Folha de S. Paulo
Presidente ‘urbano’ vs Congresso ‘dos
grotões’ costuma ser imagem recorrente no debate público
O Nobel de economia de 2024 foi concedido a pesquisas sobre o papel das instituições no desenvolvimento econômico. Em Political Obstacles to economic growth in Brazil (1965), Celso Furtado foi neoinstitucionalista avant la lettre. Seu objetivo era explicar por que tivemos industrialização sem política de desenvolvimento. Isso se devia à falta de "uma classe industrial armada de ideologia própria e com forte atuação", e às instituições que obstaculizavam os interesses do mundo urbano industrial.
O sistema federativo "ao atribuir grande
força ao Senado,
no qual os pequenos estados agrícolas e as regiões mais atrasadas têm
influência decisiva, coloca o Poder Legislativo praticamente em mãos de uma
minoria da população do país." Instituições eleitorais excludentes
cumpriam o mesmo papel: "Na Câmara, o número de deputados é proporcional à
população de cada estado. Desta forma, quanto mais analfabetos um estado tem,
mais valor tem o voto da minoria votante. Assim, o voto de um cidadão que
habita um estado com 80% de analfabetismo, vale cinco vezes mais do que o
daquele outro que habite um estado 100% alfabetizado. Como é nas regiões com
mais analfabetos que a oligarquia tem mais força, o sistema eleitoral contribui
para manter o predomínio desta".
Mas nas eleições majoritárias
a hegemonia se romperia: "Estas exceções assumem importância, nos estados
mais desenvolvidos, para o cargo de governador e, no plano nacional, para o
cargo de presidente da República". Isto gerava as condições para que
"o Poder Executivo represente as forças que desafiam o status quo,
representado pela velha oligarquia que domina o Congresso".
As relações Executivo-Legislativo seriam
marcadas por um conflito irresolúvel entre o presidente —eleito por um
eleitorado modernizante urbano— e um Congresso conservador, comprometido com o
status quo.
O presidente sequer tinha poder de iniciativa
quanto a reforma constitucional, que a constituição de 1946 reservava ao
Legislativo: "Conservando em suas mãos o Poder Legislativo, ao qual cabe
com exclusividade a iniciativa de mudar a Constituição, a classe dominante
tradicional ocupa uma posição privilegiada na luta pelo controle das
instituições políticas".
O resultado era ingovernabilidade: "Para
legitimar-se o governo tem que operar dentro dos princípios constitucionais.
Por outro lado, para corresponder às expectativas da grande maioria que o
elegeu —principalmente da população urbana consciente politicamente—, o
presidente da República teria que alcançar objetivos que são incompatíveis com
as limitações que lhe cria o Congresso dentro das regras do jogo
constitucional.
O duplo imperativo levaria a uma escolha
trágica: "a subordinação ao marco constitucional e a obediência ao mandato
substantivo que vem diretamente da vontade popular entram em conflito, criando
para o presidente a disjuntiva de trair o seu programa ou forçar uma saída não
convencional, que pode ser inclusive a renúncia".
Presidente "urbano" vs Congresso
"dos grotões" é imagem recorrente no debate público no momento. Mas
fato é que ocorreu radical metamorfose; agora o presidente e os governadores
do PT concentram
votos nas regiões menos
desenvolvidas, ao contrário do diagnóstico de Furtado.
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