Violência desigual exige ação do governo federal
O Globo
Homicídios caíram no Sul e Sudeste, mas
índices pioraram nas demais regiões, revela estudo
O Brasil é desigual até nos índices de
criminalidade. De acordo com o Atlas da Violência divulgado
pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)
e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), enquanto Sul e Sudeste
apresentavam em 2022 taxas de homicídio declinantes, Norte, Nordeste e
Centro-Oeste registravam números ascendentes.
São Paulo mais
uma vez ostenta a menor taxa de homicídios da Federação (6,8 por 100 mil
habitantes). Em seguida, aparecem Santa Catarina (9,1), Distrito Federal
(11,4), Minas Gerais (12,5), Rio Grande do Sul (17,1), Mato Grosso do Sul
(19,7), Rio de
Janeiro (21,4), Paraná (22,3), Goiás (23,1) e Piauí (24,1),
todas abaixo ou pouco acima da média nacional (21,7).
No outro extremo figura a Bahia, estado que nos últimos anos tem enfrentado grave crise na segurança. Com 45,1 homicídios por 100 mil habitantes, concentra seis das dez cidades mais letais do país: Jequié — a mais violenta (88,8) —, Santo Antônio de Jesus, Simões Filho, Camaçari, Feira de Santana e Juazeiro. Completam a lista fatídica Cabo de Santo Agostinho (PE), Sorriso (MT), Altamira (PA) e Macapá (AP), todas com taxas acima de 68 por 100 mil, mais que o triplo da média nacional.
Chamam a atenção também as altas taxas de
estados do Norte. O Amazonas tem a
segunda maior (42,5), seguido por Amapá (40,5) e Roraima (38,6). O assassinato
do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, que chocou o país
dois anos atrás, é um sintoma da violência que há muito explodiu na região,
onde todos os crimes se entrelaçam. Fica evidente que o problema nesses estados
vai além de desmatamento, pesca predatória, grilagem, garimpo ilegal e invasão
de terras indígenas. Com tudo isso se misturam o tráfico de drogas e a guerra
entre organizações criminosas.
As poderosas facções de São Paulo e Rio de
Janeiro hoje disputam o controle de pontos de venda de drogas com as do Norte e
Nordeste, criando um ambiente propício para mais assassinatos. Episódios de
violência que costumavam estar associados a estados do Sudeste se espalharam
pela região. Na madrugada da última quinta-feira, oito pessoas foram mortas e
uma ficou ferida numa praça do centro de Viçosa, cidade de 60 mil habitantes no
interior cearense. Imagens de câmeras de segurança mostram que as vítimas foram
colocadas lado a lado com as mãos entrelaçadas atrás da cabeça antes de ser
executadas. Foi a segunda chacina no município desde 2021.
A União não pode continuar ignorando esse
tipo de episódio como se nada tivesse a ver com a segurança pública. Segundo o
Atlas, 46.409 brasileiros foram assassinados em 2022. Consideradas as mortes
violentas por causa indeterminada, o número vai a 52.391, ou 143 assassinatos
por dia. A situação pode não ter piorado, mas também não melhorou. As taxas de
homicídio têm permanecido estáveis nos últimos anos.
Em diferentes regiões, vastas áreas são
controladas por organizações criminosas que impõem violência e terror à
população. Deveria ser óbvio para o Palácio do Planalto que os estados — em
especial os do Norte e do Nordeste — não têm orçamento ou recursos humanos e
materiais para enfrentar o crime organizado. O governo federal precisa dar uma
resposta à sociedade.
Novos fluxos comerciais trazem incerteza à
política externa brasileira
O Globo
Fratura entre China e EUA pode custar até 7%
do PIB global, diz FMI. Brasil precisa manter equilíbrio
O peso do comércio de mercadorias, medido
como fatia do PIB mundial, tem se mantido relativamente estável nos últimos
anos, entre 41% e 48%. Mas, ao sair da superfície e examinar outros
indicadores, percebe-se que as relações comerciais estão numa transformação
inédita desde pelo menos o fim da Guerra Fria. Questões geopolíticas têm sido
críticas para definir os fluxos de comércio e investimento, com implicações que
o Brasil não pode desconsiderar.
Nos Estados
Unidos, há um consenso entre os dois principais partidos políticos
de que a China é
o maior adversário no tabuleiro global. Isso explica por que a participação
chinesa nas importações americanas caiu 8 pontos percentuais entre 2017 e 2023.
Depois da invasão da Ucrânia há dois anos, o comércio entre a Rússia e os
países do Ocidente também entrou em colapso.
Parte da queda nas trocas comerciais entre
americanos e chineses tem sido atenuada com a ajuda de países intermediários,
notadamente México e Vietnã. Os chineses têm aumentado as exportações e os
investimentos nesses “corredores” e, ao mesmo tempo, eles têm vendido mais ao
mercado americano. Como reconhece uma análise recente do Fundo Monetário
Internacional (FMI), é difícil prever se o movimento continuará a ser tolerado
pelos Estados Unidos. “O caminho à frente dependerá dos políticos. Eles podem
aceitar esse redirecionamento do comércio e do investimento, a fim de preservar
alguns dos ganhos da integração econômica, ou podem continuar a levantar
barreiras”, afirma o documento.
A primeira opção é a mais desejável. Não são
boas as previsões de um mundo dividido entre um bloco liderado pelos Estados
Unidos, outro pela China e um terceiro formado por países não alinhados. A
interconexão planetária hoje é bem mais profunda que no início da Guerra Fria.
Num caso extremo de fragmentação, os prejuízos provocados por quedas nos fluxos
de comércio poderiam chegar a 7% do PIB global, segundo o FMI. Os fluxos de
investimento estrangeiro também seriam afetados, com redução de longo prazo. Em
contrapartida, se as relações se estabilizarem em condições menos drásticas, as
perdas comerciais ficariam em 0,2% do PIB global.
As incertezas são um desafio para o Brasil.
Nossa política
externa deveria estar baseada na premissa de que desmantelar a
globalização será prejudicial a todos. Em caso de retrocesso, deve-se buscar,
dentro do raio de ação possível, a opção mais amena. A situação atual exige uma
dose extra de discernimento. Com os Estados Unidos e Europa, dividimos laços
históricos e valores democráticos, além de mantermos alianças em áreas
distintas, inclusive a militar. Ao mesmo tempo, temos na China nosso maior
parceiro comercial e uma fonte de investimento fundamental. Nestes tempos de
incerteza geopolítica, a política externa deve sempre procurar manter o
equilíbrio, em nome do interesse nacional.
Riscos climáticos exigem mais planejamento e
ação
Valor Econômico
Áreas prioritárias como Defesa Civil são
submetidas a dotações irrisórias, ainda assim nem sempre utilizadas
Mais desastres climáticos se avizinham,
depois da tragédia das águas que provocou enorme destruição e 177 mortes no Rio
Grande do Sul. O Ministério do Meio Ambiente chamou atenção para nova seca
devastadora no Pantanal, cuja estação de chuvas foi decepcionante, e o bioma já
está sendo abatido por incêndios antes mesmo da estação seca. Na Amazônia, os
focos de fogo duplicaram de janeiro a maio em relação a 2023. Esse padrão
desolador tende a se repetir com mais frequência, alertam os cientistas: a
maior parte do território brasileiro será assolada por fortes secas e, no Sul e
Sudeste, por chuvas tão intensas como as que caíram no Rio Grande do Sul. A
iminência de mais e mais fenômenos climáticos extremos torna incontornável a
elaboração, a execução e a preparação de planos de prevenção em larga escala,
tarefa com a qual o país nunca se preocupou de fato e que terá de enfrentar.
Pela primeira vez, a Agência Nacional de
Águas reconheceu “situação crítica” na bacia do Rio Paraguai, onde todos os
afluentes estão abaixo do nível normal esperado para a época. Choveu apenas 60%
do que deveria no período das cheias e os rios do Pantanal estão com seus
níveis mais baixos desde 2020. Este foi um ano fatídico para a maior planície
alagada do mundo, palco de 22 mil queimadas - 60% delas causadas pelas
atividades agropastoris, segundo a ONG WWF (World Wide Fund for Nature) - que
aniquilaram 40 mil km2 da vegetação, ou inacreditáveis 27% da cobertura vegetal
do bioma.
Mais agruras estão reservadas agora para ele.
As queimadas começaram mesmo no período em que deveria chover muito, novembro,
e no ano até junho foram detectados 1.434 focos de fogo, três vezes mais que em
2020, ano da grande devastação. Em 9 de abril, o governo do Mato Grosso do Sul
decretou emergência ambiental no Pantanal. O Monitor das Secas da ANA indica
que a estiagem atingia 94% do Centro-Oeste, proporção que subia a 100% no caso
de Goiás no início de maio. A seca diminuiu nos últimos dias.
As mudanças climáticas realçam a conexão
estreita entre os biomas - os problemas do Pantanal vão muito além dele. “Não
adianta termos uma política extremamente seletiva no Pantanal se as cabeceiras
de seus rios não forem conservadas no Cerrado”, disse a especialista em
conservação da WWF Paula Valdujo. O Cerrado passou à frente da Amazônia em área
desmatada no último ano. De agosto de 2023 a fevereiro de 2024, o bioma perdeu
3.798 km2 de vegetação nativa, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais
(Inpe). A exploração agropecuária, especialmente soja, milho, algodão e
pecuária, é responsável por parte dessa perda. Uma parcela do desmate é legal -
as propriedades têm de manter 20% como área de proteção, em comparação com 80%
na Amazônia. A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, estimou que 50% dele é
feito sem amparo legal.
A destruição do Cerrado vem reduzindo sua
superfície de água. Entre 1985 e 2021, segundo o MapBiomas, essa redução
atingiu 68 mil hectares, com prejuízos sistêmicos não só para o bioma. Lá
nascem 8 das 12 bacias hidrográficas do país, fontes de 40% de toda a água doce
do país, que abastecem rios como o Madeira, Pará, Araguaia, Tocantins, Xingu e
São Francisco. Com o desmatamento acelerado, o Cerrado está ficando mais quente
e mais seco. Uma pesquisa mostrou que entre 1985 e 2022 houve redução de 15% na
vazão dos rios do bioma e que se a exploração de seus solos e águas continuar
com a intensidade atual até 2050 a redução dos fluxos fluviais mais que dobrará
(34%).
O agravamento dos efeitos do aquecimento
global exige uma mudança de qualidade no planejamento do Estado e das empresas.
O desmatamento no campo é difícil de vencer e tem sido atacado com algum
sucesso pelo Ministério do Meio Ambiente. Mas o que se viu no Rio Grande do Sul
é de outra natureza e um desafio muito maior a curto prazo, por envolver
grandes concentrações humanas. Há pelo menos 1.400 municípios mapeados como
zonas de risco e estima-se que 1.900 precisariam ser objeto de ações de
prevenção. A maior cidade do país, São Paulo tem quase um quarto de suas áreas
(23,9%) inaptas a novas construções - sujeitas a alagamentos, deslizamentos
etc. -, segundo a Carta Geotécnica de Aptidão do município (O Estado de S.
Paulo, 20-1).
As ameaças do clima exigem que o Ministério
do Meio Ambiente cresça em orçamento e influência decisória. Ibama e Instituto
Chico Mendes foram sucateados no governo de Jair Bolsonaro. Um quinto dos
funcionários do vital Instituto Nacional de Meteorologia, terceirizado, foi
demitido por falta de recursos. Áreas prioritárias como Defesa Civil são
submetidas a dotações irrisórias, ainda assim nem sempre utilizadas.
Todo o planejamento da União, Estados e municípios deveria contar com a participação de especialistas ambientais. Básicos, sistemas de alertas deveriam ser ferramentas de uso habitual dos municípios. Essas iniciativas parecem partir do zero, mas o importante é que deslanchem. O ato de Marina Silva, presidente Lula e governadores dos Estados onde fica o Pantanal para anunciar ações conjuntas contra os incêndios é o início de uma mudança que pode frutificar.
Reforma deve enfrentar a captura do Estado
Folha de S. Paulo
Agenda de Haddad acerta ao mirar subsídios
tributários a setores influentes; falta reduzir privilégios no gasto público
Era questão de tempo para que a opção do
governo por ajustar as contas públicas apenas com aumento da arrecadação
esbarrasse em limites políticos.
Após críticas do setor privado, os entraves
ficaram demonstrados pela devolução pelo Congresso da medida provisória que
buscava compensar os efeitos da desoneração da folha de pagamento aprovada
pelos parlamentares.
Cedo ou tarde, o governo terá de agir para
conter despesas, agenda posta de forma definitiva pelos ministros da área
econômica e não rechaçada, ao menos a princípio, por Luiz Inácio Lula da
Silva (PT).
O episódio teve outro desdobramento
favorável, o de chamar a atenção para o enorme e crescente peso dos chamados
gastos tributários, a coletânea de benefícios fiscais para atividades e
regiões.
O montante —R$ 535 bilhões, quase 5% do PIB— impressionou
quem já deveria conhecê-lo, caso de Lula, que criticou os
incentivos. Se mostrará disposição em combatê-los, ou ao menos racionaliza-los,
ainda está por ser verificado.
A maior parte é direcionada a setores
influentes, como a Zona Franca de Manaus,
as vantagens do Simples que atingem também pessoas no topo da distribuição de
renda, as subvenções ao crédito agrícola e a desoneração indiscriminada da
cesta básica.
A conduta geral do Executivo e dos
parlamentares não encoraja otimismo quanto a uma ação efetiva para reduzir
renúncias e favores. Ambos ainda patrocinam novas iniciativas do gênero, caso
do regime do setor automotivo e de subsídios da
chamada nova política industrial, entre outras que acabam
submergindo na infinidade de exemplos de menor monta.
O ministro da Fazenda, Fernando
Haddad, tem sido voz petista isolada até aqui no combate à captura
do Estado por interesses privados. Também acerta ao apontar que os três Poderes
deveriam assumir responsabilidades em conter o avanço de interesses
particulares sobre o Orçamento.
Tal entendimento não deve se resumir às
receitas. A teia patrimonialista e corporativista é ampla e inclui os
dispêndios, a começar pelo funcionalismo. Categorias poderosas do Judiciário e
do Ministério
Público obtém facilmente concessões
salariais excessivas e penduricalhos cada vez mais numerosos.
O enfraquecimento do Executivo e a
multiplicação dos valores de emendas parlamentares impositivas certamente
criaram novas distorções. O Congresso obteve maior poder para gerir um quinhão
crescente dos recursos, mas não o ônus de garantir boa governança e a primazia
do interesse público.
Há uma degradação do processo orçamentário.
Reorganizá-lo depende de liderança política.
Teatro venezuelano
Folha de S. Paulo
Maduro cria documento para deter contestação
de pleito que organiza para vencer
Na quinta (20), o Conselho Nacional Eleitoral
da Venezuela (CNE) divulgou um documento no qual 8 dos 10 candidatos à
Presidência se comprometem a respeitar o resultado das eleições de 28 de julho.
Contudo o ato não passa de mais um
subterfúgio que visa consolidar um terceiro mandato do ditador Nicolás Maduro,
num processo farsesco desde seu nascedouro.
Maduro, por
óbvio, foi um dos signatários. Seu principal adversário, Edmundo
González, disse não ter sido convidado e considerou o compromisso uma
"imposição unilateral" do regime.
Numa democracia, o respeito aos resultados
das urnas não precisa ser reiterado pelos candidatos. Na Venezuela, esse
princípio básico somente servirá para calar e perseguir quem ouse contestar a
vitória do caudilho.
A campanha oficial começa em 4 de julho, já
contaminada pelo autoritarismo. Os termos do Acordo de Barbados, de outubro de
2023, pelo qual Maduro prometeu eleições justas e competitivas, foram rasgados
três meses depois, quando o regime declarou a inelegibilidade de María Corina
Machado, vencedora das primárias da oposição.
Com isso, os EUA retomaram as sanções à
Venezuela, que haviam sido suspensas pelo acordo. Dois meses depois, o mesmo
CNE impediu o registro da candidatura de Corina Yoris, substituta de Machado.
Desta vez, até Luiz Inácio Lula da Silva
(PT), que se mantivera omisso diante do golpe contra Machado, criticou o ato de
Caracas.
As manobras do regime forçaram a oposição a
pinçar Edmundo González, um diplomata aposentado, como seu candidato. Por mais
que as pesquisas o apontem na liderança, trata-se de um nome inexperiente em
política.
Maduro ainda bloqueou a
observação das eleições pela União Europeia e moveu seu aparato
persecutório. Ao menos 37 integrantes da campanha da oposição foram presos
somente neste ano, sem contar os forçados ao exílio.
Como em 2019, o pleito de 2024 é organizado para esvaziar a competição. Trata-se de teatro destinado a respaldar mais seis anos de uma ditadura responsável por uma crise humanitária inaudita.
O debate político não é refém do
fundamentalismo
O Estado de S. Paulo
O projeto que equipara a pena do aborto após
22 semanas de gestação à de homicídio mostrou o descolamento entre a bancada
evangélica no Congresso e a parcela da população que representa
Por desinformação, preconceito ou má-fé, uma
parte considerável do mundo não evangélico observa, com desconfiança e temor, a
notável ascensão das igrejas evangélicas brasileiras. Muitos também confundem a
população evangélica e seus representantes e líderes religiosos, como se fossem
um só corpo e uma só mente – algo monolítico, uma base ao mesmo tempo genérica
e uniforme, composta por pastores e parlamentares populares, influentes e
barulhentos, e uma população fiel, obediente e facilmente manipulável. O debate
sobre o Projeto de Lei (PL) 1904, que equipara a pena do aborto após 22 semanas
de gestação à de homicídio, demonstrou que não é bem assim: não somente há
muito mais diversidade nos grupos evangélicos do que sugere o senso comum, como
há um descolamento razoável entre a bancada evangélica no Congresso e a parcela
da população que representa.
Na semana em que a Frente Parlamentar
Evangélica – liderada pelo autor do projeto, o deputado Sóstenes Cavalcante
(PL-RJ), sob a bênção do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) – trabalhava
pela urgência da tramitação, nas ruas e nas redes sociais grupos evangélicos se
mobilizaram para contê-lo. Sem liderança puxando o trio, mulheres de todos os
credos foram às ruas protestar; sem compromisso com a bancada parlamentar,
mulheres cristãs de diversas matrizes religiosas lançaram um manifesto e
organizaram um ato em Brasília. A confirmação do descolamento veio com os
números trazidos pelo Datafolha: 57% dos evangélicos do País são contrários ao
PL, número que é ainda maior entre os católicos (68%). Em outras palavras,
engana-se quem percebe o perfil religioso e conservador do brasileiro como
fundamentalista. Mais: fundamentalistas são minoria – e se concentram nas
hostes extremistas no Congresso. Segundo o Datafolha, 66% da população rejeita
o projeto.
Ainda que parlamentares prometam voltar à
carga quando o clima esfriar, as pressões obrigaram o recuo no que pareceu uma
tentativa da extrema direita de emparedar o governo. Triunfaram no início: o
presidente Lula da Silva ficou em silêncio até as manifestações de rua e as
primeiras pesquisas dando conta da derrota do PL nas redes sociais. Lula chamou
de “insanidade” a tentativa do projeto, mas só o fez quando se sentiu à vontade
diante do racha aparente no mundo evangélico.
O presidente lidera uma esquerda que costuma
enxergar evangélicos como outro Brasil, outra gente. A confusão mais comum
associa evangélicos à extrema direita, o que ajuda a ampliar o preconceito
contra a população religiosa. Com a emergência do bolsonarismo, pastores
influentes passaram a atuar também na produção e reprodução de notícias falsas
e pânicos morais, assim como na ameaça direta dentro de espaços religiosos. São
dois mundos distintos, mas que se entrelaçam, pois a ação de um contamina e
reforça o preconceito sobre o outro.
Ocorre que evangélicos são muito mais do que
isso. Pesquisadores do Instituto de Estudos da Religião (Iser) vêm mostrando
que suas aspirações passam tanto pelas crenças quanto por elementos reais do
cotidiano. Estudos informam que a maioria evangélica é hoje feminina e de baixa
renda e tem muita clareza sobre o que melhora ou piora suas condições de vida.
“São pessoas que se movem por necessidades práticas e não apenas por fake news
que viram trending topics nos grupos de WhatsApp da Igreja”, escreveu a pesquisadora
Ana Carolina Evangelista em artigo publicado no UOL.
Dilemas reais das mulheres evangélicas
envolvem a família, a segurança e a situação econômica, categorias que
estruturam a vida de boa parte dos brasileiros, ultrapassam o moralismo
explorado pela extrema direita e confundem a cabeça do lulopetismo. A resistência
ao PL é parte desses dilemas. Se moral e ideologicamente são contra a
legalização do aborto, veem o estupro como crime inaceitável, portanto é
ultrajante para muitas evangélicas a ideia de que a mulher, já vítima do
estuprador, seja condenada à prisão. Esse componente crítico só é impensável
para quem enxerga obediência absoluta ao estereótipo do crente fundamentalista.
E para lideranças parlamentares que, cada vez mais fisiológicas, olham para
cima – neste caso, não para o Céu, e sim para os seus projetos de poder.
Nova urgência para o novo ensino médio
O Estado de S. Paulo
Ante atraso na aprovação e na regulamentação
das mudanças no ensino médio, cabe a deputados federais conjugar técnica e
celeridade para garantir a implementação a partir de 2025
Mais uma vez está nas mãos dos deputados
federais a missão de combinar celeridade e rigor técnico na análise e votação
do projeto de lei que define novas diretrizes para o ensino médio. Na
quarta-feira passada, os senadores aprovaram o projeto, mas como alteraram
pontos importantes do texto que originalmente passou pelos deputados, caberá
novamente à Câmara analisar as mudanças e dar prosseguimento à necessária
reestruturação da etapa mais complexa da vida escolar. Necessária, porém já
tardia: pelo calendário original, o novo modelo já deveria estar regulamentado,
orientando as escolhas de milhões de adolescentes. Dado o adiantado da hora e o
amadurecimento das discussões, é o momento de agir com rapidez, ou o País não
poderá iniciar as mudanças na etapa a partir de 2025.
Há dissonâncias significativas entre o
projeto saído da Câmara e o substitutivo da relatora no Senado, Professora
Dorinha Seabra (União Brasil-TO), e esse será o maior desafio. A senadora fez
mudanças em pontos centrais, como a questão da carga horária, a retomada do
espanhol como disciplina obrigatória e a restrição à regra de notório saber
para professores contratados em cursos técnicos. Não à toa, o deputado federal
Mendonça Filho (União Brasil-PE), relator do projeto na Câmara, já anunciou que
trabalhará para derrubá-las. Ele se baseia no consenso construído entre governo
e oposição, depois de um intenso debate entre o ministro da Educação, Camilo
Santana, e Mendonça Filho – não sem ironia o ministro de Michel Temer e
principal responsável por formular a reforma aprovada em 2017. Ambos se
desentenderam, tiveram discussões ríspidas ao longo da negociação, mas, ao
final, chegaram a um entendimento.
O texto aprovado no Senado prevê que, das
3.000 horas de todo o ensino médio, 2.400 (80%) serão destinadas a uma grade
comum para todos os alunos, que abrange aulas de disciplinas tradicionais como
matemática e português. Atualmente, em razão da reforma aprovada em 2017, são
separadas 1.800 horas para as disciplinas obrigatórias e 1.200 para o
itinerário formativo escolhido pelo aluno. Para quem optar pelo ensino
profissionalizante, a carga comum cai para 2.200 horas, restando 800 horas para
aulas específicas dos cursos técnicos. A Câmara tinha fixado em 2.400 horas a
grade comum para a maioria e 2.100 para o ensino técnico. Quanto à
obrigatoriedade do espanhol, o texto aprovado no Senado prevê que as duas
línguas estrangeiras obrigatórias (espanhol e inglês) poderão ser substituídas
em algumas situações.
Apesar das dissonâncias em relação à Câmara –
sobretudo na carga horária e na obrigatoriedade do espanhol –, o texto do
Senado traz melhorias. Estabelece, por exemplo, um porcentual mínimo para a
formação geral básica no ensino em tempo integral e prevê em lei tanto a
formação continuada dos docentes quanto o monitoramento contínuo da
implementação do Novo Ensino Médio. Há, no entanto, diversos pontos que saíram
maduros do acordo na Câmara, um tênue ponto de equilíbrio entre as diferentes
demandas e preocupações dos Estados, das instituições envolvidas nos debates e
dos parlamentares ligados à educação. Foi o que permitiu chegar a uma fórmula
que afastou de vez a absurda possibilidade de revisão completa da reforma, algo
que chegou a ser cogitado por parte da esquerda no início da gestão de Lula da
Silva.
Tão importante quanto a definição de quantas
mil horas são necessárias para o aprendizado desta ou daquela disciplina –
questão já exaustivamente pautada até aqui – será a adequação às novas normas
que pretendem desengessar a matriz curricular. É preciso reconhecer que a etapa
mais essencial já foi vencida: a construção de consenso sobre a natureza da
reforma, com a necessidade de tornar os currículos mais convergentes com os
interesses dos estudantes e um modelo mais atraente e relevante para o futuro dos
alunos. Nos próximos meses, uma vez finalizada a tramitação no Congresso, ainda
serão necessários ajustes operacionais, regulamentações estaduais e definição
de metas para ampliação de matrículas. Mais um motivo para que deputados
combinem técnica e celeridade na aprovação final. Uma política em alto nível,
compatível com a educação de que o Brasil precisa.
Incompetências do Brasil
O Estado de S. Paulo
País cai, de novo, em ranking de
competitividade. Eficiência governamental puxa piora
Ao ocupar a 62.ª colocação em uma lista com
67 países, o Brasil amarga uma nova queda, pelo quarto ano consecutivo, no
ranking mundial de competitividade do International Institute for Management
Development (IMD), uma escola de negócios suíça. Logo atrás, nesse pelotão
digno de rebaixamento, penduram-se Peru, Nigéria, Gana, Argentina e Venezuela.
“Nossas incompetências” explicam o desempenho pífio, nas palavras de Hugo
Tadeu, líder da pesquisa no Brasil e professor da Fundação Dom Cabral, parceira
da instituição europeia.
O levantamento, que chega à sua 36.ª edição,
aponta os países com as melhores condições de prosperidade e concorrência
externa. O ranking busca mapear pontos fortes e fracos das economias avaliadas
para oferecer uma bússola a governos e empresas. Para isso, o IMD recorre a 336
indicadores. Parece que o Brasil aprendeu muito pouco.
Cingapura, Suíça e Dinamarca – economias
pequenas – encabeçam a lista por fatores como bom uso de acesso a mercados do
exterior, políticas públicas eficazes, infraestrutura avançada e educação
básica sólida. Nada disso se encontra em abundância na gigantesca economia
brasileira. Em 2020, o Brasil ocupava a 56.ª colocação e, desde então, já caiu
seis posições. No ano passado, o País estava em 60.º lugar e agora recuou em
razão da piora da eficiência governamental e da infraestrutura.
A baixa oferta de programas para a formação
de gestores, a falta de eficiência do setor público e a burocracia excessiva
resumem os desafios do País. Apesar do mercado de trabalho aquecido e do
crescimento do PIB, custo de capital, legislação trabalhista – que, após a
reforma aprovada no governo Michel Temer, vive sob constante ameaça do governo
lulopetista –, contas públicas e barreiras tarifárias colocam o Brasil nas
piores posições na esfera de políticas governamentais.
A reforma tributária, ora em fase de
regulamentação no Congresso Nacional, favorece condições competitivas, mas não
basta, sozinha, para impulsionar o País. É preciso ir além: “Estamos caindo
porque estamos asfixiando a cadeia produtiva brasileira, o custo de capital
está cada vez maior e porque tem ‘muito Brasília e pouco Brasil’”, avaliou o
professor Hugo Tadeu. De acordo com ele, o País não tem empreendido esforços
suficientes em ciência, tecnologia, inovação e formação de mão de obra.
“Estamos deixando de lado essa agenda. E a gente não está focando em indústrias
que sejam relevantes ao nosso crescimento.” Ou seja, o Brasil ainda segue a
receita perfeita para o fracasso.
Ao se desdobrar os subitens da pesquisa, sinônimo de fracasso mesmo é a educação. Em habilidades linguísticas – capacidade de escutar, falar, ler e escrever –, o Brasil ficou em último lugar. O País ocupa ainda a penúltima posição tanto na formação básica como na superior. O aprimoramento da competitividade passa por valorização do conhecimento, melhoria da eficiência governamental e investimentos em infraestrutura. Impossível imaginar avanços em ciência, tecnologia e inovação com cenário tão desolador.
Olhar atento para quem vive nas ruas
Correio Braziliense
Entre janeiro e abril deste ano, a Ouvidoria
Nacional de Direitos Humanos, por meio do Disque 100, registrou 6.177 violações
contra pessoas em situação de rua
Em janeiro, foi sancionada e publicada no
Diário Oficial da União (DOU) a Lei 14.821, que institui a Política Nacional de
Trabalho Digno e Cidadania para População em Situação de Rua (PNTC PopRua). O
objetivo é garantir os direitos básicos dessas pessoas, estabelecendo,
especialmente, incentivos para a geração de empregos e o acesso à escolaridade.
Um mês antes, em dezembro de 2023, o Plano
Ruas Visíveis foi lançado com a meta de fomentar políticas públicas para a
população nessa condição de vulnerabilidade. Na ocasião, houve o anúncio de
cerca de R$ 1 bilhão em investimento inicial.
Espalhados pelas cidades do país, esses
rostos, que muitas vezes parecem perdidos, merecem um olhar cuidadoso do
governo federal, de modo a incentivar que as esferas estaduais e municipais
também foquem ações de auxílio.
Entre janeiro e abril deste ano, a Ouvidoria
Nacional de Direitos Humanos, por meio do Disque 100, registrou 6.177 violações
contra pessoas em situação de rua. O levantamento é do Ministério dos Direitos
Humanos e da Cidadania (MDHC) e revela aumento de 24% na comparação com o
primeiro quadrimestre de 2023, quando 4.962 denúncias foram feitas ao serviço.
Dados do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea) mostram que a população de rua no Brasil aumentou quase 10
vezes de 2013 a 2023, passando de 21.934 para 227.087.
Muitas vezes negligenciado, desrespeitado e
criminalizado, esse segmento da população não pode mais seguir fora do quadro
da cidadania brasileira. Buscar soluções para a integração plena dessas pessoas
deve ser uma responsabilidade da sociedade como um todo.
Movimentos civis precisam cobrar planos que
envolvam eixos como assistência social, segurança alimentar, saúde, educação,
trabalho e renda, além de habitação. A ideia de que as pessoas em situação de
rua querem permanecer nessa condição é equivocada. Diversos são os motivos que
levam a essa realidade, e conquistar uma moradia é fundamental no processo de
restabelecer a dignidade. O cenário, extremamente complexo, apresenta rupturas
de vínculos familiares, tornando necessária uma abordagem de resgate das relações.
A exclusão econômica, que vai ficando pior com o passar do tempo, agrava o
quadro de marginalidade.
Outro lado cruel que persegue esse segmento
social, a violência contra moradores de rua apresenta muitas facetas, passando
pelas questões físicas — como exposição de riscos à saúde, maus-tratos,
abandono e agressão — e pelas psíquicas — como humilhações e constrangimentos.
Ampliar e criar medidas em várias frentes,
com o máximo de participação popular, é o caminho para conduzir esses
brasileiros ao ponto de cidadãos. As pessoas em situação de rua precisam caber
no sistema, e o primeiro passo é que elas entrem na política orçamentária das
administrações públicas. Ações estruturantes, coordenadas, transversais e
intersetoriais são essenciais.
O crescimento dessa população pelo país evidencia a importância da revisão e do reforço das iniciativas de combate ao problema. É preciso consolidar os direitos e os mecanismos capazes de promover a reinserção social e econômica desses indivíduos. O Brasil não pode fechar os olhos para essa situação. É preciso priorizar essa pauta, observando as perspectivas dos que estão nessa condição, para que ações efetivas sejam implementadas e interrompam o avanço do número de pessoas vivendo nas ruas.
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