Emerson Voltare / Folha de S. Paulo
Ex-ministra do Trabalho defende reforma
trabalhista e sugere que profissionais se organizem por empresa, e não por
categoria
As relações de trabalho mudaram drasticamente
e os movimentos trabalhistas precisam entrar
no século 21 se quiserem recuperar alguma relevância, defende Dorothea
Werneck, 76, primeira mulher a ocupar um cargo de ministra na redemocratização
brasileira.
Ela defende que a organização dos
trabalhadores deve se dar no âmbito de uma empresa, não de uma categoria.
"Cada empresa tem a sua realidade. Uma é completamente diferente da outra.
Quando você unifica, fica pela média baixa. Medíocre."
Ministra do Trabalho (1989-1990) e da
Indústria e Comércio (1995-1996), com forte articulação com os sindicatos,
Dorothea elogia a reforma trabalhista de 2017, que abriu novas possibilidades.
"Deixe a mão de obra livre. Quanto menos regulamentação, melhor",
afirma.
Atuante na vida pública quando os grandes
problemas eram inflação e dívida externa —hoje controlados—, a economista
mineira aponta que a emergência climática é prioridade número um da economia brasileira
atual, à frente das contas públicas, da reforma tributária, das novas relações
de trabalho ou da revolução tecnológica.
Para Dorothea, a atuação do governo Lula
nessa área tem sido "zero à esquerda", e setor público, iniciativa
privada e sociedade ainda não estão falando a mesma língua. "Acho que as
coisas ainda vão piorar até encontrarmos um consenso mínimo", disse
à Folha numa conversa por vídeo, de sua casa em Brasília, em uma
tarde sufocada pela fumaça das queimadas.
A ex-ministra também minimizou um episódio de
machismo que ganhou as manchetes em 1989, quando o então presidente da Fiesp
(Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) Mario Amato (1918-2016)
afirmou que a ministra do Trabalho "era muito inteligente, apesar de
mulher".
"Na verdade, tinha pena da ignorância dele. Quando tive a oportunidade, até acabei agradecendo pessoalmente: ‘Mario, obrigado por ter me inspirado. Estava quase acabando um livro, mas não tinha um título para obra. Agora encontrei’." O livro "Apesar de ser mulher", lançado em 1990, narra experiências da economista no cenário político da época.
Quando a senhora esteve no governo, dívida
externa e inflação eram os grandes problemas. Hoje, ambas estão controladas. O
que tomou seu lugar em relevância?
Tivemos a abertura da economia também no começo da década de 1990. O período de
transição foi extremamente difícil. O Brasil esteve perto de quebrar. Hoje, sem
dúvida alguma, o grande
desafio é o aquecimento global. Não vejo a coisa andando bem. Há um jogo de
empurra. Inundações catastróficas todo ano e o país pegando fogo, literalmente.
Temos que mudar o paradigma, pensar diferente. Nenhum governo sozinho irá
resolver essa questão. Há necessidade de um pacto entre público, privado,
sociedade civil e organizações não governamentais.
Mas e a polarização política? As democracias
ocidentais vivem um momento de corrosão...
Não há polarização. Há uma tremenda burrice. Mas precisamos lembrar que
unanimidade na democracia não existe. Basta um pacto que represente a vontade
da maioria dos eleitores. Metade mais um. Uma coisa é você ter uma posição.
Outra completamente diferente é acreditar que a única resposta certa é a sua. O
país terá de decidir em algum momento se vai querer continuar vivendo da renda
do petróleo e da exportação
de carne de boi, por exemplo.
Por isso que acho que, infelizmente, as
coisas ainda vão piorar até encontrarmos um consenso mínimo. Talvez quando
estivermos à beira da tragédia. Espero que ainda dê tempo de reverter. Estamos
na era da biotecnologia moderna. Ela está aí para resolver muitos de nossos
problemas.
Vê o governo na direção correta?
Zero à esquerda. Nem o governo pensa de forma unificada. E, se ele não faz,
empresários e população em geral também não vão fazer. As perspectivas de
momento são trágicas para um futuro com qualidade de vida. Governo nenhum
conseguirá resolver um problema desse tamanho sozinho.
Congresso, assembleias legislativas e câmaras
de vereadores também precisam ser chamadas para formular boas políticas.
Participei fortemente quando o país resolveu
buscar mais competitividade e produtividade no início dos anos 1990, com a
abertura durante o governo Collor. A economia esteve à beira do colapso. Você
tinha de conversar, mudar o jeito de pensar.
Ali o governo já estava politicamente
bastante desgastado, mas, mesmo assim, antes de sofrer o impeachment, montou
novo ministério, bastante respeitável, de matizes ideológicas diversas: Adib
Jatene, Alceni Guerra, Celso Lafer, José Goldemberg, José Lutzenberger,
Marcílio Marques Moreira, Ozires Silva, Sérgio Rouanet...
Programas sociais, inclusive alguns
elaborados pela sra., como o seguro-desemprego, estão na mira do atual governo
como forma de conter gastos para reduzir o rombo das contas públicas. Está na
hora de rever esses benefícios?
De maneira alguma. É a garantia de renda para um desempregado. Não pode
corrigir um problema criando outro.
Como avalia a reforma trabalhista aprovada
durante o governo Temer?
Era necessária. Veio a possibilidade de contratos individuais, fazer a sua
própria jornada, a chance de trabalhar de casa. Os controles cada um pode fazer
do seu jeito, empregador e empregado. Não dava mais para ser como na década de
1940, época da criação da CLT
(Consolidação das Leis do Trabalho). Algumas mudanças precisam ser feitas
na marra.
Sindicatos hoje têm uma fração diminuta do
poder que tinham quando foi ministra. Quais as consequências disso?
O modelo que tínhamos era sempre pela média. Quem podia ganhar mais ficava
estagnado. Quem estava estagnado tinha reajuste por osmose, pela categoria.
Hoje o contrato pode ser individual. Há inúmeros modelos, formatos.
Deixe a mão de obra livre. Regulamente o
mínimo possível. Já temos o Código Civil para regular as relações, os
contratos. Qual o sentido de uma legislação trabalhista de quase cem anos,
criada num contexto completamente diferente?
É ruim termos sindicatos tão fracos como
hoje? O que fazer para que eles voltem a ter poder de negociação?
A economia sofreu transformações drásticas nos últimos 30 anos. Naqueles
impasses intermináveis de movimentos grevistas na década de 1980 e 1990,
alertava: ou vocês (sindicatos) fazem uma negociação que não vai atingir todo o
percentual que reivindicam, para a sobrevivência dos trabalhadores da
categoria, ou não terá mais emprego daqui a não muito tempo. Foi o que
aconteceu, por exemplo, no setor bancário.
Ganhar muito num curto período e ficar
desempregado depois ou ter a garantia de um emprego futuro?
Os movimentos
trabalhistas precisam entrar no século 21. A organização dos trabalhadores
hoje deve se dar no âmbito de uma empresa, não de uma categoria.
Cada empresa tem a sua realidade. Uma é
completamente diferente da outra. Quando você unifica, fica pela média baixa.
Medíocre. Uma empresa que poderia fazer mais fica presa por conta de outras
menos produtivas e lucrativas.
Novos modelos e contratos de trabalho, como o
de aplicativos, por exemplo. Como regular isso?
Minha inspiração hoje chama-se Zélia Gattai [risos], autora
de "Anarquistas, Graças a Deus". O mundo do trabalho acabou com a
revolução industrial? Não. Com a revolução tecnológica até o momento? Não. Vai
acabar com a inteligência
artificial? Também não.
Você diminui as oportunidades de trabalho em
determinadas áreas, mas cria um mundo em outras. Problema de sempre é a
formação. A pessoa precisa saber interpretar número e leitura. Se for esperar
pelo sistema educacional estatal, esquece. As empresas terão de formar. Não
será mais aprendizado para a vida toda. Será ao longo da vida toda. É o novo
mundo. Esquecer o passado e olhar para a frente.
A reforma tributária está no caminho certo?
Antes de aprovar a reforma
tributária, precisamos resolver o problema da federalização. A União ainda
centraliza muita arrecadação. Outra parte menor fica para o estado e sobra
pouco para o município. É o prefeito quem cuida do dia a dia das pessoas.
Princípio de equidade é diferente de
igualdade. Cada um tem de ser cuidado de acordo com a sua necessidade. E quem
sabe é quem está lá, não o burocrata de Brasília.
Ah, mas e os prefeitos? A população aprende
errando. Ela que tem que saber se quer água limpa ou uma praça.
Vamos pegar o caso da educação de alguns
municípios cearenses, campeões de avaliações positivas nos últimos anos. Foi um
projeto local, adaptado à realidade do lugar. E houve continuidade. A população
aprovou. Funcionaria no Rio Grande do Sul ou no Amapá? Não sei. São eles (os
locais) que sabem.
A polarização na política brasileira será
duradoura?
Parece que hoje não temos ainda uma liderança do século 21. Infelizmente essa
'cabeça' ainda não chegou. Quando vai chegar? Não sei. Mas vai chegar. Terá que
surgir, senão será nosso fim.
A sra. já contou como resolveu uma grosseria
pública do ex-presidente da Fiesp. Mas o poder em Brasília parece continuar
muito masculino. Viu alguma mudança de seu tempo para cá?
Veja bem, sinceramente não tenho acompanhado nem tenho opinião formada
sobre o
que ainda estaria acontecendo atualmente dentro dos núcleos de poder. Creio
que sempre tive uma participação pública muito técnica. Já tive equipe
majoritariamente masculina, feminina. A gente se adaptava. Até a escolha do
presidente Sarney para eu assumir um ministério creio que tenha sido técnica.
Ele me conhecia do tempo em que trabalhei no governo com o Almir Pazzianoto
[ex-ministro do Trabalho]. Mas, ao fazer o convite pessoalmente no Palácio do
Planalto, disse ter ficado impressionado com meu desempenho durante uma
entrevista ao vivo na TV para o Boris Casoy.
Existia assédio entre chefe e subordinado?
Algumas vezes sim. Mas o que a gente orientava? Se se considera assediada, não
fique sozinha com ele. Não vá à sala dele desacompanhada. Não posso falar por
mim. Quando alguém vinha com conversas do tipo, 'nossa, como você está bonita
hoje', respondia, 'bonita está a sua gravata' e seguia a minha vida.
Acho que as competências entre homem e mulher
não são competitivas, são somatórias. Um sempre pode acrescentar ao outro.
Agora, quando sentia que não era mais bem-vinda em algum lugar, era a primeira
a pedir para sair.
Houve um episódio bastante conhecido na
imprensa da minha saída do governo Fernando Henrique, em 1996. Alguém vazou
para a Globo que Francisco Dornelles seria o novo ministro da Indústria e do
Comércio. A notícia causou constrangimento geral. O presidente me ligou para
conversar. Não queria. Já tinha tomado a decisão de sair. Mas ele acabou indo
em casa num fim de tarde para conversar. Parece ter sido bastante difícil para
ele. Não queria outro ministério nem cargo técnico no governo. Segui minha
carreira de pesquisadora na Cepal [Comissão Econômica para América Latina e
Caribe], em Santiago.
Ainda pensa em voltar para o setor público,
ministra?
Quando olho para trás, tenho um agradecimento profundo pelas oportunidades que
tive. Só que para fazer bem, você precisa entrar de cabeça e alma no negócio.
Passou. Sinto orgulho. Mas não sinto falta.
Faço consultorias privadas, só que não tenho
mais condições de viajar duas, três vezes ao dia como fazíamos. Se saio de
Brasília para um congresso em Fortaleza, volto muito cansada. Sei dos meus
limites.
Naqueles anos frenéticos de trabalho com 30,
40, 50 anos, elaborávamos um plano econômico, um projeto ministerial em menos
de uma semana. O país estava em profunda mudança, ebulição. Mal voltávamos para
casa. Tocávamos centenas de projetos.
RAIO-X
Dorothea Fonseca Furquim Werneck, 1948, Ponte
Nova (MG)
Economista brasileira formada pela UFMG
(Universidade Federal de Minas Gerais), mestre pela FGV (Fundação Getulio
Vargas), doutora em economia pelo Boston College (EUA), pesquisadora do Ipea
(Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), professora da UFRJ (Universidade
Federal do Rio de Janeiro), do Instituto Rio Branco, da UnB (Universidade de
Brasília), secretária e depois ministra do Trabalho no último ano do governo do
presidente José Sarney (1985-1990), secretária do Ministério da Economia do
governo de Fernando
Collor de Mello (1990/1992) e da Fazenda de Itamar Franco (1993-1994),
ministra da Indústria e do Comércio no primeiro mandato de Fernando
Henrique Cardoso (1995-1998), secretária de Desenvolvimento Econômico
de Minas Gerais, no governo de Antonio Anastasia (2011-2014) e consultora
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