Por Victoria Abel, Renan Monteiro e Manoel Ventura / O Globo
Um quinto de todos os recursos livres do governo federal neste ano foi definido por deputados e senadores. Emendas individuais, de bancada e de comissão ultrapassam R$ 44 bi, mesmo com veto de Lula
O poder de deputados e senadores sobre os
gastos públicos voltou a crescer. Parlamentares destinaram um quinto de todos
os recursos livres do Orçamento da União para 2024 sancionado pelo presidente
Lula, mesmo com o veto dele de R$ 5,6 bilhões em emendas parlamentares.
As verbas livres são aquelas sobre os quais o
poder público pode livremente escolher sua destinação, voltadas principalmente
para investimentos e custeio da máquina pública. O percentual sob poder do
Congresso ganhou corpo a partir de 2020, mas vinha caindo desde então. Números
do Orçamento mostram que voltou a subir neste ano, para 20%.
Considerando apenas os investimentos
propriamente ditos (como obras), os parlamentares são responsáveis por escolher
27% dos valores disponibilizados para essa rubrica no Orçamento de 2024.
Embora as despesas totais do governo somem R$
5,4 trilhões, boa parte disso é destinada ao manejo da elevada dívida pública
brasileira. Os gastos federais somam, assim, R$ 2,1 trilhões, e só há poder de
escolha para menos de um décimo disso.
A despesas discricionárias (que não são obrigatórias, como salários e Previdência), são R$ 222 bilhões. São verbas para investimentos, políticas públicas e custeio da máquina estatal. No entanto, parlamentares voltaram a avançar sobre elas no primeiro Orçamento proposto por Lula.
Fora da curva
Isso dificulta a coordenação de programas
públicos e a prestação de serviços de qualidade para a população e amplia as
dificuldades do governo para cumprir a meta de déficit fiscal zero este ano,
prevista no novo arcabouço fiscal.
Em 2023, esse apetite havia diminuído. No ano
passado, as emendas parlamentares ficaram com 17,46% dos gastos livres. Neste
ano, o percentual subiu para pouco mais de 20%, mesmo com o veto parcial de
Lula.
O nível de ingerência do Congresso brasileiro
sobre os gastos públicos não tem paralelo no mundo. Para analistas, além de
dificultar o equilíbrio fiscal, isso afasta os gastos federais das políticas
prioritárias definidas pelos ministérios e reduz a transparência e a
fiscalização da aplicação do que é arrecadado em impostos.
Congressistas podem destinar recursos da
União por meio de emendas ao Orçamento, que ultrapassaram R$ 50 bilhões na peça
deste ano. O montante caiu para R$ 44,6 bilhões após o veto de Lula, que
desagradou parlamentares. Desse total, R$ 25 bilhões serão aplicados de acordo
com emendas individuais de deputados e senadores.
Há outros dois tipos de emendas
parlamentares. As de bancadas dos estados, que definiram outros R$ 11,3
bilhões, e as de comissões parlamentares da Câmara, do Senado e mistas, que
indicaram o destino de R$ 11 bilhões.
Um detalhe complica mais: o governo é
obrigado a executar as emendas individuais e de bancada (desde que mudanças
constitucionais foram aprovadas no Congresso em 2015 e 2019), reduzindo ainda
mais a margem de manobra para equilibrar receitas e despesas. Para 2024, o
Congresso criou até um calendário de pagamentos dessas emendas obrigatórias,
também vetado por Lula.
Hélio Tollini, especialista em contas
públicas que por 30 anos atuou na consultoria de Orçamento da Câmara, na
Secretaria de Orçamento do governo e em organismos internacionais, alerta que
as emendas estão tomando um espaço desproporcional nos gastos federais,
cristalizando uma peculiaridade negativa do Brasil:
— Não é assim no mundo inteiro. O processo
brasileiro com emendas parlamentares é fora da curva, não encontra paralelo no
mundo. É insustentável — diz Tollini. — Nos países da OCDE (Organização para a
Cooperação e o Desenvolvimento Econômico, grupo que reúne economias mais
avançadas), não se vê emenda individual, ela é uma excrescência por si só. É um
único parlamentar dizendo onde vai ser gasto parte do dinheiro público. As
iniciativas deveriam ser sempre coletivas.
Um estudo de 2022 do economista Marcos Mendes
demonstrou como o Brasil destoa dos países da OCDE. De 29 nações analisadas,
somente EUA, Eslováquia e Estônia aparecem acima da marca de 2% de recursos
livres definidos por congressistas. Naquele ano, o percentual brasileiro foi
ainda maior: 24,6%.
E, enquanto em outros países a dinâmica das
relações entre Executivo e Congresso pouco se alterou nos últimos anos, no
Brasil a fatia apropriada por emendas deu um salto a partir de 2020.
Ineficiência na alocação
O estudo de Mendes ressalta ainda o elevado
número de emendas no processo orçamentário brasileiro, o alto valor envolvido e
o fato de a proposta do Orçamento já sair do Executivo com uma reserva para os
parlamentares. Dessa forma, deputados e senadores não têm o ônus de cortar
outros gastos para alocar recursos escolhidos por eles. O problema é que eles
estão ampliando cada vez mais essa fatia.
— No fim das contas, a sociedade acaba
pagando o preço. Esse conflito gera uma ineficiente alocação de recursos — diz
Juliana Inhasz, professora de economia do Insper.
Sem condições de barrar a voracidade do
Legislativo, o governo tenta canalizar parte dos recursos das emendas para
obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). A infraestrutura é uma
das poucas áreas em que se aproximam as prioridades do governo e as dos
parlamentares, interessados em apadrinhar obras em ano eleitoral.
Tollini chama atenção ainda para o
crescimento das chamadas “emendas Pix”, modalidade criada em 2019 na qual o
parlamentar destina recursos diretamente para prefeituras, sem necessidade de
definir projetos. Essas emendas chegam a R$ 8,2 bilhões em 2024, maior valor
desde a criação.
— A “emenda Pix” é a negação da
transparência. Manda o dinheiro para o estado ou o município e não diz para o
que vai ser feito, não diz nada — diz ele, lembrando que isso também dificulta
auditorias sobre como o dinheiro foi usado.
Para o especialista em contas públicas Raul
Velloso, o Orçamento muito engessado dificulta cumprir a meta de zerar o
déficit público neste ano, definida pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad.
— Esses artifícios para engordar emendas só
terão solução quando conseguirmos atacar o problema de excesso de gastos
previdenciários — diz Velloso, referindo-se à maior despesa fixa da União.
Estudioso da Previdência e das contas
públicas, o economista Fabio Giambiagi pondera que é compreensível o surgimento
das emendas impositivas diante da insatisfação dos parlamentares com os
contingenciamentos na diminuta parcela de gastos discricionários (livres), mas
concorda que elas chegaram a níveis nunca vistos internacionalmente:
— Antes os ministros eram senhores de tudo, e
os parlamentares eram pedintes. Mas isso foi mudando, e o sentido da despesa
discricionária se alterou radicalmente. Enchemos o país de praças, e não há
mais recursos para políticas onde a integração é essencial, como prevenção de
desastres, saúde, educação e até construção de estradas.
'Governo congressual'
O cientista político Claudio Couto diz que o
que chama de “governo congressual” ganhou espaço e conseguiu alterar o sistema
político durante dois governos de presidentes enfraquecidos na relação com o
Legislativo: Dilma Rousseff (PT) e Jair Bolsonaro (PL). De volta ao Planalto,
Lula encontrou um novo cenário.
— Aquele presidencialismo de coalizão, como
conhecemos, não existe mais. O grupo de parlamentares do Centrão deixa de ser
de adesão, para se tornar parcialmente de adesão. Prefiro chamar de governo
congressual, em que você tem o Congresso liderando o processo decisório. Lula
tenta retomar o controle, mas ainda permanece uma disputa entre Legislativo e
Executivo — diz o cientista político.
Procurados, o governo e os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), não se manifestaram.
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