Folha de S. Paulo
A manutenção do patriarcado está na raiz da
feroz política de Estado antifeminista
"Homens sem mulheres, uma piada
cruel", esta frase de história passada num campo de prisioneiros aliados
na Segunda
Guerra pode ser interpretada como machista. Seria mera queixa
de carência sexual. No texto, porém, soa como aguda reflexão sobre a condição
masculina entregue a si mesma, sem a alteridade feminina.
A democracia liberal e a vulgarização da psicanálise habituaram a consciência moderna a apostar na diferença genital como marca exclusiva de uma ética da alteridade sexual. No entanto, "há situações em que a diferença não é a priori recusa de similaridade" (Achile Mbembe em "La Domination Universelle"). Quer dizer, é preciso buscar além da genitalidade pontos comuns entre os sexos.
Esses pontos são recusados pelo
patriarcalismo, dominação libidinal do corpo do outro (a mulher, o escravo),
reduzindo-o à relação genital. Sabe-se que os escravistas islâmicos davam nomes
femininos (Jasmine e outros) a seus escravos para melhor domínio dos corpos
submetidos. Não existe colonialismo nem escravismo sem submissão corporal aos
colonizadores. Vale residualmente para as esposas do período colonial, as
sinhás.
Donde outro sentido para "homens sem
mulheres". Na gaiola patriarcal elas são culturalmente anuladas, pois o
feminino é princípio simbólico maior do que a reprodução. A comparação
materialista da mulher ao operário por produzir humanidade ainda é uma redução
cruel. A percepção disso nas lutas feministas intensifica-se com o sentimento
de que a maternidade persiste como situação neocolonial, isto é, dentro de uma
velha constelação masculina de poder.
Isso não acontece sem violência. A manutenção
do patriarcado está na raiz da feroz política de Estado antifeminista. No Afeganistão,
o Talibã apagou a figura da mulher na cena pública. Nas ditaduras petrolíferas,
uma fálica arquitetura erige-se à sombra de tenebrosa opressão feminina. No
Irã, velhos enforcam jovens por cabelos à mostra. O machismo, paixão moral pelo
duplo anatômico de si mesmo, evidencia temor mítico e ódio ao feminino. Mas
também expõe a conexão profunda do patriarcado com o racismo, na medida em que
a diferença sexual termina concebendo mulher como raça além da masculina.
Só que nada impede as mutações orgânicas do
sexo e do gênero, cujo horizonte é a autonomia corporal. Essa é a meta política
de uma frente inovadora de luta, em que mudar o mundo implica reumanizar-se,
mudar a si mesmo. Isso já transparece na reação social à leniência para com
estupradores. Na memória coletiva ainda ressoa a permissão abjeta de um
governador: "Estupra, mas não mata!" Entre nós, um sórdido projeto de
lei antiaborto, leia-se defesa do estupro, retornou à cloaca.
Espera-se que seus autores tenham o mesmo destino.
Um comentário:
Concordo.
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