sexta-feira, 5 de abril de 2024

Fernando Abrucio* - Brasil precisa atualizar seu projeto nacional

Valor Econômico

Um caminho que tem forte efeito agregador e transformador é apostar na construção de uma governança federativa com maior amplitude, pactuação e efetividade

Diante dos novos desafios e oportunidades trazidos pelo século XXI, o Brasil precisa atualizar seu projeto nacional. Muitos pensam que essa é uma tarefa a ser realizada exclusivamente pelo presidente eleito e seus auxiliares insulados nos ministérios em Brasília. Tal modelo ainda imagina, idilicamente, um governante que tenha a seu lado “uma elite ilustrada, que pense no país e no longo prazo e não sucumba aos interesses mais imediatos”. Trata-se de uma concepção irrealista, pouco democrática e incapaz de perceber a complexidade dos problemas e da produção das soluções. Em lugar dessa visão, o melhor é pensar a nação por meio de uma governança colaborativa.

Colaboração não significa a ausência de conflitos. Ao contrário, é privilegiar a construção de arenas de debate e decisão que lidem com a diversidade de posições e definam os caminhos mais consensuais possíveis, estimulando a cooperação dos atores por meio de incentivos e projeção de ganhos aos participantes. Num país complexo como o Brasil, essa estrada não é fácil de pavimentar. Porém, as alternativas contrárias são piores: um modelo centralizador e hierárquico tem poucas chances de ter apoio e ser implementado homogeneamente em todo o território nacional, ao passo que a fragmentação das ações, com cada um correndo para o seu lado ou procurando vetar os demais, evitará que o país construa um projeto para o século XXI.

A governança colaborativa como eixo de um projeto nacional envolveria atores estatais, como os poderes e os entes federativos, e atores sociais, como os agentes econômicos, organizações não governamentais e movimentos sociais. Não há uma engenharia única que abarque todos, de modo que haverá mais de uma arena decisória e vários formatos de pactuação. Também deve-se destacar que nem todos os temas serão resolvidos celeremente e com o mesmo grau de consenso. Ao invés disso, a resolução de algumas questões produz efeito positivo sobre o andamento da agenda global, de modo que o segredo desse modelo governativo é encontrar uma lista de assuntos e formas de processamento que se transformem numa alavanca poderosa de transformações.

Neste sentido, um caminho que tem forte efeito agregador e transformador é apostar na construção de uma governança federativa com maior amplitude, pactuação e efetividade. Por que mexer na engrenagem da Federação teria tal poder de mobilizar atores e recursos em prol da atualização do projeto nacional? Três razões justificam essa visão governativa. A primeira é que os principais atores formuladores e implementadores de políticas públicas são os três entes federativos. O Congresso Nacional e o STF são muito importantes no sistema político brasileiro, mas suas ideias só vão adiante se a União, os estados e os municípios, sozinhos ou em parceria, conseguirem transformar a decisão legal em ação governamental efetiva.

Em outras palavras, as decisões de juízes e parlamentares são essenciais na democracia brasileira, mas lhes faltam os braços e pernas que garantem a efetividade do Estado brasileiro. Daí que articular os centros decisórios principais com a governança federativa é fundamental para produzir um projeto nacional atualizado.

Uma segunda razão que torna a governança federativa central para transformar o projeto nacional é que os políticos concorrem pelos partidos políticos, contudo, fazem-no para postos eletivos nos três entes da Federação. É por esse meio que constroem suas carreiras, pois, se não estiverem bem com as suas bases eleitorais territoriais, não ganham novas eleições.

Por isso que os deputados federais trabalharão menos no Congresso neste ano e se dedicarão mais às disputas municipais. Só que o bom funcionamento de cada nível de governo depende de uma boa engrenagem intergovernamental, de modo que aos políticos deveria interessar a melhor articulação entre o governo federal, os estados e os municípios. Hoje, os congressistas sabem disso no varejo, mas precisam compreender a importância disso no atacado, isto é, como um motor poderoso de transformação global da nação.

O argumento da relevância da governança federativa como fator essencial de construção de um novo projeto nacional completa-se com o fato de que mudar um país é transformar suas políticas públicas, e o sucesso destas no Brasil é muito relacionado à dinâmica intergovernamental. Quando se monta uma lista com os principais problemas e desafios brasileiros, o passo seguinte é formular a seguinte questão: como os três entes vão atuar nesse tema, em sua esfera e/ou de maneira articulada?

Experimente, leitor, refletir sobre as soluções de questões coletivas que mais chamaram a atenção no noticiário recente. A epidemia de dengue, por exemplo. Como lidar com ela? Parte importante passa pelo papel do Ministério da Saúde na articulação com as secretarias estaduais e municipais. Se esses laços federativos não forem bem amarrados ou o forem de forma desigual ao longo do território nacional, o resultado será um maior número de casos e mortes, como ocorreu, de forma bem mais trágica, no desastroso federalismo de confronto erigido pelo presidente Bolsonaro durante a pandemia de covid-19.

Pegue-se outro exemplo: a questão da segurança pública. Os estados têm todo o aparato policial, mas sozinhos não conseguirão vencer o crime organizado - até porque, mesmo com um efetivo bem maior, faltam aos governos estaduais instrumentos de inteligência policial e, muitas vezes, a neutralidade da burocracia frente aos criminosos para lidar com essa questão. O inverso também é problemático: não é suficiente ter um corpo profissional de policiais bem treinados no plano federal para resolver problemas num território tão grande e complexo. As forças federais têm tido um papel importante, todavia, se não tiverem a colaboração da burocracia subnacional, não capturam nem dois fugitivos de uma prisão de segurança máxima, mesmo com um contingente de centenas de policiais.

A lista de problemas centrais para o país que só podem ser equacionados com colaboração federativa é extensa. O federalismo cooperativo, que teve seu desenho geral proposto pela Constituição de 1998, sendo efetivado por reformas feitas principalmente pelos presidentes Fernando Henrique e Lula, ainda é bastante útil. Ele aparece em sistemas nacionais de políticas públicas como o SUS, que salvou o Brasil do desastre bolsonarista na pandemia. Só que esse modelo, muito marcado pela descentralização municipalista apoiada por mecanismos indutores do governo federal, já não é capaz de resolver sozinho novas demandas do século XXI. Acima de tudo, é preciso encaixar mais os governos estaduais nessa dinâmica, seja por um modelo decisório nacional mais compartilhado com os estados, seja aumentando o papel de coordenação federativa das unidades estaduais junto aos municípios.

Seguindo essa linha de raciocínio, uma proposta alvissareira foi feita pelo Ministério da Fazenda, que quer trocar a redução dos juros das dívidas estaduais pelo aumento do investimento estadual em educação profissional de ensino médio. Esse é um tema estrutural para o desenvolvimento brasileiro no século XXI. Tal modelo federativo pode ser aprofundado por outros setores do governo federal, abarcando muitas outras questões atualmente estratégicas. Para isso, dois caminhos institucionais são essenciais. O primeiro é aumentar a colaboração no processo decisório nacional, envolvendo mais os governos subnacionais na definição das políticas, bem como nas formas de parceria e tarefas de cada ente. O segundo parâmetro governativo diz respeito ao maior envolvimento dos governos estaduais na indução e coordenação de políticas municipais.

Por meio desses dois caminhos será possível construir uma governança federativa capaz de lidar com assuntos mal resolvidos e extremamente relevantes para o Brasil atual. Temas que precisam de uma gestão municipal forte, mas que necessitam de forte coordenação e colaboração entre os estados e os governos locais: primeira infância, mudança climática, expansão da educação inclusiva, promoção de polos intermunicipais para formar e gerenciar o capital humano na saúde, ampliação de aterros sanitários e de saneamento para as pequenas cidades, combate à vulnerabilidade em áreas remotas da Amazônia e definição de modelos de desenvolvimento regionalizado num país em que não é possível ter um único modelo de atividade econômica.

A mudança da governança federativa também passa pela articulação governo federal-estados, cujo principal tema que hoje bloqueia um futuro melhor é o combate ao crime organizado. Para enfrentar essa difícil questão, a coordenação entre a União e os governos estaduais terá de ser muito forte e institucionalizada. Não bastam ações pontuais. É preciso uma agenda de engrenagem intergovernamental de longo prazo.

Se o governo Lula procura uma agenda de futuro para chamar de sua, eis aqui uma bem poderosa. Se os congressistas querem ser protagonistas, a chance está nesta proposta de grande transformação da dinâmica federativa. Se a sociedade quer ir além da polarização e pensar não apenas no governo de plantão, mas nas próximas décadas, a governança colaborativa da Federação pode ser um caminho frutífero para termos um projeto nacional robusto para o século XXI.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.

 

2 comentários:

Alfredo Maciel da Silveira disse...

Tomara que avance a discussão. De minha parte, aponto o Art 174 e seu parag. 1º, sobre o Planejamento Indicativo.

Daniel disse...

Uma boa visão de futuro, pra ser discutida e implementada!