sábado, 28 de setembro de 2024

Pablo Ortellado - Foi erro legalizar as bets

O Globo

Todos os meses, os brasileiros apostam entre R$ 18 bilhões e R$ 21 bilhões, 19% da massa salarial do país

Relatório recente do Banco Central trouxe dados alarmantes sobre o mercado de apostas on-line no Brasil. Todos os meses, os brasileiros apostam entre R$ 18 bilhões e R$ 21 bilhões, aproximadamente 19% da massa salarial do país. Segundo a estimativa do BC, 24 milhões de pessoas, cerca de 23% da força de trabalho, fizeram apostas on-line nos últimos 12 meses.

Dezessete por cento desses apostadores são chefes de famílias beneficiárias do Bolsa Família. Outros 4% não são os chefes, mas integrantes dessas famílias. No total, mais de um quinto dos apostadores brasileiros em jogos on-line está em situação de vulnerabilidade social. A mediana da aposta desse grupo é de R$ 100 por mês. Os números podem ser ainda maiores, já que o estudo considerou apenas transações via Pix.

Os dados são chocantes, mas não de todo inesperados se olharmos para a experiência internacional. Quando resolvemos legalizar as apostas on-line, em 2018, as evidências de outros países mostravam que elas são altamente viciantes e atraem os mais pobres para uma armadilha, oferecendo o sonho de saída fácil da pobreza.

Não temos dados sobre as apostas on-line antes da legalização para comparar como estávamos ao estado atual das coisas. Nos Estados Unidos, a legalização começou por alguns estados, permitindo comparações com outros que ainda não haviam legalizado. Os estudos comparativos mostram que a legalização leva a significativa redução na poupança das famílias, ao aumento do endividamento nos bancos e no cartão de crédito e ao aumento no número de falências — todos esses indicadores concentrados nas famílias de baixa renda.

No Brasil, Congresso e governo fizeram esforços para regular adequadamente as apostas on-line. Uma portaria publicada em agosto estabelece uma série de ações no sentido de criar um “jogo responsável”, fixando limites e alertas para excessos, monitorando o comportamento dos jogadores, criando mecanismos para que possam ter momentos de pausas, além de medidas que disciplinam a publicidade e promovem campanhas de conscientização. Embora a regulamentação caminhe na direção certa, minorando o problema, há muito motivo para ceticismo sobre se será capaz de reduzir significativamente o dano já causado.

Quando resolvemos legalizar as apostas on-line, fomos seduzidos pelo discurso de que era melhor regular uma atividade já disseminada do que deixá-la continuar existindo, às margens, operando do exterior, sem regramento. Não atentamos para o fato de que, com a legalização, as empresas usariam da segurança jurídica para ampliar agressivamente suas ações publicitárias e se aproveitariam da aceitação social trazida pela legalidade para se infiltrar no tecido social e corroê-lo como um câncer. Se tivéssemos sido mais cautelosos, teríamos ponderado que uma atividade nociva não regulada, mas marginal, talvez fosse menos danosa que uma nociva amplamente disseminada, ainda que regrada.

Os dados do relatório do BC são motivo não apenas para anteciparmos ações regulatórias, mas para discutir a revisão da legalização dos sites de apostas. Agora, porém, tudo será mais difícil do que teria sido se tivéssemos agido a tempo. O fluxo financeiro das bets inundou de dinheiro o futebol profissional, comprou a simpatia dos influenciadores de internet e seduziu o Fisco com ampliação de receita num momento de aperto fiscal. Alimentamos e fizemos crescer um monstro que agora teremos muita dificuldade de controlar.

 

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