacinação venceu".

De fato, estratégias como repasse de verbas para ações regionais de estímulo à vacinação, tentando adequar a solução do problema à realidade de cada unidade da Federação e município, e o lançamento do programa interministerial Saúde com Ciência, fortalecendo uma união que precisa ser indissociável, surtiram o efeito esperado antes mesmo de dezembro chegar. Mas, como reconhece a própria gestora da pasta, há muito a se fazer.

A cobertura vacinal da poliomielite, por exemplo, chegou em outubro a 74,6%, ante os 67,1% do ano passado. A meta de proteção estipulada por autoridades de saúde, porém, é de 95% — 20 pontos percentuais a mais do que a realidade brasileira. A doença altamente infecciosa só pode ser prevenida por vacina e é considerada Emergência em Saúde Pública de Importância Internacional, condição definida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e atribuída, recentemente, à covid-19 e à Mpox (varíola dos macacos) — ambas, no momento, fora dessa lista sanitária.

A divulgação de fake news sobre possíveis efeitos das imunizações é outro obstáculo recorrente. Basta considerar a forte estratégia de disseminação de informações falsas assim que o governo anunciou, no início deste mês, o reforço da vacina bivalente contra a covid-19. Uma delas associava a inoculação ao desenvolvimento da "síndrome de imunodeficiência adquirida por vacina" e, segundo monitoramento do governo, alcançou, no mínimo, 3 milhões de pessoas. A Justiça Federal determinou, na semana passada, a remoção das postagens que associavam a vacina à Aids.

É verdade que o reforço da bivalente é indicado para pessoas com mais 60 anos e imunossuprimidos a partir dos 12 anos, mas cabe destacar que o público infantil apresenta os piores índices de cobertura vacinal contra a covid-19 do país. Dos 6 meses aos 2 anos, apenas 5,4% completaram o ciclo. A faixa etária engloba justamente o período em que devem ser feitas as oito imunizações cujo aumento é comemorado agora pelo governo federal: hepatite A, poliomielite, pneumocócica, meningocócica, DTP (difteria, tétano e coqueluche), febre amarela, tríplice viral 1ª dose e 2ª dose.

Adesões tão divergentes em um mesmo público sinalizam uma possível seletividade nos hábitos protetivos e quão complexa é a empreitada para o entendimento da vacinação como uma medida de bem-estar coletivo. Especialistas na área, como o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) no Brasil, sugerem, entre outras medidas, que as vacinas sejam aplicadas nas escolas — uma instituição cujos benefícios também têm sido alvos de ataques nos últimos anos.

A recente guinada na cobertura vacinal no Brasil não implica embarque em caminhos tranquilos. Demanda que a estrutura engessada da máquina pública adote e atualize medidas capazes de ofuscar toda a inventividade desmedida do negacionismo. O país reconhecido internacionalmente pelo programa de imunização em massa volta aos trilhos em prol da saúde coletiva. Sigamos na rota da ciência.

 

 

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