Por Lu Aiko Otta / Valor Econômico
Nos 30 anos do Plano Real, ex-ministro da
Fazenda alerta que nova reforma da Previdência Social pode ser necessária ainda
nesta década
Prestes a completar 30 anos no próximo dia
1º, a estabilização de preços proporcionada pelo Plano Real foi apenas um
primeiro passo de um projeto de transformação da economia brasileira, disse
ao Valor o ex-ministro da Fazenda Pedro Malan, que comandou a área
econômica do governo nos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso
(1995-2002).
Após domar a inflação, havia toda uma agenda
de reformas econômicas a ser implementada. Muitas delas ainda estão sobre a
mesa. É o caso do debate sobre a estrutura das despesas obrigatórias do
governo, tema que foi levado na semana passada ao presidente Luiz Inácio Lula
da Silva pelos ministros Fernando Haddad (Fazenda) e Simone Tebet
(Planejamento).
Documentos elaborados antes do lançamento do
Real continuam atuais nesse debate, ressaltou o ex-ministro, que nesta
terça-feira (25) lança em São Paulo, o livro “30 Anos do Real - Crônicas no
Calor do Momento”, pela editora Intrínseca.
A publicação reúne artigos publicados por
Malan e outros dois “pais” do plano de estabilização, Edmar Bacha e Gustavo
Franco (organizador), além de um artigo escrito por Fernando Henrique Cardoso
em 2019. O livro é dedicado ao ex-presidente, cuja liderança política é
apontada como peça fundamental do sucesso do plano de estabilização.
O propósito do livro não é trazer bastidores
sobre a elaboração do plano, e sim discutir a tentativa de consolidação do
projeto do Real ao longo dos últimos 30 anos, além de contribuir para o debate
atual, explicou o ex-ministro.
Organizado em seis partes - primeiros anos,
dez anos, 15 anos, 20 anos, 25 anos e 30 anos -, mostra a batalha da construção
do tripé macroeconômico que persiste até hoje e como o projeto resistiu à
alternância do poder, com a eleição de Lula em 2002.
O Real completou 20 anos em meio ao
experimento da Nova Matriz Macroeconômica e, na definição de Franco à época, o
momento “mais cercado de dúvidas sobre a coisa conquistada”.
Também hoje há o debate em torno da adoção de
uma política keynesiana, apesar dos resultados da tentativa anterior. Ao mesmo
tempo, outros integrantes do governo se esforçam para colocar em debate a
estrutura do orçamento - algo que deve ser intensificado, na visão do
ex-ministro.
“Acredito que a história é um diálogo infindável entre o passado e o futuro”, afirmou ele, a respeito do livro. “O objetivo é mostrar como essas coisas estão ligadas: o passado estabelece certas restrições, mas também certas oportunidades e possibilidades que o futuro sempre encerra.”
A seguir, os principais trechos da entrevista.
O pré-Real - não foi só o “Larida”
Havia um debate acadêmico uma década antes do lançamento do Real. Para muitos,
o ponto de partida é o trabalho do André Lara Resende e Persio Arida [Larida],
mas houve várias outras contribuições. Em 1977 começou a ser conversada a
criação do programa de mestrado e de ensino e pesquisa do Departamento de
Economia da PUC [do Rio]. O Dionísio Dias Carneiro organizou um livro e tem um
excelente artigo chamado “Brasil, Dilemas de Política Econômica”, que vale a
pena ser lido hoje. Meu artigo é sobre o setor externo, o do Francisco Lopes,
sobre problemas da inflação no Brasil, o do Rogério Werneck, sobre crescimento
rápido e equidade distributiva.
O pré-Real - planos fracassados
Teve um aprendizado com a experiência de seis tentativas de estabilização:
Cruzado I, Cruzado II, de 1986, o Plano Bresser, de 1987, Plano Verão, na
virada de 1988 para 1989, Plano Collor I, em 1990, Collor II, em 1991. Foi uma
tentativa de, na prática, lidar com a marcha da insensatez que era a inflação
brasileira: estava em 20% no início dos anos 1970, mais de 40% em meados dos
anos 1970, 100% em 1980, 240% em 1985, 1.000% em 1988, 1989, 2.300% em 1993.
Origem da força do Real - aprendizados
Houve um aprendizado derivado da discussão acadêmica de uma década. E as
tentativas de estabilização, que, se não deram certo, têm aprendizados e
envolvidos. O Edmar Bacha, o André Lara e o Persio, por exemplo, se envolveram
muito no Cruzado e descobriram a força enorme do efeito do congelamento de
preços sobre o sistema político e sobre o eleitorado. Era para durar pouco
tempo, mas durou até as eleições. [Nas eleições daquele ano, o PMDB elegeu 22
dos então 23 governadores.]
Origem da força do Real - o time
A força do Real vem de uma da combinação única. Primeiro, a ida de Fernando
Henrique Cardoso do Ministério das Relações Exteriores para o da Fazenda, na
terceira semana de maio de 1993. E da capacidade de um político experimentado
como o Fernando Henrique. Ele conseguiu juntar em torno de si um grupo de
pessoas: Clóvis Carvalho como secretário-executivo; Winston Fritsch e Gustavo
Franco para a Secretaria de Política Econômica; Edmar Bacha, que não pôde
assumir uma posição lá. E, em agosto de 1993, ele conseguiu atrair para o
governo a mim, ao André Lara e ao Persio. E foi ali, em agosto de 1993, que
formou-se a massa crítica que permitiu um ataque à inflação.
Origem da força do Real - o povo e as urnas
A força do Real foi o seu sucesso e a aceitação que teve por parte da
população. Vem do fato que a esmagadora maioria da população brasileira hoje
percebe que a preservação da inflação sob controle é a preservação do poder de
compra do salário do trabalhador brasileiro. E antes - para usar uma expressão
do Millôr Fernandes - sobrava cada vez mais mês no fim do salário do
trabalhador. É a preservação do poder de compra das transferências diretas de
renda, que hoje assumiram uma dimensão extraordinariamente significativa no
Brasil. Para ter uma ideia: dos 26 Estados brasileiros mais Distrito Federal,
em 15 a população que recebe essas transferências diretas de renda é superior
àquela que tem carteira assinada. Então, eu acho que criou raízes entre nós a
ideia de que qualquer governante que tenha uma atitude excessivamente leniente,
complacente, descuidado com a inflação será punido nas urnas. É uma
característica da democracia que é importante preservar. Isso não aparecia com
clareza durante a vigência do regime militar, mas numa democracia é muito
importante essa consideração.
Sem risco de retrocesso no Real
Acho que não voltaremos, em hipótese alguma, àquele tipo de hiperinflação que
nós tivemos. Porque o governo no qual essa aceleração começa certamente é
substituído nas urnas pelo eleitorado, que percebeu a importância da
preservação da inflação sob controle.
Ajuste fiscal, velho desafio
Há alguns marcos importantes. Eu mencionei aqui que o Fernando Henrique foi
nomeado ministro da Fazenda em maio de 1993. Três semanas depois, o governo
lançou um Programa de Ação Imediata (PAI). Ele merece ser lido hoje. São 13 ou
14 páginas, que começam lembrando que só havia quatro países no mundo que
tinham inflação de mais de 1.000%. Eram a Rússia - o império soviético havia
colapsado dois anos antes -, a Ucrânia, associada a isso, e o Congo, em guerra
civil. E o Brasil era o quarto desses países. As outras eram economias
totalmente desarticuladas, mas o Brasil não. A economia, bem ou mal, com a
indexação, ela vinha funcionando, mas a hiperinflação era o grande desafio.
Esse Programa de Ação Imediata, ele fala abertamente, no começo, da desordem
das contas públicas.
Dívida externa
Outro marco importante foi que em 29 de novembro de 1993 nós encerramos o
processo de renegociação da dívida externa brasileira. Assinamos nosso acordo
com 700 e tantos credores privados do Brasil. O acordo com os credores oficiais
já havia sido alcançado em janeiro de 1992.
Real sem susto
E teve um documento que eu acho fundamental. No dia 7 de dezembro de 1993, o
Ministério da Fazenda encaminhou ao presidente Itamar Franco uma exposição de
motivos - 395, se não me engano. O primeiro pilar ali era a parte fiscal. O
equilíbrio tinha que ser obtido para o biênio 1994-95, e exigia ações no
Congresso. O segundo era uma lista grande das propostas de emendas
constitucionais. E o terceiro era a reforma monetária. Foi dito que nós
estaríamos lançando uma unidade de conta, uma referência para contratos [a
Unidade Real de Valor, URV]. Ela não teria propriedade de meios de pagamento de
início, mas circularia, estaria em vigência junto com o Cruzeiro Real, que era
a moeda, até que a economia se recontratasse em URVs. Quando aquela
recontratação tivesse assumido um certo ponto, ela seria convertida no Real,
como foi.
Consolidação do Real - reformas
Nós estamos comemorando agora os 30 anos do lançamento do Real, mas também os
25 anos e meio do regime de taxa de câmbio flutuante, os 25 anos agora em junho
do regime de metas de inflação, os 24 anos da Lei de Responsabilidade Fiscal. E
fizemos inúmeras reformas ao longo desse período, ainda nos anos 1990.
Reduzimos o número de bancos estaduais de mais de 30 para pouco mais de meia
dúzia. Vários deles estavam insolventes, não podiam sobreviver após perder a
receita inflacionária. Fizemos capitalização do Banco do
Brasil e da Caixa, interviemos nos bancos privados - houve
processo de consolidação, vários foram liquidados. Fizemos privatização de
siderúrgica, do setor elétrico, das telecomunicações.
Além da inflação, social
As transferências diretas de renda começaram ainda no governo Fernando Henrique
Cardoso. Entre 3,5 milhões e 4 milhões já recebiam transferências diretas de
renda sob várias denominações. O Lula, depois de tentar o Fome Zero, juntou
todos os programas do governo Fernando Henrique Cardoso.
Vai mudar?
Essa é a discussão do momento, não é? Acho que o segundo governo Lula, assim
como o primeiro, foi ajudado enormemente por um ciclo [de crescimento da
economia global] que foi o mais longo, o mais profundo e o mais amplamente
disseminado da história. Aquilo se expressou no apoio que ele recebeu nas
urnas, a eleição para Lula 2, e depois fazer a sua sucessora em 2010. O que eu
acho é que a ideia de que é possível fazer uma aceleração do crescimento
através de uma política keynesiana de caráter permanente, é aquilo que o André
Lara Resende chamou de armadilha macroeconômica brasileira. Quando a demanda
cresce de maneira significativa, na expectativa de que a oferta doméstica
responda em prazo hábil [mas isso não ocorre], o país enfrenta pressões
inflacionárias ou então desequilíbrio em balanço de pagamentos, porque passa a
depender de importações. Então, não bastam as intenções.
Revisão de gastos
Isso é algo que vem sendo cobrado há muito tempo. Não é simples, não é trivial.
Escrevi em 14 de abril deste ano um artigo que se chama “Em Busca da Eficiência
no Gasto Público”. E eu faço menção a uma entrevista coletiva da presidente
Dilma Rousseff no fim de outubro de 2014, logo após a eleição. Eu vou citar
textualmente: “Ao longo do governo, você descobre várias contas que podem ser
reduzidas. O que vamos tentar é um processo de ajuste em todas as contas do
governo. Vamos revisitar cada uma e olhar com lupa o que dá para reduzir, o que
dá para tirar, o que dá para modificar”. E eu escrevi: “Surpreendentes
palavras. Tardias, sem dúvida, para quem passara cinco anos e meio como
ministra-chefe da Casa Civil e mais quatro na Presidência da República”. E não
deixei de notar que os jornais registraram também o recado complementar da
presidente Dilma: “Mas estou dizendo que vou manter o emprego e a renda, ponham
na cabeça isso”. Os brasileiros de boa informação e memória sabem o que
aconteceu com essas duas variáveis em 2015 e 2016. No segundo mandato de Dilma,
nós tivemos uma recessão seriíssima, derivadas das dificuldades de fazer isso
que ela intuiu muito tardiamente: que é preciso tentar um processo de ajuste.
Não é trivial, mas governar é fazer escolhas, definir prioridades.
Indústria naval
É perfeitamente razoável que se queira expandir os gastos em uma determinada
coisa considerada prioritária pelo governo. Mas a boa prática sugere
identificar qual é a fonte de financiamento e, segundo, qual é o outro gasto
que será reduzido ou modificado. Não basta a intenção de construir uma
indústria naval que vai competir com as melhores do mundo porque é desejável o
objetivo. Nossa experiência mostra que nem sempre tudo que é desejável é
factível. Exige discussão, e o locus dessa discussão deve ser o Orçamento,
assim nos outros países do mundo.
Nova reforma da Previdência
No nosso Orçamento sobram menos de 10% para decisões discricionárias de gasto.
A tendência é que esse espaço, que já é muito reduzido hoje, vá se reduzindo a
ponto de - se nada for feito até lá - praticamente desaparecer. É uma questão
de longo prazo, mas tem que ter consciência dela. Decisões difíceis têm que ser
tomadas. Eu espero que isso tenha lugar ao longo dos próximos três anos, e nos
próximos quatro que se seguirão depois, pelo menos. Tem questões de longuíssimo
prazo: a área de demografia e previdência. Nós vamos ter uma nova reforma da
Previdência Social, em algum momento, logo no começo dos anos 2030 - se não
antes. Porque as pessoas precisam fazer conta.
Luz no fim do túnel
Mas não significa que não haja solução. Eu acho que tem solução para isso, mas
o grau de percepção da natureza do problema tem que ser maior do que tem sido
até o momento. Tem aumentado. Eu acho que tem gente no governo que está fazendo
um esforço sério para tentar fazer com que essa questão assuma uma importância
crescente no debate público.
O livro
Não é um livro que procura contar uma história de bastidores. E não é que
alguém agora, neste ano de 2024, com o benefício de sabedor de tudo o que
aconteceu, fala sobre o que aconteceu. Foram textos escritos no calor da hora.
Mostram a nossa preocupação com o processo de consolidação do Real. Para nós,
era uma agenda pós-Real, e ela se confundia, era parte integrante, da própria
agenda do desenvolvimento econômico, social e político-institucional do Brasil.
Acredito que a história é um diálogo infindável entre o passado e o futuro. O
objetivo é mostrar não só o que aconteceu, para revolver a memória, mas para
mostrar como essas coisas estão ligadas: o passado estabelece certas
restrições, mas também certas oportunidades e possibilidades que o futuro sempre
encerra.
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