Benesses a juízes erodem confiança na Justiça
O Globo
Decisão de Toffoli que restabeleceu promoções
automáticas revela descompasso com realidade fiscal
Há pouco mais de um ano, o Conselho da Justiça Federal (CJF) aprovou, a pedido da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), o retorno de um benefício salarial extinto para juízes federais que entraram na carreira até 2006, com direito a pagamento retroativo. O Adicional por Tempo de Serviço é um aumento automático de 5% no salário a cada cinco anos, por isso também chamado quinquênio. Os pagamentos foram interrompidos em abril por decisão do Tribunal de Contas da União (TCU), mas a Ajufe recorreu. Nesta semana, em decisão monocrática, o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), restabeleceu a benesse. O custo aos cofres públicos é estimado em R$ 870 milhões apenas em pagamentos retroativos — dinheiro que fará falta neste momento de crise fiscal.
Trata-se de aumento sem relação com mérito,
situação inexistente em qualquer carreira fora do serviço público. Mesmo que
estivesse condicionado à produtividade, seria injusto, pois os magistrados
integram a elite do funcionalismo, e o Judiciário brasileiro é o mais caro do
mundo (custa 1,3% do PIB). A iniciativa para restaurar o quinquênio pela via
judicial surgiu diante das tentativas malsucedidas de aprovar uma Proposta de
Emenda à Constituição (PEC) com tal fim. Nem a PEC do Quinquênio, nem a via judicial
que o restabeleceu têm o menor cabimento, por mais que seus defensores sejam
capazes de apontar filigranas jurídicas para justificá-lo.
Nada disso surpreende. Inúmeros artifícios
têm sido usados para inflar o salário dos magistrados. Mascarar aumentos como
“verbas indenizatórias” tornou-se corriqueiro. Em 2022, 94,8% dos juízes
receberam mais que o teto constitucional (R$ 41.650,92, o salário dos ministros
do Supremo). Entre janeiro de 2021 e outubro de 2023, o pagamento de
“indenizações retroativas” somou R$ 3,4
bilhões, beneficiando mais de 19 mil juízes, revelou reportagem do GLOBO. Desses,
446 receberam mais de R$ 1 milhão. Nem o Conselho Nacional de Justiça (CNJ)
sabe detalhar todas as “indenizações”. A reportagem mapeou decisões tomadas em
causa própria pelo CNJ e por outros conselhos criados para exercer controle
sobre o Judiciário.
Em abril, o CNJ estendeu o direito a
auxílio-creche a todos os juízes. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais
determinou o pagamento de R$ 950, quantia superior ao valor mínimo do Bolsa
Família. Não satisfeito, tornou o “direito” retroativo aos últimos cinco anos.
Valores devidos de auxílio-alimentação foram recalculados depois de decisão do
STF. Com aval dos conselhos, os pagamentos foram feitos. Em outubro, uma
decisão do CNJ abriu brecha para que os magistrados reivindiquem benesses
comparáveis às que procuradores obtiveram no início do ano.
Pesquisas mostram que os juízes creem receber
menos que merecem, mas, assim como os procuradores, estão no percentil de maior
renda da população. E, diferentemente da maioria das categorias, muitos podem
tomar decisões para engordar o contracheque de seus pares. Além do efeito
negativo nos cofres públicos, tais decisões provocam erosão na credibilidade da
Justiça. Para tentar restabelecê-la, cabe às instituições competentes revogar
aquelas que contribuem para burlar o teto constitucional. O plenário do STF também
deveria anular a decisão de Toffoli sobre o quinquênio. Não resolveria todas as
distorções, mas seria um bom começo.
Má qualidade de rodovias traz riscos para as
viagens de fim de ano
O Globo
Pesquisa da CNT constatou que mais de dois
terços das estradas têm qualidade regular, ruim ou péssima
Nos anos de desenvolvimento que sucederam à
Segunda Guerra, com destaque para a gestão Juscelino Kubitschek (1956-61), o
Brasil fez a opção pelo transporte rodoviário em detrimento do ferroviário.
Hoje, passados 70 anos, o país deveria ter uma malha impecável de rodovias. Não
é o que acontece. Até hoje o brasileiro carece de um padrão aceitável de
estrada, revelou levantamento recente da Confederação Nacional do Transporte
(CNT). Depois de percorridos 11.502 quilômetros, a pesquisa concluiu que 67,5%
das vias pavimentadas têm qualidade regular, ruim ou péssima.
O ranking das melhores e piores rodovias
expõe os desníveis conhecidos entre as regiões. E deixa claríssimo que um dos
maiores equívocos de governos estaduais e do governo federal é deixar de fazer
concessões à iniciativa privada para administrar estradas. Não é coincidência
que as dez piores rodovias estejam distribuídas entre Norte e Nordeste (Norte
com sete e Nordeste com três). A pior de todas, a AM-010, liga Manaus a
Itacoatiara, no Amazonas. Também não é acaso que todas sejam públicas — oito
estaduais e duas federais.
Não causa surpresa, tampouco, a relação das
dez melhores rodovias. Sete, todas no Sudeste, são estradas com pedágio,
gerenciadas por concessionárias, e apenas três são públicas. Duas são
estaduais, no interior de São Paulo, o estado mais rico da Federação. Apenas
uma, federal, está em Goiás, um dos polos de produção de grãos. A primeira do
ranking, a RJ-124, no Rio de Janeiro, conecta Rio Bonito a São Pedro da Aldeia,
com pedágio.
A radiografia tem como pano de fundo a
péssima qualidade da gestão no setor público. É perniciosa a influência
política nas nomeações, e a crise fiscal que acompanha o Estado brasileiro há
tempos restringe os recursos necessários aos investimentos em manutenção. Mesmo
unidades da Federação com grande receita tributária passam por dificuldades.
Salvo um recapeamento de asfalto prometido por um candidato em campanha, não há
como os estados e a União darem conta da malha rodoviária. A expansão do
agronegócio tem pressionado a infraestrutura de
transporte, em particular no Centro-Oeste, Norte e Sudeste, agravando o
desgaste das rodovias. Sempre há tempo de corrigir os erros acelerando as
concessões, mas paga-se um preço pelo atraso.
A pesquisa da CNT contou 2.648 pontos
críticos nas rodovias — queda de barreiras, pontes caídas ou estreitas, buracos
etc. No último feriado de fim de ano, caiu o número de acidentes graves e de
feridos. Ainda assim, houve 46 mortos e 560 feridos, entre 30 de dezembro de
2022 e 1º de janeiro deste ano. A Polícia Rodoviária Federal tem de no mínimo
manter o padrão de fiscalização do ano passado para não permitir que os
acidentes aumentem. Se houvesse mais rodovias privadas, seria menor o risco de
pegar a estrada nestas festas.
Terapia de choque
Folha de S. Paulo
Por decreto, Milei avança em plano arriscado
ao tenta revirar economia argentina
O megapacote econômico recém-lançado por
Javier Milei na Argentina suscitou comparações com o brasileiro Plano Collor,
de 1990, o que tem sua razão de ser.
Não se promoveu no país vizinho algo como o
confisco da caderneta de poupança e dos demais ativos financeiros, mas sim uma
revisão tão ampla quanto brusca do arcabouço normativo a reger as relações
entre trabalhadores, empresas e Estado —o que também se fez aqui, em diferentes
proporções, há mais de três décadas.
Tornou-se comum no final dos anos 1980 a
pregação de que o Brasil, em inflação descontrolada e total desordem
orçamentária, precisava de um "choque de capitalismo". É o que Milei
tenta fazer agora, em circunstância comparável.
Trocando em miúdos, trata-se de remover
controles de preços, subsídios, regras trabalhistas, obstáculos a
privatizações, proteções comerciais e outros ditames que esfalfam o erário e
impedem ajustes no mercado e no setor público.
É tão extenso o rol de medidas baixadas pela
Casa Rosada —mais de 300
leis e normas são revogadas ou alteradas—
que não se tem avaliação precisa de seu mérito e alcance. Mas pode-se dizer
desde já que o meio empregado é controverso.
Optou-se pela edição de um caudaloso Decreto
de Necessidade e Urgência, um instrumento do Executivo para situações de
emergência, em vez de buscar antes alguma negociação com as forças
representadas no Legislativo.
É a estratégia do choque, como Milei já
antecipara em seu discurso de posse, com o argumento de que abordagens
gradualistas de ajuste têm falhado no país.
O mandatário parece contar que, apesar dos
protestos populares reprimidos e das resistências no
Parlamento, todos previsíveis, parte considerável do pacote acabará preservada,
uma vez que a situação da economia de fato é dramática.
Os riscos são óbvios —e aqui não se fala do
exemplo extremo de Fernando Collor, que não concluiu o mandato. Inexiste saída
indolor para a Argentina, mas o caminho será mais difícil para um presidente
sem apoio do Parlamento e impondo medidas amargas às dezenas.
O país padece com inflação na casa de 160% em
12 meses, governo deficitário e sem crédito, falta de reservas em dólar e
recessão. Essa é a herança de um populismo de esquerda que desdenhou dos
limites orçamentários.
A sensatez recomenda entendimento político
mínimo em torno das medidas mais prementes para o controle dos gastos e da
inflação. É justamente nisso, porém, que a Argentina tem falhado há anos.
Cárcere letal
Folha de S. Paulo
Mortes nas prisões, em parte evitáveis, são
resultado de superlotação e descaso
O número de mortos em presídios brasileiros
expõe a faceta letal do tratamento desumano reiteradamente visto em ambientes
de privação de liberdade. Nos últimos
dez anos, foram 17 mil óbitos, num país em que a população
carcerária alcançou no ano passado a marca preocupante de 832 mil presos, a
maior de sua história.
Para obter esse dado, a Folha apresentou
75 pedidos por meio da Lei de Acesso à Informação a órgãos estaduais e
federais, referentes ao período de 2013 a 2023.
Parte desse escopo (8.752 casos entre 2018 e
2022) foi analisado pela organização internacional Vital Strategies. A
conclusão foi a de que uma parcela considerável de mortes seria evitável se as
instituições contassem com serviços de saúde de qualidade. Ademais, tortura,
restrição de água e de comida e infraestrutura insalubre são
comuns em presídios no país.
Nota-se o alto índice de óbitos causados por
doenças infecciosas e parasitárias (12,1%), como tuberculose, pneumonia, HIV,
hepatites, Covid e meningite, e por doenças crônicas não transmissíveis
(10,5%), como câncer, diabetes, doenças cardiovasculares e renais.
Somadas, as mortes por enfermidades chegam
perto da taxa daquelas que tiveram causas externas (25,7%), como homicídio.
Mais de 50% das ocorrências não têm motivação
definida, o que revela precariedade nos sistemas de informação e investigação.
A falta de recursos para esclarecer os óbitos de pessoas que estão sob a tutela
do Estado escancara o descaso oficial com os direitos humanos das pessoas
privadas de liberdade.
Enfrentar a questão demanda uma série de
estratégias. Em outubro deste ano, Supremo Tribunal Federal formou maioria para
determinar que os governos federal e estaduais apresentem planos para lidar com
problemas crônicos no cárcere brasileiro.
Não é tema que se resolva com uma penada do
Judiciário, mas há caminhos que demandam coragem e persistência na execução.
Reduzir o inchaço das prisões passa por
reconhecer que, no Brasil, prende-se muito e mal. Mudar a cultura do Judiciário
e debater no Legislativo a revisão de penas, em especial de crimes sem
violência e consumo de drogas, ajudariam a enfrentar as causas estruturais da
deplorável situação dos presídios, entre elas o superlotamento.
Só quem se beneficia com presos abarrotados em condições de vida degradantes são as facções criminosas, que dominam o sistema penitenciário em quase todos os estados. A população, fora ou dentro dos cárceres, é quem mais perde.
Mais um Orçamento disfuncional
O Estado de S. Paulo
Quando desempenha seu papel com
responsabilidade, o Congresso supera expectativas, como se viu na histórica
aprovação da reforma tributária. Ocorre o oposto com as emendas
O Congresso aprovou, no último dia de
trabalhos legislativos, o Orçamento de 2024. Como já se tornou uma tradição, a
proposta que definirá os gastos da União durante o ano todo não foi discutida
com o tempo e a profundidade que merecia. O debate público foi dominado por
dois assuntos: as emendas parlamentares e o fundo eleitoral.
Para garantir os recursos que consideram
necessários para atender a essas demandas, deputados e senadores reduziram em
R$ 7 bilhões a verba para obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC)
e os valores reservados para gastos discricionários de vários ministérios,
inclusive as pastas de Saúde e Educação. Não foi uma surpresa, mesmo porque boa
parte dessa discussão já havia ocorrido na tramitação da Lei de Diretrizes
Orçamentárias (LDO).
À primeira vista, o Legislativo sai ainda
mais fortalecido desse embate. Sem qualquer dificuldade, os parlamentares
conseguiram impor sua vontade ao governo. Serão, ao todo, R$ 53 bilhões
divididos em emendas individuais, de bancada e de comissão, um valor recorde.
Em contrapartida, o governo ainda tem muita dificuldade para aprovar suas
propostas no Congresso, embora tenha distribuído cargos e liberado recursos
para conquistar novos aliados.
Para deputados e senadores defensores desse
modelo, o Orçamento tem direcionado recursos para áreas normalmente esquecidas
pelo governo. Se isso fosse verdade, esse modelo deveria resultar na redução
das desigualdades sociais e regionais e em um crescimento econômico mais
inclusivo. Mas as emendas parlamentares fragmentaram as políticas públicas do
Executivo em obras de pequeno porte que só favorecem lideranças políticas já
constituídas.
O debate sobre o fundo eleitoral é ainda mais
anacrônico. O Congresso aprovou R$ 4,9 bilhões para as eleições municipais,
mesmo valor que custeou a campanha para eleição presidencial, dos governadores,
deputados federais, senadores e deputados estaduais no ano passado, bem mais
que os R$ 939 milhões que o governo havia proposto. Nem mesmo o apelo do
presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), para atualizar os valores
originais apenas pela inflação foi considerado.
Como já dissemos muitas vezes neste espaço,
esse modelo se encaminha para um esgotamento. Da forma como o Orçamento tem
sido elaborado e discutido, não há qualquer margem para avaliar a manutenção ou
a renovação de políticas públicas na saúde, na educação e na segurança pública.
Despesas obrigatórias consomem quase 95% dos recursos públicos. O domínio sobre
os nacos restantes tem gerado uma disputa ferrenha entre o Executivo e o
Legislativo, com resultados bastante questionáveis em termos de entrega à população.
Mais do que o desequilíbrio entre o
Legislativo e o Executivo, o Orçamento reflete a disfuncionalidade dos poderes
constituídos. Não cabe aos parlamentares avançar sobre o Orçamento a ponto de
controlar até mesmo sua execução. Não satisfeitos em tornar obrigatórias as
emendas individuais e de bancada, os parlamentares impuseram até mesmo um
calendário para o governo empenhá-las. Segundo a LDO, o Executivo terá de
reservar valores para pagá-las até julho.
Quando assume suas prerrogativas com
responsabilidade, o Congresso supera expectativas. Foi o que se viu na recente
e histórica aprovação da reforma tributária. Com muito diálogo, os
parlamentares foram capazes de construir um consenso que parecia impossível e
de abandonar um sistema tributário arcaico, confuso, regressivo e injusto. É
essa, precisamente, a função do Legislativo.
Passou da hora de o Executivo reassumir o
protagonismo sobre o Orçamento, mas esse movimento precisa ser feito de forma
bastante realista. Será preciso que o governo aceite algumas das contribuições
dos deputados e senadores na peça orçamentária, bem como reavalie, com certa
dose de autocrítica, a qualidade de suas próprias políticas públicas – de modo
a convencer os parlamentares a bancá-las.
Sinuca de bico nos EUA
O Estado de S. Paulo
O teste de estresse de Trump sobre o Estado
de Democrático de Direito agora pressiona o Judiciário. Mas, se a Justiça não
agir com prudência, será parte do problema, não da solução
É antidemocrático impedir um candidato
popular de concorrer às eleições? É democrático permitir que um golpista seja
eleito? A resposta à última questão, na democracia americana como nas outras, é
“não”. E, se concretamente for essa a situação, é uma das poucas que justificam
responder “não” à primeira pergunta.
A tentativa de Donald Trump de obstruir o
resultado das eleições de 2020 foi abominável e é uma das muitas razões pelas
quais ele não deveria retornar ao poder. Mas o que a opinião pública americana
está se perguntando é a quem cabe decidir se ele pode ou não retornar: ao
eleitor ou à Justiça?
Segundo a 14.ª Emenda à Constituição, ninguém
pode assumir cargos públicos se tiver se envolvido em uma “insurreição”.
A Suprema Corte do Colorado entendeu que
Trump fez isso quando seus apoiadores invadiram o Congresso em 6 de Janeiro de
2021, e o desqualificou para concorrer às primárias de 2024 no Estado.
A decisão é controversa. É a primeira vez que
o estatuto é invocado, e ele baseou processos em mais 27 Estados. Algumas
cortes os rejeitaram. A juíza da primeira instância do Colorado afirmou que
Trump se envolveu numa insurreição, mas que não deveria ser barrado, porque os
cargos enumerados na 14.ª Emenda não mencionam a “presidência”. Os juízes da
Suprema Corte estadual se dividiram: 4 votos contra 3. Um dos divergentes citou
que Trump nunca foi condenado por “insurreição”. A Câmara o condenou ao impeachment
por insurreição. Mas o Senado o inocentou. Nos quatro indiciamentos criminais
federais abertos contra ele por tentativa de subverter as eleições, o
procurador não incluiu a acusação de insurreição.
A Suprema Corte já teria de decidir em
janeiro se Trump é imune a acusações criminais por eventos ocorridos enquanto
presidente. Agora precisará julgar a sentença do Colorado. Se validá-la,
precisará apontar se a inelegibilidade vale só para o Estado ou para o país.
Mas a maioria dos analistas acredita que a derrubará.
O choque político é imenso. Não por alterar
as posições. Ao contrário. Não só os democratas continuarão clamando que estão
salvando a democracia de uma ditadura e os republicanos continuarão acusando os
democratas de perverter o sistema legal para interferir nas escolhas políticas,
como ambos se enrijecerão e se inflamarão.
Para males extremos, a Constituição prevê
remédios excepcionais. O golpismo é como um câncer, e a inelegibilidade, como
uma quimioterapia: um mal necessário. Mas, se o tumor puder ser curado com
terapias menos agressivas ou, pior, se ele não existir, a quimio é só um mal.
A ascensão de Trump foi sintoma de um
mal-estar da política americana. No poder, ele se tornou causa de uma
deterioração aguda. Em alguma medida, o eleitorado percebeu isso e rejeitou
Trump em 2020 (e puniu trumpistas nas eleições legislativas de 2018, 2020 e
2022). Agora, os democratas, muitos juristas e a Justiça do Colorado alegam que
o remédio das urnas é insuficiente, e a Constituição exige um mais extremo.
Seja qual for a decisão da Suprema Corte, o risco de estresse social é grande.
Após a eleição de Trump, a maioria dos
eleitores mostrou nas urnas que o desaprovou. Mas, se a Justiça lhes tirar a
opção soberana de rejeitá-lo ou elegêlo sem uma justificativa convincente, é a
Justiça que sairá chamuscada. Em tese, os processos judiciais contra Trump
fortalecem a Justiça ao mostrar que há limites na democracia e ninguém está
acima da lei. Mas, se, na prática, o povo – de quem, no fim, emana todo o poder
– entender que a Justiça está interpretando a lei de maneira dura, parcial e
extensiva contra um candidato, então o que era para ser um remédio se tornará
veneno.
Não que os juízes devam decidir com base nos
humores populares. Tal como a Justiça deve ser cega ante quem julga, deve ser
surda à gritaria das ruas. Mas não basta que a Justiça seja cega e surda, é
preciso parecer. E a melhor maneira de parecer é efetivamente ser. Do
contrário, é ela quem será condenada como antidemocrática pelo povo e, por uma
ironia trágica, empurrará esse povo para os braços de Donald Trump, inimigo
declarado da democracia.
A história de um jabuti
O Estado de S. Paulo
Caso das subvenções de ICMS mostra descuido do Poder Legislativo em temas tributários
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad,
encerra o ano com uma importante vitória na Câmara e no Senado. Com a aprovação
da Medida Provisória (MP) 1.185/2023, que regulamenta as subvenções de ICMS,
ele conseguiu aprovar a proposta mais importante de seu pacote de medidas para
ampliar a arrecadação da União e reduzir o déficit fiscal.
A medida provisória, que aguarda sanção
presidencial, vai impedir que benefícios fiscais concedidos pelos Estados
reduzam a base de incidência de tributos federais. Isso se tornou possível a
partir da aprovação, em 2017, da Lei Complementar 160, que equiparou as
subvenções de custeio às de investimentos.
É importante observar a gênese desse jabuti
tributário. Originalmente, a Lei Complementar 160 tinha a intenção de
convalidar os incentivos fiscais concedidos pelos Estados por meio do ICMS até
2032. Foi, inclusive, por essa razão que um dos fundos da reforma tributária
teve de ser criado. Sem poder acabar com o ICMS antes desse prazo, coube à
União aceitar a criação de um fundo e bancar o custo dessas políticas até lá.
As subvenções de ICMS não eram o objeto
principal da lei, mas foram incluídas de última hora. Segundo o parecer do
relator, o então deputado Alexandre Baldy (PP-GO), teria sido uma sugestão do
deputado Luiz Carlos Hauly (Podemos-PR). Como se pode imaginar, não houve, à
época, um amplo debate sobre os impactos dessa medida, e os parlamentares nem
sequer apresentaram o impacto decorrente da renúncia fiscal.
O trecho foi vetado pelo então presidente
Michel Temer. O governo já sabia que a medida causaria distorções tributárias e
comprometeria a arrecadação.
Na justificativa do veto, Temer chegou a
mencionar que o benefício ao custeio desfiguraria o próprio espírito da lei,
que visava a elevar investimentos. O veto, no entanto, foi derrubado pelo
Congresso.
Os efeitos desse jabuti ficaram visíveis com
o tempo, especialmente neste ano, quando houve um descasamento entre o Produto
Interno Bruto (PIB) e a arrecadação. Não é comum que as receitas caiam quando a
economia cresce e, ao investigar os motivos, chegou-se às subvenções.
Em abril, ao analisar o tema, o Superior
Tribunal de Justiça (STJ) já havia dado ganho de causa à União, mas ainda era
preciso regulamentar o tema. A MP foi parcialmente desidratada no Congresso,
mas deve garantir R$ 35 bilhões à União em 2024.
Esse caso ganha importância com a promulgação
da reforma tributária. Câmara e Senado terão de analisar as leis complementares
que se seguirão à proposta. O exemplo das subvenções de ICMS evidencia o peso
das decisões dos parlamentares e mostra o quanto eles precisam ter cuidado na
análise de propostas que possam corroer a arrecadação ao longo do tempo. O
Supremo Tribunal Federal (STF) também terá relevante papel a cumprir quando os
questionamentos jurídicos à reforma começarem a chegar à Corte.
Garantir as condições de financiamento do Estado e de suas políticas públicas é, afinal, um processo coletivo permanente e uma responsabilidade que não é apenas do governo, mas que pertence aos Três Poderes.
Vacinação de volta aos trilhos
Correio Braziliense
Depois de sete anos de declínio, a aplicação
de oito imunizantes do calendário infantil aumentou no país
O Brasil encerra 2023 com importante reversão
de um movimento considerado um dos maiores desafios em saúde pública na
atualidade: a queda na cobertura vacinal. Depois de sete anos de declínio, a
aplicação de oito imunizantes do calendário infantil aumentou no país. Em 10
meses, proteções contra doenças como poliomielite, sarampo e caxumba superaram
todos os registros feitos em 2022. Ao anunciar o balanço preliminar na última
terça-feira, a ministra da Saúde, Nísia Trindade, avaliou que o "movimento
pela vacinação venceu".
De fato, estratégias como repasse de verbas
para ações regionais de estímulo à vacinação, tentando adequar a solução do
problema à realidade de cada unidade da Federação e município, e o lançamento
do programa interministerial Saúde com Ciência, fortalecendo uma união que
precisa ser indissociável, surtiram o efeito esperado antes mesmo de dezembro
chegar. Mas, como reconhece a própria gestora da pasta, há muito a se fazer.
A cobertura vacinal da poliomielite, por
exemplo, chegou em outubro a 74,6%, ante os 67,1% do ano passado. A meta de
proteção estipulada por autoridades de saúde, porém, é de 95% — 20 pontos
percentuais a mais do que a realidade brasileira. A doença altamente infecciosa
só pode ser prevenida por vacina e é considerada Emergência em Saúde Pública de
Importância Internacional, condição definida pela Organização Mundial da Saúde
(OMS) e atribuída, recentemente, à covid-19 e à Mpox (varíola dos macacos) — ambas,
no momento, fora dessa lista sanitária.
A divulgação de fake news sobre possíveis
efeitos das imunizações é outro obstáculo recorrente. Basta considerar a forte
estratégia de disseminação de informações falsas assim que o governo anunciou,
no início deste mês, o reforço da vacina bivalente contra a covid-19. Uma delas
associava a inoculação ao desenvolvimento da "síndrome de imunodeficiência
adquirida por vacina" e, segundo monitoramento do governo, alcançou, no
mínimo, 3 milhões de pessoas. A Justiça Federal determinou, na semana passada,
a remoção das postagens que associavam a vacina à Aids.
É verdade que o reforço da bivalente é
indicado para pessoas com mais 60 anos e imunossuprimidos a partir dos 12 anos,
mas cabe destacar que o público infantil apresenta os piores índices de
cobertura vacinal contra a covid-19 do país. Dos 6 meses aos 2 anos, apenas
5,4% completaram o ciclo. A faixa etária engloba justamente o período em que
devem ser feitas as oito imunizações cujo aumento é comemorado agora pelo
governo federal: hepatite A, poliomielite, pneumocócica, meningocócica, DTP
(difteria, tétano e coqueluche), febre amarela, tríplice viral 1ª dose e 2ª
dose.
Adesões tão divergentes em um mesmo público
sinalizam uma possível seletividade nos hábitos protetivos e quão complexa é a
empreitada para o entendimento da vacinação como uma medida de bem-estar
coletivo. Especialistas na área, como o Fundo das Nações Unidas para a Infância
(Unicef) no Brasil, sugerem, entre outras medidas, que as vacinas sejam
aplicadas nas escolas — uma instituição cujos benefícios também têm sido alvos
de ataques nos últimos anos.
A recente guinada na cobertura vacinal no Brasil não implica embarque em caminhos tranquilos. Demanda que a estrutura engessada da máquina pública adote e atualize medidas capazes de ofuscar toda a inventividade desmedida do negacionismo. O país reconhecido internacionalmente pelo programa de imunização em massa volta aos trilhos em prol da saúde coletiva. Sigamos na rota da ciência.
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