O Estado de S. Paulo
A eleição de Trump deixaria a Europa sozinha na defesa da Ucrânia e na contenção da Rússia
A pior forma de gerir recursos escassos é
aplicálos pela metade em um projeto. É melhor não fazer nada quando não se está
disposto a ir até o fim. Essa é a trágica lição da ajuda ocidental à Ucrânia: a
relutância em fornecer ao país atacado tudo o que ele precisava para derrotar a
Rússia resultou em perdas humanas e materiais incalculáveis.
Enquanto os EUA estão submersos em um impasse político, nas incertezas da eleição deste ano e na brutal campanha de Israel contra os palestinos, a Europa se mobiliza para finalmente fazer frente à ameaça russa de forma mais consistente, na intensidade e no tempo requeridos.
A União Europeia superou, na quinta-feira, as
resistências da Hungria e aprovou um pacote de ajuda de US$ 54 bilhões à
Ucrânia nos próximos quatro anos. O valor se aproxima do que a UE destinou
nesses dois anos de guerra: US$ 47 bilhões. Todos sabem que é insuficiente,
principalmente se a Ucrânia não puder mais contar com os EUA.
Mas na reunião de cúpula europeia ficou clara
a disposição dos países – uns mais, outros menos – de continuarem contribuindo
individualmente, para além dessa ajuda em bloco. O mais interessante é essa
nova forma de pensar no longo prazo: a aceitação da triste realidade de que não
há um fim dessa guerra no horizonte, e de que vencerá quem tiver mais
capacidade de aguentar.
Os exércitos ucraniano e russo estão
dimensionados segundo a doutrina soviética, de uso intenso de artilharia. Os
estoques de munição são um dado crítico. Em meados do ano passado, os
ucranianos disparavam 8 mil balas por dia; hoje, esse número caiu para 2 mil,
enquanto os russos disparam 6 mil.
Os europeus haviam prometido entregar 1
milhão de balas à Ucrânia até março. Na cúpula, reconheceram que só atingirão
metade desse objetivo, mas prometeram entregar 1,1 milhão até o fim do ano. A
Otan segue uma doutrina diferente, baseada na superioridade aérea, naval, de
equipamento, de tropa, tática e operacional.
Os inventários de Europa e
EUA não estavam preparados para uma guerra
intensiva em artilharia. Incrementar a capacidade de fabricação de munição, em
economias avançadas cujo setor bélico é privado, requer contratos de longo
prazo, que incentivem os acionistas das empresas a investir na ampliação de
seus parques industriais.
A relutância dos EUA e, até aqui, da Europa,
em assumir – não só no discurso – compromissos de longo prazo com a defesa da
Ucrânia prejudicou essa capacitação. Em contraste, o complexo
industrial-militar russo é estatal ou controlado pela cleptocracia comandada
por Vladimir Putin. A Rússia se converteu rapidamente em uma “economia de
guerra”, termo aplicado à Alemanha nazista. Neste ano, 40% do orçamento público
russo é destinado à guerra.
A maioria republicana na Câmara dos Deputados
está bloqueando o pedido do presidente, Joe Biden, de US$ 60 bilhões para a
Ucrânia. Mais precisamente, uma minoria trumpista, que capturou o controle da
bancada. Nesses dois anos, os EUA destinaram US$ 75 bilhões.
Donald Trump adotou, durante seu governo, uma
atitude de complacência em relação a Putin. A campanha de desinformação contra
a candidatura de Hillary Clinton, assim como as investigações do FBI e da CIA,
condenações e prisões de assessores de Trump por contatos ilegais com o
embaixador da Rússia em Washington, Serguei Kisliak, e outras pessoas ligadas a
Putin, reforçaram os interesses em comum.
Esses interesses foram motivados por
investimentos da Organização Trump na Rússia e por admiração pessoal do
americano pelo homem forte russo, com sua imagem de “virilidade” e
“autoridade”.
Após reunião com Putin, em 2018, Trump
demonstrou acreditar mais no ditador russo do que na inteligência americana:
“Dan Coats (diretor de Inteligência Nacional) e outros vieram até mim e
disseram que acham que foi a Rússia”, disse ele, referindo-se à interferência
nas eleições, em seu favor. “Estou com Putin, ele disse que não é a Rússia. Não
vejo nenhuma razão para ter sido.”
Trump colocou em dúvida o compromisso dos EUA
de defender a Europa, razão de existência da Otan. Diante de tudo isso, uma
eventual eleição de Trump, atualmente à frente nas pesquisas, deixaria a Europa
sozinha na defesa da Ucrânia e na contenção da Rússia.
O presidente francês, Emmanuel Macron,
relançou sua proposta apresentada em 2017, primeiro ano do governo Trump, de
que a Europa precisa ter um sistema de defesa robusto e independente. Essa é
uma condição para dissuadir a Rússia de seu expansionismo. Nesse sentido, mais
força militar significa menor risco de uma guerra mais ampla.
Um comentário:
Obrigado Lourival pelo magnifico texto.
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