sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

André Roncaglia* - Dividir para conquistar

Folha de S. Paulo

Após duas décadas de crescimento real, salários se estagnaram sob Temer e Bolsonaro

Os dados recentes das Contas Nacionais, divulgados pelo IBGE, mostram um acirramento do conflito distributivo no Brasil. Entre 2017 e 2021, os lucros (fonte principal de renda dos mais ricos) cresceram mais do que os salários e benefícios sociais (fonte de renda principal dos mais pobres e da classe média). Esta tendência reflete movimentos estruturais da economia brasileira.

A perda do poder de barganha dos trabalhadores explica a estagnação da renda do trabalho. Depois de duas décadas de crescimento real dos salários (1994-2016), os salários estagnaram sob Temer e Bolsonaro: 0,2% de ganho real entre 2017 e 2022. A reforma trabalhista de 2017 reduziu os custos para o empregador, mas não gerou os milhões de empregos formais prometidos. A reforma piorou o mercado de trabalho, com aumento na proporção de empregos precários no setor de serviços de baixa qualificação.

Além disso, a queda da fatia dos salários na renda também se deve à lógica antiestatal de Temer e Bolsonaro, que implicou arrocho dos salários do funcionalismo público civil e a não reposição de 73 mil servidores aposentados, segundo dados do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI).

A crítica genérica aos "privilégios" do funcionalismo ignora desigualdades internas ao setor público. Por exemplo, segundo dados do Tesouro Nacional, entre 2017 e 2022, os ganhos reais da renda de militares ativos (2%) e inativos (7%) contrastam com as perdas reais de servidores civis ativos (11%) e inativos (8%).

Ademais, um setor público com menos empregos e menor remuneração enfraquece as demandas salariais da economia (FMI 1991) e normaliza a anemia sistêmica do mercado de trabalho, onde o prêmio salarial pela escolaridade vem caindo pela escassez de oferta de bons empregos, fruto da perda de sofisticação tecnológica da economia e das nossas exportações.

No lado dos lucros, concentração de poder de mercado, isenções tributárias, digitalização e automação se unem ao avanço da "pejotização", pela qual trabalhadores são contratados como pessoa jurídica, transformando o rendimento do trabalho em lucro de empresa.

Essa metamorfose quantitativa implica mudanças qualitativas. Excluído da desidratada rede de proteção do emprego formal, o trabalhador convertido em "empresário de si mesmo" muda de lado na luta distributiva e amplia o racha na unidade já precária dos interesses do trabalho.

Seja por meio de salários, seja por meio de lucros, as melhores remunerações correm para os mais ricos, impulsionadas pela desigualdade de acesso às oportunidades, ligada à estrutura e ao patrimônio familiares, às conexões sociais e à propriedade concentrada do capital empresarial e o acesso a crédito e benefícios tributários. Vejamos o caso do agronegócio.

No período 2017-2022, o rendimento da atividade rural —isento de tributação na sua maior parte— teve ganho real de 140% e beneficiou principalmente os estratos mais ricos. Nota técnica de Sérgio Gobetti (Ibre-FGV) mostrou que, em estados dominados pelo agronegócio, o crescimento real da renda do 0,1% mais rico chegou a 117% em Mato Grosso, a 99% em Mato Grosso do Sul e a 78% no Tocantins —ante 42% na média nacional para o mesmo estrato de renda.

No mesmo período, o agronegócio adicionou apenas 4% do total de vagas criadas no Brasil e o ganho salarial real de empregados no agronegócio foi de 0,5%, na média (Cepea-Esalq/USP). Ou seja, a recente bonança das commodities não beneficiou a base da distribuição de renda.

A tática de dividir para conquistar os trabalhadores protege os privilégios das elites, pouco interessadas em gerar empregos de alta qualidade. Reindustrialização e maior justiça tributária ajudam a reequilibrar esse jogo.

*Professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP

Um comentário:

Daniel disse...

PERFEITO!!