Valor Econômico
A profissionalização e a adoção de modelos de
gestão consistentes, como em boa medida ocorreu no SUS, são fundamentais para
que a cooperação federativa na segurança pública não seja mero discurso
A relação do crime organizado com o Estado
brasileiro se tornou um tema estratégico para o presente e o futuro do país. A
prisão dos mandantes da morte de Marielle, a fuga de dois membros do Comando
Vermelho de presídio federal de segurança máxima e a investigação sobre os
tentáculos do PCC na administração pública em São Paulo revelam que as facções
criminosas só são fortes porque seu negócio, o crime, está cada vez mais
interligado com ação ou inação do aparelho estatal. Essa deveria ser a agenda
prioritária da segurança pública do país, em vez de projetos aporofóbicos e sem
embasamento em evidências, como a “Lei da Saidinha” e a PEC sobre as drogas.
É estarrecedor como os políticos e parcela da sociedade compraram um modelo demagógico para combater a criminalidade e a sensação crescente de insegurança. Há uma miopia enorme que gera decisões que, ao fim e ao cabo, somente vão fortalecer o crime organizado. Fim da “saidinha” e criminalização da posse e porte de drogas em qualquer quantidade terão como principal resultado o crescimento da população prisional, especialmente de pessoas pobres e negras. Isso só fortalece ainda mais as facções criminosas, que precisam de um exército de gente sem direitos nem esperança, produzindo assim uma máquina do crime cada vez mais poderosa.
O foco não deveria ser leis penais mais
rígidas desenhadas para atingir basicamente os mais pobres. Da classe média
para cima ninguém será preso por porte de drogas. Basta visitar as festas de
jovens abastados ou da alta sociedade paulistana, carioca ou brasiliense para
saber como o ilícito usado por seus participantes é invisível para as forças
policiais. Assim, a descriminalização mais importante a ser discutida no país é
a da pobreza.
Tampouco o endurecimento da ação policial
resolverá a questão da criminalidade. A polícia paulista matou a torto e a
direito a população vulnerável da Baixada Santista, e o PCC continua exportando
suas drogas pelo porto de Santos. A política do “bandido bom é bandido morto”
defendida pelo secretário Derrite não reduziu os crimes contra o patrimônio que
ocorrem em São Paulo, que cresceram até no icônico bairro de Higienópolis. Há
clamores morais em prol do punitivismo e da mão forte - muitas vezes ilegal - das
polícias. Mas, ao final, produz-se incompetência em acabar com as raízes da
criminalidade e imoralidade de ampliar o fosso da desigualdade.
Estrategicamente, só há uma saída para
reduzir o peso da criminalidade sobre a sociedade brasileira: criar um projeto
estrutural e de longo prazo para combater o crime organizado, que é capaz de
afetar negativamente, e de forma ampla, o exercício da cidadania, a qualidade
da democracia e o desenvolvimento econômico sustentável do país. Tudo isso
acontece porque o Estado foi atingido em cheio por esse fenômeno.
Há duas formas de intromissão do crime
organizado na atividade estatal: enfraquecendo as políticas públicas e gerando
um relacionamento promíscuo com a política. Atuando nos dois campos, as facções
criminosas reduzem a capacidade governamental de enfrentá-las. De um lado,
amedrontando ou aliciando pessoas para servir ou comprar serviços de suas
organizações e, de outro, corrompendo policiais e políticos para garantir
salvo-conduto na prática diária de seus crimes.
Mais especificamente, o crime organizado
afeta as políticas públicas de quatro modos. O primeiro é interferindo na
provisão de serviços básicos à população, como fazem as milícias no Rio de
Janeiro, prática que está se expandindo para várias partes do país. Em
determinados territórios, o Estado e/ou concessionárias estão perdendo a
batalha para as facções. Esses grupos mafiosos amedrontam a população para que
ela seja obrigada a gastar boa parte de sua renda para pagar fornecedores
ilegais de internet, água, gás, energia elétrica e tudo o que for possível de
extorquir dos mais pobres. Cidadãos de áreas periféricas têm seus direitos
vilipendiados sem que nenhuma força republicana consiga estancar essa enorme
violência.
O segundo modo realiza-se pelo fortalecimento
de atividades econômicas ilícitas para alavancar mais riqueza e, sobretudo,
lavar dinheiro. O crime organizado é uma máquina de fazer negócios ilegais
travestidos de legalidade. Mais uma vez as políticas públicas estão perdendo a
batalha. Neste caso, estão sendo ineficazes para garantir e estimular o
crescimento das empresas e do empreendedorismo sobre bases concorrenciais
justas. O quanto o crime organizado está infiltrado do pequeno ao grande
negócio no Brasil? Ninguém sabe o tamanho exato, mas quando facções dominam
empresas de ônibus que ganham bilhões de subsídios da Prefeitura de São Paulo
ou então se expandem em diversas atividades econômicas do mundo virtual, o
sinal é assustador para o capitalismo brasileiro.
As políticas públicas têm um terceiro front
de fragilidade frente ao crime organizado: a questão socioambiental. O Brasil
tem nesse tema um dos seus ativos econômicos e geopolíticos mais importantes.
Porém, atividades ilícitas extremamente violentas, como o tráfico de drogas, o
garimpo ilegal e o desmatamento, são um empecilho gigantesco, se não o maior, a
uma boa política ambiental. Mas não é só a natureza que sofre aqui. A população
desses locais degradados por facções criminosas é refém de uma lógica equivocada
de desenvolvimento, e enquanto o crime organizado dominar o pedaço,
dificilmente haverá apoio a modelos mais sustentáveis.
O ciclo de impactos do crime organizado nas
políticas públicas completa-se com um quarto elemento, o mais diretamente
ligado a esse processo. As facções são o principal veículo da violência e
insegurança que assolam o Brasil. Há crimes individualizados ou cometidos por
pequenos grupos autônomos, mas isso é bem residual no conjunto do fenômeno.
Obviamente que a organização cada vez mais efetiva dessas máfias, sua
capacidade em adquirir armas e usá-las, a força que têm nas prisões, além dos
negócios cada vez mais rentáveis, são aspectos que ampliam o seu poder.
Esse poderio, no entanto, só foi consolidado
porque parcela das forças policiais foi conquistada pela corrupção. Assim, é
cada vez mais difícil, em certos territórios, saber quem é polícia e quem é
bandido, para lembrar da dicotomia básica que aprendi na rua quando cresci na
periferia de São Paulo. Vale reforçar que policiais não só são comprados, como
também estabelecem “tributos” para pagamento dos criminosos - o “arrego” no Rio
de Janeiro e a “recolha” em São Paulo.
O impacto sobre as políticas públicas
ampliou-se demais nos últimos anos por uma razão mais perversa: a entrada do
crime organizado na política brasileira. Os recentes episódios envolvendo a
morte de Marielle e as prisões de empresários e políticos envolvidos com o PCC
mostram que essa temática poderá ter nos próximos anos o mesmo lugar central na
agenda pública que teve a Operação Lava-Jato na década passada. Mesmo tendo
cometido uma série de erros e ilegalidades, todas para favorecer politicamente
agentes do sistema de Justiça, a Lava-Jato teve como maior legado a mudança na
forma de financiamento eleitoral baseada nas trocas de dinheiro privado por
benefícios públicos.
Há um novo cenário hoje: o crime organizado,
junto com o golpismo de lideranças bolsonaristas, constitui um grande risco à
democracia brasileira. No início, esse fenômeno se circunscrevia a algumas
elites políticas locais e estaduais, especialmente no Rio de Janeiro, onde
políticos apoiaram as milícias em nome da ordem - gente do bolsonarismo faz
parte dessa história. A capacidade de se infiltrar na política cresceu
vertiginosamente nos últimos anos, inclusive substituindo com dinheiro ilícito
parte do financiamento privado que a classe política detinha no passado.
Vencer o crime organizado vai exigir um
grande esforço nacional, um dos maiores de nossa história. Tal como ocorreu na
maior frente ampla da política brasileira, que há 40 anos, completados nesta
semana, organizou a campanha das Diretas Já para acabar com a ditadura militar.
Líderes sociais, empresariais, religiosos e políticos vão ter de atuar
conjuntamente e publicamente gritar contra o crime organizado. Para tanto, será
necessário mudar estruturalmente a política de segurança pública, o que só será
possível implementando efetivamente, e não com medidas fragmentadas e
esporádicas, o Sistema Único de Segurança Pública, o SUSP, um modelo que pode
integrar o governo federal aos estados por meio de pactos institucionalizados e
de longo prazo.
Como lembra Renato Lima, presidente do Fórum
Brasileiro de Segurança Pública, a profissionalização e a adoção de modelos de
gestão consistentes, como em boa medida ocorreu no SUS, são fundamentais para
que a cooperação federativa na segurança pública não seja mero discurso. Por
essa linha, abandona-se o discurso demagógico que tem alimentado a discussão no
Congresso Nacional. A saída para combater o crime organizado não é acabar com a
“saidinha”, mas sim, um pacto amplo em torno de um SUSP efetivo. A pergunta
incômoda é saber se a sociedade, policiais e políticos estão preparados para
assumir essa bandeira. O medo maior é que parte do problema esteja no fato de
que haja mais gente importante ligada às facções criminosas do que
imaginaríamos nos nossos piores sonhos.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
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