Folha de S. Paulo
O silêncio como desculpa para não melindrar
casta melindrosa é tentativa inequívoca de lavagem da história do golpe militar
Nenhuma organização criminosa subsiste hoje
sem lavagem de dinheiro. E todo sistema de poder político precisa lavar a sua
história das origens criminosas, assim como da eventual trilha corruptiva na
estabilização de um Estado. Seja qual for sua natureza. O Vaticano tenta
há muito tempo lavar a Igreja do sangue derramado no escravismo, na queima
inquisitorial de milhões de mulheres e nos holocaustos de conquista, do mesmo
modo que as antigas potências coloniais, fazendo penitências. Ética hipócrita
do arrependimento.
Na memória dos 60 anos do golpe cívico-militar de 64 pesam sobre a consciência coletiva frases de síntese como a do general ao presidente militar: "As coisas estão melhorando depois que começamos a matar". Impossível de esquecer, uma dívida do Estado à Nação jamais paga. Por isso, o silêncio como desculpa para não melindrar uma casta melindrosa é tentativa inequívoca de lavagem da história. Na galega, sem arrependimento, corroborada pela apatia da Comissão dos Mortos e Desaparecidos, já a caminho do que antigamente se chamava obra de Santa Engrácia: começa, não termina. Há nesse remancho laivos do "temor servil" que Evaristo da Veiga incrustou na letra do Hino da Independência, musicado por D. Pedro 1º. O temor de agora é o da honesta mediação entre passado e presente.
Isso não é detalhe acadêmico. É ponto crucial
para o avanço do pensamento coletivo nacional, nos termos da concepção de que o
trabalho do pensador "é o de alinhavar as crenças velhas e as novas de
modo que essas crenças possam cooperar em vez de interferir umas nas
outras" (Richard Rorty,
em "A Filosofia e o Futuro"). Olhar de frente os conflitos entre
instituições herdadas e o desenho construtivo da nação define o princípio de
responsabilidade para com a alma racional contemporânea.
Enxergar os idos de 64 começa com a precisão
terminológica de não trocar revolução por golpe de Estado, o que foi. Depois,
reconhecer o arbítrio das cassações, a brutalidade das torturas, as matanças, a
inépcia econômica. E o mais ominoso para a consciência cívica: golpismo como
sombra espúria da institucionalização da tutela militar sobre a cidadania. É
como se a pedagogia do terror fosse a única mensagem do passado ao futuro.
Lavar a história equivale ao medo de encarar
os crimes e a cumplicidade com a dialética negativa de uma instituição que
prospera na inércia histórica, em que nada mudará se não mudarem as convicções
petrificadas sobre a essência nacional. Sem a verdade dos fatos não se pode
conhecer a posição real das Forças no jogo democrático. Hoje, uma releitura do Hino da Independência colocaria no lugar do
domínio luso a anacrônica e armada colonização interna. Longe vá, temor civil.
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