Revista Veja
Propostas para as capitais mostram políticos sem rumo na saúde pública
Em Sucupira, o mais importante projeto do
prefeito Odorico Paraguaçu era conseguir um morto para inaugurar o cemitério
acabado. Em Fortaleza, a principal proposta de saúde pública do candidato a
prefeito Eduardo Girão é construir um cemitério caiado para animais domésticos
futuramente mortos.
Girão é senador do Partido Novo. Adquiriu o
estranho hábito de carregar no bolso do paletó a reprodução em plástico de um
feto, que costuma exibir nas horrendas encenações da sua campanha antiaborto no
Senado.
Há anos, saúde pública é problema prioritário para sete em cada dez eleitores em todas as regiões. Nesta temporada eleitoral, no entanto, candidatos a prefeito resolveram tratar essa realidade de forma distraída, com platitudes, vulgaridades e muita marquetagem.
Pesquisadores de universidades do Rio e de
São Paulo analisaram programas de saúde apresentados em 26 capitais por 69
candidatos de catorze partidos. Constataram que todos são a favor do Sistema
Único de Saúde. Isso não significa nada, até porque ainda não se tem notícia de
alguém que tenha sido eleito fazendo campanha contra a luz elétrica, a água
encanada, o desenvolvimento social e econômico.
No entanto, vale lembrar: na maior cidade do país há pelo menos um candidato contra a vacina obrigatória. Ricardo Nunes, prefeito do MDB que tenta a reeleição, adotou modernas referências do atraso como Jair Bolsonaro, autodeclarado adversário da vacina contra a covid-19 na pandemia com mais de 700 000 mortos. Essa forma de manipulação política impulsionou uma revolta contra a vacina antivaríola no Rio de 120 anos atrás. Resultado: faltou espaço nos cemitérios cariocas. O prefeito Nunes não quer vacina obrigatória, mas demonstra interesse em apostar o dinheiro dos impostos municipais em certas miragens científicas, como as “vacinas contra vícios em drogas”.
Setembro está
terminando com 1 563 cidades (28% do
total) sem estoque de alguns tipos de vacinas, em muitos casos há
mais de noventa dias, informa a Confederação Nacional de Municípios.
São as fragilidades da vida real que realçam
o pauperismo dos programas para a saúde pública
dos principais candidatos a prefeito das capitais, mostra a equipe de
pesquisadores coordenada pelos professores Ligia Bahia (UFRJ) e Mario Scheffer
(USP). Eles se perdem numa coletânea de concepções
vagas, jargões e ideias fragmentadas.
Exemplo: no atendimento básico, ou atenção
primária, no jargão médico, prevalece a lógica dos negócios em contratos de
construção civil e de prestação de serviços. Há um padrão de promessas de novos
postos de saúde, reformas, horário estendido e acessórios, como “emprego de
mototáxi” e “distribuição de uniformes” para agentes comunitários.
Existem exceções, claro. Ao analisar ideias
sobre atendimento especializado para consultas, exames ou cirurgias, os
pesquisadores identificaram propostas mais objetivas no programa do candidato à
reeleição no Rio, Eduardo Paes, prefeito do PSD, baseadas na reorganização
iniciada nos centros e policlínicas da cidade.
Mas o atendimento a distância, via internet,
virou moda entre candidatos a prefeito. Sobram projetos “poupa tempo”, “na
hora” e “agiliza”. Promete-se “saúde digital” na atenção básica em Palmas (PL)
e Teresina (PT); “tele-especialidades” em Rio Branco (MDB); tratamento por
“videoconferência” em João Pessoa (PT); “telepsicologia” em Fortaleza (União
Brasil); “medicina bioeletrônica” em Campo Grande (PP); “inteligência
artificial” em Florianópolis (PSOL); e, até mesmo, uma espécie de milagre
digital em Belo Horizonte (PSD): “O usuário do SUS-BH terá em mãos uma
ferramenta que nenhum usuário de plano de saúde suplementar possui hoje”.
Proliferam promessas com o orçamento alheio.
O combalido caixa do Ministério da
Saúde seria responsável, por exemplo, por uma fatia dos
programas de saúde municipal em Manaus (Cidadania) e em João Pessoa (PP). Em
Fortaleza, o senador Girão (Novo) anuncia uma enigmática “cidade dos autistas”,
com recursos da “cota” de emendas mantida pela oligarquia parlamentar no
orçamento da União.
O vício da marquetagem nos programas para a
saúde nas capitais mostra uma elite política sem bússola diante de um dos mais
relevantes problemas nacionais. Em certo sentido, os atuais candidatos a
prefeito das capitais ecoam o lendário Odorico Paraguaçu, criatura impagável do
escritor Dias Gomes. Nas campanhas em Sucupira, ele sempre mandava estender uma
faixa no palanque: “Vote num homem sério e ganhe o seu cemitério”.
Publicado em VEJA de 27 de setembro de
2024, edição nº
2912
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