Valor Econômico
Extrema direita se vale da enchente de 1941
para rechaçar as evidências de maior frequência de catástrofes naturais e negar
as agressões ao meio ambiente como uma das causas da tragédia gaúcha
No dia 14 de maio, o deputado Alceu Moreira
(MDB-RS) subiu à tribuna da Câmara para fazer um discurso sobre a enchente em
seu estado. Naquele dia, novas chuvas tinham elevado mais uma vez as águas e
provocado ondas no rio Guaíba. Depois de pedir R$ 100 bilhões para a
recuperação do estado, o deputado fez um desabafo sobre a abordagem que
recebera à entrada do plenário.
“Um grupo de canalhas, ali no corredor do
Congresso, foi me fazer críticas como se eu fosse responsável pela catástrofe.
Em 1941, houve uma enchente nos mesmos moldes. Será que foi o efeito estufa?
(...) Trazer à tona os projetos ambientais agora e atribuir-me a culpa da
tragédia, como se eu fosse algoz do que está acontecendo, é uma covardia, uma
canalhice”, disse, ao concluir o discurso.
Minutos antes, Moreira tinha respondido a uma abordagem sobre o PL 364/2019, de sua autoria, que está em tramitação na Câmara. O projeto retira a proteção de campos nativos e coloca em risco 48 milhões de hectares em todo o país (soma das áreas do Paraná e Rio Grande do Sul), 32% dos quais nos pampas gaúchos - “Isso é pra forçar o discurso de ambientaloide esquerdopata que é contra nós”, respondeu.
Ao lado de Luis Carlos Heinze e Jerônimo
Goergen, ambos do PP do Rio Grande do Sul, Moreira compõe a trinca de
parlamentares gaúchos mais atuantes da bancada ruralista. Heinze apresentou
três emendas ao projeto de licenciamento ambiental já aprovado na Câmara, uma
delas dispensa a exigência do Cadastro Ambiental Rural na autorização de
retirada de vegetação para empreendimentos de transporte e energia. Já Goergen
é autor do PL 399/2022, que autoriza a construção de barragens nas margens para
fins de irrigação, proposta parecida com aquela que foi aprovada no Rio Grande
do Sul um mês antes das enchentes.
A remissão à enchente de 1941 tornou-se a
resposta mais frequente desses parlamentares aos questionamentos sobre o
impacto do aquecimento global sobre a catástrofe ambiental gaúcha. O argumento
é o de que, se o estado já havia sido devastado 83 anos atrás, quando o
problema não se apresentava, não se pode dizer que seja a causa desta nova
enchente.
É assim que dobram a aposta no negacionismo.
Aquela enchente elevou o Guaíba a 4,75 metros. Até então a maior elevação
registrada tinha sido de 3,5 metros, em 1873. A deste ano chegou a 5,33 metros.
Apesar dos jornais descreverem a reação bem-humorada de uma população
acostumada a inundações - “A criançada então aproveita o flagelo para motivo de
uma grande festa. Solta-se e transforma as ruas em ótimas piscinas públicas,
numa algazarra infernal. São os donos das ruas” (“Correio do Povo”, 3/5/1941) -
70 mil pessoas ficaram desabrigadas, 25% da população da capital à época.
A enchente em Porto Alegre não foi um evento
climático isolado naquele ano. O jornalista Leandro Staudt, do “Zero Hora”,
publicou as fotos de Caxias do Sul coberta de neve em maio de 1941. Em São
Francisco de Paula, a 113 km de Porto Alegre, a neve chegou a 75 cm de altura.
Ao longo de 24 dias, a chuva acumulada foi de
600 mm. Desta vez, a precipitação foi mais concentrada, de 200 mm sobre Porto
Alegre em apenas três dias e, segundo o governador Eduardo Leite disse
reiteradas vezes no Roda Viva, de 1000 mm em pouco mais de uma semana na região
dos afluentes do Guaíba. Foi esta concentração que dificultou a vazão, não a
intensidade dos ventos, como sugerem quatro pesquisadores da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul em artigo sobre aquela cheia. E essa concentração
pluviométrica estaria relacionada ao bloqueio da frente fria que chegou ao Sul
no fim de abril pela massa de ar quente estacionada no Centro-Oeste e no
Sudeste, a seca na Amazônia, que desloca a umidade da floresta tropical para o
resto do país e o El Niño, que traz mais umidade para o Sul.
Não há, porém, unanimidade sobre a relação
causal entre o aquecimento global e a enchente. À BBC Brasil, um dos autores do
artigo, Pedro Jardim, resiste a fazer uma ligação direta, mas reconhece que a
frequência de enchentes no estado confirma as projeções sobre as mudanças
climáticas na região. Na análise do ClimaMeter sobre as inundações, há 15% mais
chuvas hoje do que nas décadas anteriores. Os dados dos pesquisadores da UFRGS
são de que, das quatro maiores cheias já registradas em Porto Alegre, três ocorreram
nos últimos nove meses. Ou seja, eventos extremos, que um dia foram episódicos,
agora são frequentes.
As ponderações científicas, que tendem mais a
um mosaico de explicações do que às conclusões peremptórias, abre brechas para
que os negacionistas de plantão usem a enchente de 1941 como combustível para a
desinformação - não apenas os robôs da extrema direita como seus dirigentes.
Foi o que aconteceu, por exemplo, com o
embate em torno da manutenção do sistema antienchente de Porto Alegre. Na
semana passada, um grupo de 48 técnicos elaborou um manifesto com sugestões
para o escoamento imediato das águas que, três semanas depois do início da
enchente, permaneciam no centro e na zona norte de Porto Alegre.
O documento parte do pressuposto de que o
sistema, projetado por engenheiros alemães e construído pelo Departamento
Nacional de Obras de Saneamento nos anos 1970, funciona e, se não deu conta, é
porque lhe faltou manutenção. Projetado para conter a elevação do rio Guaíba
até seis metros acima do nível do mar, tendo em vista a histórica cheia de
1941, quando a cota chegou a 4,75 metros, o sistema conta com diques, 14
comportas e 23 casas de bombas.
Na sexta-feira, o prefeito da capital gaúcha
recebeu representantes de um grupo de técnicos que, na véspera, lhe havia
enviado um documento de 10 páginas com as soluções imediatas e de mais longo
prazo para as enchentes. Sebastião Melo, um advogado filiado ao MDB desde a
ditadura, que ocupou seu primeiro cargo na prefeitura como vice de José
Fortunati (2013-2016), e se notabilizou, na pandemia, por aderir ao “kit
covid”, com remédios de eficácia não comprovada, foi cordato, mas contestou a
ausência de investimentos na manutenção do sistema.
Apresentou gastos de R$ 592 milhões no
Departamento Municipal de Águas e Esgotos (Dmae), que não convenceram os
técnicos de que haviam sido destinados para a estrutura, e disse que o sistema
antienchente havia falhado não pela falta de manutenção, mas por ser
ultrapassado. Vicente Rauber, um engenheiro eletricista que dirigiu o antigo
Departamento de Esgotos Pluviais, absorvido pelo Dmae, estava na comitiva e
argumentou que o “tempo de recorrência”, estimado para o sistema, ou seja, sua
durabilidade, era de 100 anos. Como data da década de 1970, estaria, portanto,
no meio de sua vida útil.
Como houve um processo acelerado de
impermeabilização do solo, não apenas na capital, mas ao longo do curso dos
rios que deságuam no Guaíba, se fazia necessária uma modernização de 13 das 23
bombas e, de fato, em 2014, a Prefeitura de Porto Alegre conseguiu da União R$
124 milhões com esse objetivo. Corria o governo Dilma Rousseff. O processo de
liberação dos recursos atravessou seu impeachment, o governo Michel Temer e só
foi efetivado no primeiro ano da gestão Jair Bolsonaro.
E esse foi o único ponto em que Melo e os
técnicos concordaram. Os recursos chegaram, mas, como não foram apresentados os
documentos necessários à liberação pela Caixa Econômica Federal, foram
devolvidos. Melo era deputado estadual e acompanhou o bate-volta, ocorrido na
gestão de seu antecessor, Nelson Marchezan (PSDB).
Uma das sugestões contidas no documento, a
instalação de bombas volantes para a drenagem de emergência, foi viabilizada no
dia 17, com o envolvimento do ministro extraordinário da reconstrução do Rio
Grande do Sul, Paulo Pimenta, e o Dmae. Foram negociadas bombas com a Sabesp e
com as obras federais no Ceará e em Alagoas da transposição do rio São
Francisco.
Assim como o disputado resgate do cavalo
Caramelo, em Canoas, Região Metropolitana de Porto Alegre, foi feito pelo Corpo
de Bombeiros de São Paulo, as primeiras bombas também foram as da Sabesp. O
governador paulista, Tarcísio de Freitas, respondeu prontamente à emergência
que se apresentou e assim demonstrou o quanto o Rio Grande do Sul se
transformou num palco da disputa política só reforçado com a nomeação do
ex-ministro da Secom, Paulo Pimenta, pré-candidato ao governo gaúcho, para a
representação federal de enfrentamento à tragédia.
A atuação do governo paulista permitirá que a direita, na defensiva pela acusação de estar por trás de notícias falsas como a colocação da logomarca do governo federal em cestas básicas enviadas ao estado, a rejeição da ajuda do governo português ou a apreensão de retroescavadeiras pelo Ibama, dispute com o governo Lula a proatividade nesta tragédia eximindo-se das falhas e terceirizando as omissões ao governo federal. Fora do poder na prefeitura da capital, no governo estadual e do federal, o bolsonarismo enfrentará o fortalecimento natural, numa crise do gênero, de quem está no poder e tem os meios para agir. Por isso, segue com um pé na canoa do governador paulista e outra na das notícias falsas.
3 comentários:
Maria Cristina: sensata como vc costuma ser, considere a possibilidade de que o aquecimento terráqueo atual não seja causado simplesmente pelo aumento do CO2, visto que há 5 ou 6 fatores outros a contribuir para isso. E mais: a previsão de mil cientistas mundiais, contrária à do IPCC da ONU, é de que estaríamos entrando numa fase de esfriamento do Planeta. O aquecimento atual seria apenas um preâmbulo da gelificação em curso. Abçs.
Excelente! Realmente deve haver outros fatores para o suposto aquecimento global.
Desequilíbrio ambiental seria o termo mais apropriado.
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