Valor Econômico
A ação antidemocrática nos indica um consistente ativismo para desmobilizar a vigilância crítica dos que se recusam a ser tratados como tolos e politicamente imaturos
Não passa um dia sem que a agitação
extremista antidemocrática deixe de comparecer à pauta da nossa paciência, como
entrelinha invasora das informações e debates sobre os acontecimentos
significativos da vida cotidiana das pessoas comuns. Os resíduos do golpe de
Estado de 1964 ainda conspiram contra a democracia e os direitos sociais.
Indicam-no evidências, como as de 8 de janeiro de 2023, de tratamento do povo
brasileiro como um povo carneiril.
De tanto repetir-se, a agitação subversiva
contra as instituições se naturaliza pela teimosia de sua reiteração. A
sociedade brasileira vai ficando sem alternativas para situar o que de fato é
relevante e o que é irrelevante na vida do país. Sobretudo o que é
intencionalmente produzido para deturpar e minimizar o nosso penoso retorno à
ordem.
Os mais desprovidos de discernimento e mais
vulneráveis à manipulação ideológica e autoritária vão sendo induzidos a
aceitar a banalização de nossa identidade de povo que a duras penas se formou
numa história social de adversidades e desafios.
A ação antidemocrática basicamente nos indica um consistente ativismo para desmobilizar a vigilância crítica dos partidários da democracia e dos que se recusam a ser tratados como tolos e politicamente imaturos.
Agitadores e suspeitos de autoria e promoção
da baderna, no entanto, têm sido contidos pela vitalidade das instituições e do
protagonismo cívico dos defensores da Constituição e das leis. Os cansativos
atores do circo da ilegalidade querem convencer os expectadores, no entanto, de
que são vítimas de uma ditadura de esquerda.
A temida democracia que, ao enquadrá-los na
lei, estaria se opondo ao anarcoliberalismo e à liberdade de alguns de tramarem
contra o direito de todos. Associaram-se a agitadores internacionais que
defendem como legitimamente democrática a difusão de valores negativos e
princípios reacionários, antissociais e nazistas, caso da proclamação do
direito ao ódio.
Estão em peregrinação por diferentes cantos
do mundo para denunciar o governo brasileiro como uma ditadura de esquerda que
lhes tolhe o direito de expressar, defender e praticar sua opção supostamente
conservadora pelo ódio, pela tirania, pelo autoritarismo e pela morte, como se
viu no modo criminoso e irresponsável de lidar com a pandemia.
Na verdade, nem os bolsonaristas, nem os seus
simpatizantes e cúmplices, civis, religiosos e militares, são conservadores.
Eles não têm o menor conhecimento do que é isso. São reacionários de forte
inclinação fascista, despistados, vítimas não das instituições, mas de si
mesmos e dos seus mentores e manipuladores.
O Brasil já conheceu, no Império, a grande
tradição conservadora, no equilibrado balanço de gestão política alternativa do
país pelos conservadores e liberais. Os liberais propondo inovações políticas e
sociais e os conservadores realizando-as no marco do consenso negociado, como
observou Euclides da Cunha na aguda compreensão que desenvolveu a respeito da
realidade brasileira.
Entre nós esse balanço se expressou na ação
política e econômica de grandes figuras como a de Antonio da Silva Prado, de
família de grandes empresários originada no século XVIII. Ele foi o grande
arquiteto da abolição da escravatura, cujo humanismo convergia com o de Joaquim
Nabuco, quem melhor viu a extensão dos danos antissociais da escravidão
relacionados com seus danos econômicos. Os fundamentos do atraso brasileiro,
que residualmente persistem em anomalias como a onda autoritária do presente e
o anticapitalismo da direita.
Um dos episódios desse delírio foi o da
manifestação de bilionário sul-africano, empresário, dono de conhecida rede
social, que, contrariado na sua insólita economia da manipulação das
necessidades ideológicas dos toscos e irresponsáveis, prometeu desobedecer as
ações e normas emanadas do TSE e do ministro Alexandre de Moraes. Com o reforço
do presidente argentino, que, na falta de problemas em seu país, dispôs-se a
colaborar com o empresário sul-africano no “conflito” com o STF.
O embaralhamento de temas irrelevantes com
temas fundamentais da cidadania tem permitido aqui sobrerrepresentação de
agitadores no Congresso. Base política de ações contra a ordem convencionada na
Constituição de 1988. Como a dos que foram, sem êxito, à Câmara dos Deputados
dos EUA pleitear medidas contra o Brasil por ser o nosso país suposta ditadura
de esquerda. À custa do dinheiro público, esses grupos estão na Europa
pleiteando o seu reconhecimento como vítimas dessa ditadura.
Atuam como agentes estrangeiros infiltrados
na democracia brasileira, para defender um liberalismo superficial e
interesseiro, contrário ao nosso direito de povo livre e soberano.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor
Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar,
da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador
Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. É autor de, entre
outros livros, “Capitalismo e escravidão na sociedade pós-escravista” (Editora
Unesp, São Paulo, 2023).
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