Valor Econômico
A alegria da dúvida criativa, o prazer de
imaginar e da imaginação são suprimidas por essa cultura, ao nos tornar apenas
instrumentos de um imaginário fabricado por algoritmos
O novo sujeito social e político da sociedade
pós-moderna é simbolizado pelo telefone celular. Social porque a sociabilidade
dos seres humanos dele depende cada vez mais. Político porque por meio dele a
política deixou de se apoiar na mediação de ideias sobre o bem comum para se
tornar um processo político mediado por uma coisa portátil. Um esvaziamento da
política que a vem tornando um novo meio de dominação, o da mentira verossímil.
Portátil porque o usuário pode levá-lo no bolso. Mas, em vez de ser levado, é ele que leva o seu dono, dono que se tornou instrumento do objeto que usa, objeto de seu objeto.
Essa não é a única nem a mais significativa
anomalia que mediatiza e demarca nossa situação social, que define os marcos de
nossas condutas, que empobrece nossos horizontes, que engendra um modo social
de ser em que não somos, nem pessoas nem cidadãos.
Claro que é impossível desconhecer a
importância que o celular tem na vida cotidiana de todos nós. Já não podemos
viver sem ele. Mas é ele, também, um dos instrumentos de um número
significativo de invisibilidades desta sociedade. É por aí que somos dominados,
amansados, enganados e induzidos a ser e fazer o que não queremos nem devemos.
A vacina defensiva contra ele é a consciência
socialmente crítica, que não deve ser confundida com a polarização ideológica
que dominou e domina a situação política brasileira. Com exceções notáveis,
direita e esquerda criaram uma cumplicidade reprodutiva e imobilista no sentido
de se tornarem reciprocamente úteis e necessárias. Criaram um sistema.
Historicamente, a sociedade se move para
solucionar necessidades sociais conscientes, o que depende de busca de saída no
objetivamente possível. O destino histórico da sociedade não sai do bolso do
colete nem do militante nem do reacionário, nem do silêncio nem do berro. Daí
só sai alienação e bloqueio.
O Brasil desse sistema de dominação é
completamente falso.
A pós-modernidade tem o símbolo complementar
no dedo indicador, que digita, mas não pensa. O cérebro já não tem prontidão
para reconhecer diferenças sociais significativas e desafiadoras. As dos
processos interativos que mobilizem o ser humano para que se humanize naquilo
que faz e seja um construtor social da realidade.
Para confirmar o nome dos dedos de minha mão
e escrever este comentário, levei menos de meio minuto e recebi de volta mais
de 4 milhões de informações sobre “dedos da mão”. Para conferir o que eu já
sabia.
Só que, diferente do que acontecia quando eu
era criança e adolescente, em que eu colhia ideias na própria memória como
colhia goiabas na goiabeira. E colhia apenas o que ia usar e comer. Na busca de
uma única informação, o celular me permite colher milhões de informações
inúteis em meio minuto, pelas quais eu pago.
O sistema econômico que dá sentido às funções
desse instrumento se tornou um sistema produtivo de informações, mas
improdutivo de realidades funcionais e mesmo materiais.
De famílias de lavradores caipiras e artesãos
de fábricas, desde muito pequeno aprendi a fazer coisas úteis com minhas
próprias mãos. Aos 7 anos de idade, eu já fazia meus próprios brinquedos. O
primeiro presente de Natal, de que me lembro, foi um joguinho de ferramentas de
carpinteiro, para criança, pois meu pai me queria carpinteiro, uma tradição de
família.
Aquele brinquedo me fazia feliz. Meu celular
e tudo que ele significa e pode não me fazem feliz. Eu clico na tecla para
receber aquilo de que preciso e ele me traz de volta não só milhões de
informações que não preciso. Mas milhões de informações que me privam das
referências da consciência social e política e me dizem que o mundo em que vivo
é um mundo de incerteza e perigo. Já não é um mundo de saber, esperança e
alegria. O homem simples está morrendo.
A cultura do dedo indicador nos tira a
alegria da dúvida criativa, o prazer de imaginar e da imaginação, ao nos tornar
apenas instrumentos de um imaginário fabricado por algoritmos.
Algo pouco notado, ela libertou satanás das
profundezas do inferno, o inimigo da nossa luta pelo bem, pela liberdade e pela
esperança. Ela libertou o medo e o transformou num poder. Satanás tem mais
presença nos púlpitos de igrejas do que o próprio Deus. Porque é em nome dele
que Deus passou a existir. Os templos deixaram de ser o lugar do sagrado para
ser apenas um lugar de refúgio. O mero lugar da espera apocalíptica, a negação
do hoje e do atual em nome do quimérico e falso.
Ele não é um ser de fora do mundo. O deus
pós-moderno é manipulador, dissimulado, satânico, que fala no bem para
implantar o mal. Cuja missão é a de criar o novo sujeito social da nulificação
da pessoa, a multidão sem rumo.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor
Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar,
da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador
Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. É autor de, entre
outros livros, “Capitalismo e escravidão na sociedade pós-escravista” (Editora
Unesp, São Paulo, 2023).
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