Folha de S. Paulo
Como pode reivindicar ser mais democrático
quem demostra diariamente a brutalidade do seu autoritarismo
Dentre as sugestões para uma
agenda da esquerda em 2024, faço questão de incluir a necessidade de
desautorizar o "ódio do bem". Pois é justamente neste quesito que a
esquerda e os progressistas perdem a prerrogativa da superioridade moral que
tanto reivindicam sobre os seus adversários.
"Ódio do bem" é obviamente uma
expressão irônica para designar o ódio quando a sua fonte são pessoas que
reivindicam uma posição moral superior. O ódio, em seu sentido político, é
fundamentalmente o sentimento intenso de aversão ou hostilidade em relação a um
grupo, ideologia ou pessoa.
Embora não seja possível controlar sentimentos, é crucial intervir, no caso do ódio, quando esse sentimento aflora em atitudes ou comportamentos, tanto individuais quanto coletivos. Isso inclui a expressão pública de aversão e desprezo por determinados alvos, assim como interações sociais que oprimem e degradam os outros. Por isso se fala em "crimes de ódio" e "discursos de ódio", no âmbito propriamente jurídico, e em promoção e disseminação de ódio, em âmbito político.
Todo grupo com uma posição política almeja
ter superioridade sobre posições opostas ou adversárias. No entanto, essa
superioridade é avaliada considerando a amplitude da força mobilizada, a
habilidade na articulação, e a capacidade de comunicação com a sociedade,
grupos de interesse ou simplesmente com o eleitorado.
Ao longo dos anos, as esquerdas penaram, em
regimes democráticos ou autoritários, justamente por não ter os meios para
prevalecer nas disputas. Por isso, sempre insistiram em outra forma de
superioridade, relacionada a um sistema de valores morais, a começar pelo valor
da igualdade entre todas as pessoas.
A igualdade é moralmente superior à
desigualdade, à injustiça, à iniquidade; a busca por mais igualdade é
moralmente superior à mera luta por interesses.
Por isso, a esquerda igualitária pode até não
vencer cada batalha, mas possuiria um dote moral em maior quantidade que a
direita anti-igualitária. Eis sua superioridade moral e a raiz da convicção na
própria legitimidade. Esse sentimento, claro, pode não passar de uma crença,
mas certamente foi eficaz e faz parte de sua identidade.
Como afirmou de maneira perspicaz um
comunista italiano da velha guarda, a questão reside no fato de que a
superioridade moral não é um legado genético tampouco um traço antropológico
exclusivo da esquerda. E certamente não é uma dádiva divina ou uma qualidade
concedida automaticamente com o "kit do bom militante". Ela precisa
ser provada em cada atitude, segundo regras válidas para todos.
No entanto, é evidente que a esquerda se
transformou em uma extraordinária força devotada ao ódio. Perdeu o pudor de
expressar publicamente aversão e desprezo a pessoas e grupos que detesta ou a
opiniões que não tolera. Um mero adjetivo como "fascista" ou
"racista" afasta qualquer escrúpulo. E a base moral do julgamento é
sempre autorreferente: os nossos são bons porque são nossos, o outro lado é
ruim porque é o outro lado. E o inferno, como se sabe, são sempre os outros.
Nas interações sociais, especialmente em
ambientes digitais, insultos, cancelamentos, exposições, agressões diretas e
humilhações públicas se tornaram tão frequentes que impossibilitam distinguir
os brutos da esquerda e os trogloditas da direita. Houve uma época em que se
podia alegar que o ódio era mais copioso do lado direito que do lado esquerdo;
hoje, não mais.
A esquerda autoriza o "ódio do
bem", enquanto se queixa do ódio dos maus. Todo santo dia, o seu Colégio
Cardinalício emite milhares de indulgências plenárias e fornece um milhão de
justificativas, sempre recorrendo ao manancial inesgotável de autocomplacência
com "os oprimidos".
São fornecidos álibis inquestionáveis, como a
ideia de que só existe ódio de cima para baixo e de que uma ação só é imoral se
for "estrutural". No limite, minimiza-se o ato, alegando-se que o
eventual "ódio do bem" não tem o condão de provocar um dano
semelhante ao cotidiano e disseminado ódio dos maus.
É um odiozinho de nada.
Essa autoindulgência desmoraliza o argumento
da superioridade moral. Como pode reivindicar ser mais democrático quem
demostra diariamente a brutalidade do seu autoritarismo e o seu gosto por calar
os divergentes através de humilhações, insultos e violência? Para quem o recebe
no lombo, não importa o quanto quem estala o chicote se considere bom, justo e
moralmente superior segundo a própria escala de virtudes. A mão que desfere a
chibatada é, invariavelmente, do mal.
*Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"
2 comentários:
■■E junto com o que os que aqui no Brasil que se dizem "de esquerda" pensam ser "ódio do bem", vem junto e deliberadamente muito ódio do mal.
■Em termos de produção e espalhamento de ódio eu não vejo diferença nenhuma entre o lulismo e o bolsonarismo. E nos aliados internacionais é Lula e o PT que andam com um número muito maior de ditadores de ódios e de violências que os bolsonaristas.
O colunista tentando igualar o inigualável,por pior que seja a esquerda,a direita é mais violenta e,o que é pior,sem uma boa causa a defender.
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