O Globo
A gente das escolas de samba está a nos
ensinar que resistir é preciso
A Passarela Professor Darcy Ribeiro completou quatro décadas com um carnaval esplendoroso, cheio de emoção, criatividade, tecnologia. Teve espetáculo para todos os gostos, ainda que boa parte dos que amam a festa esteja dela afastada. Depois das “Superescolas de Samba S/A”, que o Império Serrano denunciou no carnaval de 1982, antevéspera do Sambódromo, estão aí os übercamarotes, que ocupam espaço, inflacionam ingressos, perturbam a cena. Engoliram porções da avenida com apresentações e público que nada têm a ver com as agremiações saídas dos morros e periferias da metrópole que fazem os desfiles. Para pretos, pobres e remediados, origem da celebração, há os ensaios técnicos, escassas frisas, arquibancadas a preços, no geral, nada populares.
Às vésperas do feriadão de Momo, a Globoplay
pôs no ar “Enredos da liberdade — O grito do samba pela democracia”, série
dirigida por Luis Carlos Alencar, a partir da ideia original de Rodrigo
Reduzino. É uma relíquia em imagens de arquivo, com cinco episódios em que 31
entrevistados — entre os quais a colunista que vos escreve — tratam dos enredos
que as escolas de samba viveram ou desfilaram nos anos 1980, a década que
sepultou a ditadura cívico-militar. Há um capítulo dedicado à construção do
Sambódromo, projeto inovador do então governador Leonel Brizola, do vice, Darcy
Ribeiro, e do arquiteto Oscar Niemeyer.
A passarela enterrou décadas de carnaval com
monta-desmonta de arquibancadas. Foi festejada como reconhecimento do Estado à
mais importante manifestação cultural do país. Os sambistas teriam um
equipamento público permanente, definitivo. A Sapucaí carioca inspirou projetos
semelhantes Brasil afora. O Bumbódromo, palco do Festival de Parintins, dos
Bois Caprichoso e Garantido, é de 1988. O Sambódromo do Anhembi, palco dos
desfiles de São Paulo, foi inaugurado em 1991.
É estrutura tão bem-vinda quanto
imprescindível, mas precisa ser repensada para, em honra dos fundadores do
carnaval das escolas de samba, ser mais diversa e generosa e justa. O
espetáculo enriqueceu sem redistribuir. Segue a receita pré-histórica do regime
militar: faz o bolo crescer e... oferece para quem já estava empapuçado. A
cultura afro-brasileira, que deu no samba e no cortejo carnavalesco, é
comunitária, solidária, múltipla. Existe como alimento da alma, força vital.
Mas, hoje tão rica, pode — e deve — ser meio de vida, ofício de gente talentosa
que merece prosperar.
A Prefeitura do Rio informou que, neste ano,
a folia movimentaria R$ 5 bilhões, R$ 500 milhões em ISS. Mas os sambistas,
razão de tudo, vivem na precariedade e morrem em hospitais públicos sem
assistência adequada. Durante a pandemia, que inviabilizou a festa de 2021 e
atrasou a do ano seguinte, famílias inteiras dependeram da doação de cestas
básicas. O setor público, que subvenciona, deveria exigir como contrapartida
respeito às leis de proteção, saúde e segurança no trabalho. Fora do Grupo
Especial, agremiações gabaritam condições análogas à escravidão: jornada
excessiva, ambiente insalubre, má remuneração.
Em 2024, foi bonita a festa. Os julgadores,
nas notas, indicaram que, perdoem adereços, enredo e samba são fundamentais. O
desfile deu na vitória maiúscula da Unidos do Viradouro, do carnavalesco
Tarcísio Zanon, em devoção a Bessen/Oxumaré, ao culto às serpentes, às
sacerdotisas e às sociedades femininas de África e Brasil. Foram reconhecidos
os carnavais competentes de Grande Rio (“Nosso destino é ser onça”) e Imperatriz
Leopoldinense (“Com a sorte virada pra lua”); e acolhidos os enredos
engajados de Salgueiro (“Hutukara”,
sobre os ianomâmis) e Portela (“Um
defeito de cor”, best-seller de Ana Maria Gonçalves), ainda que com
apresentações imperfeitas em quesitos visuais.
As três primeiras colocadas ensinaram, como
na sabedoria popular, que não há mal que sempre dure. A campeã do ano fora
rebaixada para a Série Ouro em 2010 e 2015. Retornou ao Grupo Especial há
apenas cinco anos. Desde então, foi primeira duas vezes e não ficou fora do
Sábado das Campeãs. No segundo lugar, a escola de Ramos caiu em 2019, retornou
no ano seguinte e chegou em primeiro em 2023, pelas mãos de Leandro Vieira. A
Grande Rio, da dupla Gabriel Haddad e Leonardo Bora, agora em terceiro, escapou
do rebaixamento no tapetão em 2018. Dois anos depois apresentou uma
reestruturação que já rendeu um campeonato (2022) e um vice (2020). São
agremiações que conseguiram combinar gestão competente, talento artístico,
inovação tecnológica, respeito à comunidade — não necessariamente nessa ordem.
A gente das escolas está a nos ensinar que resistir é preciso, ainda que pelas frestas do autoritarismo, da brutalidade, da injustiça, do oportunismo. O samba cura. A vida é circular. Arroboboi, Dangbé!
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