sexta-feira, 19 de abril de 2024

José de Souza Martins* - A conspiração

Valor Econômico

A ação antidemocrática nos indica um consistente ativismo para desmobilizar a vigilância crítica dos que se recusam a ser tratados como tolos e politicamente imaturos

Não passa um dia sem que a agitação extremista antidemocrática deixe de comparecer à pauta da nossa paciência, como entrelinha invasora das informações e debates sobre os acontecimentos significativos da vida cotidiana das pessoas comuns. Os resíduos do golpe de Estado de 1964 ainda conspiram contra a democracia e os direitos sociais. Indicam-no evidências, como as de 8 de janeiro de 2023, de tratamento do povo brasileiro como um povo carneiril.

De tanto repetir-se, a agitação subversiva contra as instituições se naturaliza pela teimosia de sua reiteração. A sociedade brasileira vai ficando sem alternativas para situar o que de fato é relevante e o que é irrelevante na vida do país. Sobretudo o que é intencionalmente produzido para deturpar e minimizar o nosso penoso retorno à ordem.

Os mais desprovidos de discernimento e mais vulneráveis à manipulação ideológica e autoritária vão sendo induzidos a aceitar a banalização de nossa identidade de povo que a duras penas se formou numa história social de adversidades e desafios.

A ação antidemocrática basicamente nos indica um consistente ativismo para desmobilizar a vigilância crítica dos partidários da democracia e dos que se recusam a ser tratados como tolos e politicamente imaturos.

Agitadores e suspeitos de autoria e promoção da baderna, no entanto, têm sido contidos pela vitalidade das instituições e do protagonismo cívico dos defensores da Constituição e das leis. Os cansativos atores do circo da ilegalidade querem convencer os expectadores, no entanto, de que são vítimas de uma ditadura de esquerda.

A temida democracia que, ao enquadrá-los na lei, estaria se opondo ao anarcoliberalismo e à liberdade de alguns de tramarem contra o direito de todos. Associaram-se a agitadores internacionais que defendem como legitimamente democrática a difusão de valores negativos e princípios reacionários, antissociais e nazistas, caso da proclamação do direito ao ódio.

Estão em peregrinação por diferentes cantos do mundo para denunciar o governo brasileiro como uma ditadura de esquerda que lhes tolhe o direito de expressar, defender e praticar sua opção supostamente conservadora pelo ódio, pela tirania, pelo autoritarismo e pela morte, como se viu no modo criminoso e irresponsável de lidar com a pandemia.

Na verdade, nem os bolsonaristas, nem os seus simpatizantes e cúmplices, civis, religiosos e militares, são conservadores. Eles não têm o menor conhecimento do que é isso. São reacionários de forte inclinação fascista, despistados, vítimas não das instituições, mas de si mesmos e dos seus mentores e manipuladores.

O Brasil já conheceu, no Império, a grande tradição conservadora, no equilibrado balanço de gestão política alternativa do país pelos conservadores e liberais. Os liberais propondo inovações políticas e sociais e os conservadores realizando-as no marco do consenso negociado, como observou Euclides da Cunha na aguda compreensão que desenvolveu a respeito da realidade brasileira.

Entre nós esse balanço se expressou na ação política e econômica de grandes figuras como a de Antonio da Silva Prado, de família de grandes empresários originada no século XVIII. Ele foi o grande arquiteto da abolição da escravatura, cujo humanismo convergia com o de Joaquim Nabuco, quem melhor viu a extensão dos danos antissociais da escravidão relacionados com seus danos econômicos. Os fundamentos do atraso brasileiro, que residualmente persistem em anomalias como a onda autoritária do presente e o anticapitalismo da direita.

Um dos episódios desse delírio foi o da manifestação de bilionário sul-africano, empresário, dono de conhecida rede social, que, contrariado na sua insólita economia da manipulação das necessidades ideológicas dos toscos e irresponsáveis, prometeu desobedecer as ações e normas emanadas do TSE e do ministro Alexandre de Moraes. Com o reforço do presidente argentino, que, na falta de problemas em seu país, dispôs-se a colaborar com o empresário sul-africano no “conflito” com o STF.

O embaralhamento de temas irrelevantes com temas fundamentais da cidadania tem permitido aqui sobrerrepresentação de agitadores no Congresso. Base política de ações contra a ordem convencionada na Constituição de 1988. Como a dos que foram, sem êxito, à Câmara dos Deputados dos EUA pleitear medidas contra o Brasil por ser o nosso país suposta ditadura de esquerda. À custa do dinheiro público, esses grupos estão na Europa pleiteando o seu reconhecimento como vítimas dessa ditadura.

Atuam como agentes estrangeiros infiltrados na democracia brasileira, para defender um liberalismo superficial e interesseiro, contrário ao nosso direito de povo livre e soberano.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. É autor de, entre outros livros, “Capitalismo e escravidão na sociedade pós-escravista” (Editora Unesp, São Paulo, 2023).

 

Nenhum comentário: