É sensata iniciativa da Fazenda para plataformas digitais
O Globo
Proposta do governo segue regulação da
concorrência adotada na UE. Seria uma lástima se parasse no Congresso
As diretrizes do Ministério da Fazenda para
regular a competição entre as grandes plataformas digitais são sensatas e devem
ser aprovadas quando forem analisadas no Congresso. Como mostra a experiência
internacional, a ausência de regras é perniciosa à livre concorrência e ao
interesse dos consumidores. Controladoras dos mercados em que atuam, as
plataformas sufocam a concorrência em benefício próprio. Privilegiam produtos
delas mesmas, forçam a assinatura de acordos de exclusividade em vendas casadas
e compram concorrentes antes que virem ameaça. Ao propor o fim do vale-tudo no
mercado digital, a Fazenda pretende colocar o Brasil no rol dos países com os
melhores padrões de regras concorrenciais.
A proposta de regulação tem como inspiração a experiência da União Europeia (UE). Estabelecida recentemente, a lei europeia determina regras que as principais plataformas são obrigadas a seguir. Estão sujeitas a elas Alphabet (dona de Google e YouTube), Amazon, Apple, Booking, ByteDance (TikTok), Meta (Facebook, Instagram e WhatsApp) e Microsoft (LinkedIn). Para definir os alvos da regulação, empresas a que a Fazenda atribui “relevância sistêmica”, serão necessários critérios sobre faturamento (local e global), número de usuários, política de acesso a dados pessoais e de fornecedores.
De acordo com a proposta do governo, o
Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) é o organismo do governo
mais capacitado a estabelecer e implementar a regulação. Representantes da
Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) chegaram a reivindicar o
protagonismo, mas, do ponto de vista da concorrência, o Cade é a autoridade
reguladora adequada. Isso não quer dizer que não sejam necessários ajustes e
adaptações para dar conta da missão. As novas práticas adotadas pelas
plataformas digitais exigirão a criação de uma unidade especializada e a
contratação de pessoal preparado. Não se trata de reproduzir regras e
procedimentos adotados para empresas dos mercados convencionais.
Aos poucos, o cerco às plataformas tem se
fechado nas maiores economias. Em setembro, a mais alta Corte da União Europeia
determinou que a Apple pague € 13 bilhões em impostos, por considerar ilegal o
acordo tributário entre a empresa e a Irlanda. No caso do Google, manteve uma
multa de € 2,4 bilhões por abuso de poder ao privilegiar seus serviços nas
buscas. Em agosto, um juiz de Washington (DC), nos Estados Unidos, decidiu que
o Google abusa de seu monopólio de buscas, e o Departamento de Justiça cogita exigir
a quebra da empresa como reparação. Noutro caso, o Google foi condenado na
Califórnia por impor taxas abusivas a desenvolvedores na loja de aplicativos do
Android e terá de seguir diversas restrições a partir deste ano.
Depois de nove meses e da análise da experiência em uma dezena de países, a Fazenda apresentou uma proposta bem fundamentada. O maior risco é a regulação ser desfigurada ou empacar quando chegar ao Congresso. Um precedente recente dá justificativa à preocupação. A pressão da plataformas junto a parlamentares tem bloqueado o avanço do Projeto de Lei das Redes Sociais. Apesar da urgência da questão, do amadurecimento do debate dentro e fora do Congresso com inúmeras mudanças no texto, o projeto parou na Câmara. Será preciso atenção para que essa história vexatória não se repita com a regulação da concorrência.
Brasil tem oportunidade de assumir a
liderança em debate global sobre água
O Globo
Estudo constata panorama desolador caso não
sejam tomadas providências para preservar mananciais do planeta
A diplomacia brasileira precisa participar
dos debates e negociações decorrentes do relatório divulgado na semana passada
pela Comissão Global sobre a Economia da Água (GCE), criada por iniciativa da
Holanda com apoio da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico
(OCDE).
Entre outras propostas estão a definição de tarifas, o cálculo de subsídios, o
combate ao desperdício e um pacto global pela preservação da água como bem
comum. Dono de 12% de toda a água doce disponível no mundo, o Brasil será
inevitavelmente afetado por decisões que possam vir a ser tomadas nos fóruns
multilaterais sobre a questão, por isso deveria assumir a liderança nos
debates.
O cenário traçado pela Comissão é desolador.
Mais da metade da produção mundial de alimentos estará sob risco nos próximos
25 anos se não forem tomadas medidas para preservar o meio ambiente, pondo fim
à destruição dos ecossistemas de que depende o ciclo da água doce. Metade da
população mundial já enfrenta escassez de água. Aproximadamente 3 bilhões de
pessoas e mais da metade da produção mundial de alimentos estão em áreas onde a
disponibilidade de água está em queda. A situação tende a se agravar, e os países
já estão atrasados. Muito precisa ser feito para atingir as metas do estudo.
Com agricultura forte, protagonismo na
exportação de alimentos e 210 milhões de habitantes, o Brasil é grande
consumidor de água. Também é responsável por grande desperdício. Um dos
objetivos do relatório é acabar com a ideia de que a água é um bem natural
sempre à disposição. Depois de enfrentar, em dois anos, duas fortes secas no
Norte e Centro-Oeste, o país já deveria saber que não é bem assim. A comissão
entende que se trata de bem comum que conecta países e regiões. Guarda relação
direta com as mudanças no clima e a perda da biodiversidade, por isso afeta
todos os objetivos do desenvolvimento sustentável.
A definição de preço para a água e o cálculo
de quanto é subsidiada servem para que seu consumo seja mais eficiente. É
difícil ser contra o conceito, um dos temas na pauta do encontro mundial
específico previsto pelas Nações Unidas para 2026. A discussão foi aberta com a
divulgação do relatório.
É provável que alguns setores considerem que
a mobilização esconde interesses protecionistas contra as exportações
brasileiras de alimentos. Mas o assunto é sério e precisa ser tratado de forma
global. Além de cuidar bem do meio ambiente, o Brasil tem a oportunidade de ser
um protagonista nessa discussão. Como credenciais, pode apresentar projetos de
reflorestamento que capturam carbono na atmosfera, um serviço a ser remunerado
por países que se mostram preocupados com o destino de suas lagoas, rios e mananciais.
Toda preocupação com a conservação dos recursos naturais do planeta precisa ser
compartilhada pelos brasileiros.
Vulnerável a eventos extremos, energia carece
de planejamento
Valor Econômico
Por envolver todas as áreas da atividade
humana, as ameaças climáticas exigem resposta coordenada do Executivo, de
Estados e municípios
O verão ainda não chegou, como não havia
chegado em novembro de 2023, quando uma tempestade com vendavais deixou 3
milhões de paulistanos sem luz, alguns por até uma semana. A cena se repetiu
antes neste ano, na mesma cidade, sob responsabilidade da mesma distribuidora,
a Enel, com efeitos igualmente nocivos para os cidadãos - o que não seria de se
esperar diante da experiência do passado. Desta vez, houve muito mais barulho -
sem correspondentes ideias e soluções -, porque o temporal caiu no meio da eleição
municipal, desenhando, entre os atores do drama, um círculo vicioso da
responsabilidade. Guilherme Boulos, do Psol, culpou o prefeito e a Enel;
Ricardo Nunes, o prefeito, culpou Lula, a Aneel e a Enel; e o governo do
presidente Lula culpou a Aneel pelo que deixou de fazer com a Enel. A Aneel
multou de novo a empresa, que culpou o clima e ficou quase muda.
Independentemente das responsabilidades, o
mais importante no desastre do fornecimento de energia na capital paulista, a
maior e mais rica do país, é minimizar danos futuros, com bons diagnósticos e
consertos das falhas. O diagnóstico inescapável é o que vários cientistas de
primeira linha têm delineado e que foi resumido com clareza por Paulo Artaxo,
em reunião com Lula e a cúpula do governo em 17 de setembro: “A crise climática
chegou para ficar. A grande questão é o que faremos como nação”, disse. (Valor, 15/10). Empresas e
governo não podem mais alegar surpresa diante das mudanças climáticas. Os
eventos extremos agora fazem parte da paisagem e se tornarão tão mais
destrutivos quanto menor for a habilidade de se tomar medidas para preveni-los.
As metrópoles deveriam ser um dos alvos
principais das medidas de resistência e prevenção. O desmatamento está
destruindo a Amazônia, o Cerrado e demais biomas. Mas os efeitos desta
devastação vão ser sentidos com maior força também nos locais onde os seres
humanos estão mais concentrados. Porto Alegre e centenas de municípios gaúchos
sentiram os efeitos de chuvas torrenciais que alagaram a maior parte do Estado,
em uma catástrofe inédita no país. Comparada com a tragédia gaúcha, a falta de
luz nos temporais paulistanos é um episódio menor, mas na perspectiva do
futuro, não. Será preciso realizar transformações radicais nas metrópoles que,
se não forem preparadas gradualmente, desde logo, deixarão milhões de pessoas
indefesas diante dos riscos climáticos.
As empresas de energia, em especial as
distribuidoras, estão em uma das pontas mais vulneráveis a alterações
climáticas abruptas. Os contratos atuais já as obrigam a prover fornecimento
seguro e ininterrupto de um bem essencial à sobrevivência e à produção de bens
e serviços. A Aneel, para fechar lacunas, abriu consulta pública para
determinar que suas redes sejam objeto de investimentos de proteção
obrigatória, pelas quais poderão ser ressarcidas.
Assim como no Rio Grande do Sul uma das
causas do agravamento das enchentes foi a inexistência de várzeas e regiões de
alagamento natural às margens dos rios, na capital paulista as árvores são uma
das causas das quedas das redes elétricas e das longas interrupções de energia.
São Paulo e outras grandes cidades não podem mais conviver com redes de fios
aéreos sem que ao menos haja discussões. O custo para enterrá-las não é alto,
mas os prejuízos aos cidadãos estão sendo mais caros. Há 650 mil árvores na capital
paulista e a maioria delas foi plantada nas décadas de 1950 e 1960, tendo-se
esgotado seu ciclo de vida (Giuliano Locosselli, Valor, 16/10). Sem um estudo
sério sobre enterrar os fios e planejar a arborização, a batalha contra os
vendavais e tempestades será uma constante repetição de transtornos - como tem
sido.
São Paulo tem recursos para se prevenir de
catástrofes climáticas, e é preciso determinação política para dar prioridade a
essa tarefa, que deveria se tornar rotineira agora. A maior parte das cidades,
mesmo as 1700 identificadas como as mais vulneráveis do país, carece de
sistemas de alarme à população mesmo rudimentares. Eles se tornam cruciais em
grandes cidades, onde a ocupação do solo é caótica e milhares de pessoas vivem
em áreas sujeitas a deslizamentos e inundações. A política de planejamento e expansão
urbana precisará mudar radicalmente e levar em consideração todos os fatores de
riscos. Os sistemas de meteorologia precisarão de mais investimentos e melhores
prognósticos, e não de sucateamento orçamentário, como ocorre agora, não só com
eles, mas também, o que é grave, com os gastos com a Defesa Civil, a primeira
linha de atendimento à população.
Por envolver todas as áreas da atividade
humana, as ameaças climáticas exigem resposta coordenada do Executivo, de
Estados e municípios. A separação de ações e planejamento entre vários
ministérios, com a pulverização de recursos, mantendo-se o do Ambiente como
primo pobre das dotações, é um obstáculo à eficiência.
Como os desafios são imensos em um Estado sem
tradição de planejamento de longo prazo, é possível escolher etapas, objetivos
e metas. Começar pelos alertas, por cuidar das árvores e pela proteção da
oferta de energia é factível e pouparia a população dos enormes transtornos dos
quais São Paulo foi um exemplo nos últimos meses.
Governo
tem desafio de fazer ferrovias deslancharem
Folha
de S. Paulo
Devolução
de trilhos abandonados em concessões pode render R$ 20 bi à União; novo
planejamento para o setor é necessário
Após décadas
de frustrações e desenvolvimento insuficiente, o transporte
ferroviário nacional pode ganhar novo ímpeto nos próximos anos com a renovação
antecipada das concessões à iniciativa privada.
Nos
planos do governo federal, as negociações ora em curso e a revisão dos termos
de algumas das renovações concluídas na gestão de Jair Bolsonaro (PL) poderão
render R$ 20 bilhões aos cofres da União, que seriam investidos no
planejamento de infraestrutura do setor.
Além
de novos investimentos em expansão e modernização da rede, as renovações
poderão resultar na devolução ao poder concedente de cerca de 11,1 mil
quilômetros de trilhos abandonados ou sucateados, o equivalente a 36% da malha
existente.
Segundo
a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), somando os trechos de
baixíssima utilização, nada menos que 57% da malha nacional tem nível de
tráfego abaixo de um par de trens (ida e volta) por dia.
Os
trilhos abandonados são geridos por empresas que assumiram pedaços da rede com
a privatização no fim do anos 1990. A concessionária Rumo detém a maior parte,
4.900 km. A ferrovia Transnordestina Logística, controlada pela CSN, tem 3.000
km de trilhos abandonados. Já a VLI, que tem a Vale como sócia, controla a
ferrovia Central Atlântica, com 2.100 km inutilizados.
Seja
pela complexidade do setor, cuja
regulação se mostrou ainda mais difícil do que a de outros na
infraestrutura, seja pela má gestão dos contratos e mesmo inaptidão dos
traçados antigos e obsoletos às necessidades econômicas atuais, o fato é que o
modal ferroviário não atingiu até aqui o potencial esperado.
Ademais,
a definição dos valores de indenização para a devolução dos trilhos sempre foi
obstáculo nas negociações.
Uma
referência importante foi estabelecida, entretanto, após acordo firmado com a
Rumo e avalizado pelo Tribunal de Contas da União que renderá R$ 1,6 bilhão ao
governo federal. O TCU estabeleceu
um cálculo de pagamento favorável à União pela devolução de um trecho.
Quanto
aos trilhos devolvidos, cada quilômetro deve gerar pagamento entre R$ 1,5
milhão e R$ 2 milhões, valor muito abaixo do custo de construção de um novo
trecho, o que configura um incentivo às empresas para a conclusão das
tratativas.
Com
tais parâmetros, espera-se que outras negociações avancem nos próximos meses,
incluindo a revisão de renovações que já foram concluídas. A maior delas é com
a Vale em torno da prorrogação de duas concessões (Carajás e Vitória-Minas) em
2022, utilizando o abatimento à vista dos ativos da outorga, prática que
reduziu as receitas para a União e que vem sendo agora revista.
A
indenização em dinheiro e os novos investimentos exigidos nas contrapartidas da
renovação ampliam espaço para um novo planejamento, oportunidade que precisa
ser bem utilizada.
É
preciso conter a partidarização das forças de segurança
Folha
de S. Paulo
Alta
no número de agentes do setor nas eleições é perigosa; Congresso precisa
instituir quarentena para candidatura
No
pleito municipal deste 2024, verificou-se aumento no número absoluto de agentes
de segurança eleitos, com 856 candidatos que declararam ocupação como policial
e membro das Forças
Armadas, militar reformado ou que se identificaram na urna com
termos como "soldado" ou "delegado". Em 2020, foram 786.
Os
dados levantados pelo Instituto Sou da Paz foram publicados pelo jornal O
Globo. Já o número relativo de candidatos ligados a forças de segurança
manteve-se o mesmo desde 2020, com taxa de 1,5% em relação ao total. O estado
do Rio de
Janeiro lidera as estatísticas, com mais do que o dobro da
média nacional (3,48%).
Faltam
regras que inibam o fenômeno, como a exigência de um período de quarentena para
que agentes possam se candidatar após deixarem os cargos.
Em
agosto deste ano, a Folha destacou o alto número
(6.600) de candidatos nesse estrato —cifra provavelmente
subestimada, já que alguns policiais indicam a profissão como servidor público.
Um
em cada seis deles era do PL, partido do
ex-presidente Jair
Bolsonaro, que, ao lado de outras siglas à direita, advoga uma
política linha dura para o setor. A agremiação também lidera entre os eleitos,
168 neste ano.
Como
mostram pesquisas, a segurança é uma das maiores preocupações dos eleitores
brasileiros, mas a partidarização das forças pode gerar abusos de poder e
corroer os princípios da neutralidade e da universalidade que pautam o serviço
público.
Ademais,
a abertura para que agentes façam uso de sua associação com as corporações para
ganho de capital político presta um desserviço à construção de políticas
eficazes para combater a criminalidade, na medida em que há risco de que apelos
populistas se sobreponham a evidências e à gestão técnica.
O
Congresso deveria instituir uma regulação objetiva para separar o poder
de polícia da
política, como a imposição de quinquênio de afastamento do cargo para
participar dos pleitos —que também deveria ser exigido a candidatos oriundos do
sistema de Justiça, como magistrados e membros do Ministério
Público.
Um projeto de
lei complementar nesse sentido está em tramitação no Senado desde
2021. Que os parlamentares agilizem o processo, dado o aumento preocupante de
fardas nas urnas.
Cuidado com o que se deseja
O Estado de S. Paulo
Esquecem os revanchistas que, no futuro, o
veneno que tentam produzir contra o STF pode se voltar contra si, e que um
debate de boa-fé buscaria corrigir excessos da Corte, não emparedá-la
O ruidoso e claramente inconstitucional
pacote anti-STF revela-se mais do que um instrumento de vingança do presidente
da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), e de parlamentares instalados nas
hostes bolsonaristas e do Centrão contra o Supremo Tribunal Federal. É não só
uma vendeta contra a Constituição, como este jornal sublinhou há alguns dias,
mas também um ato de má-fé, um desvio de rota do que se espera de um debate
parlamentar sério, que respeita a democracia e a separação entre os Poderes.
Se fossem regidas pela boa-fé, a discussão e
a tramitação das propostas buscariam corrigir os excessos do STF, não emparedar
a Corte (e não faltam excessos de ministros do Supremo para serem corrigidos,
sobretudo alguns integrantes que se sentem acima do bem e do mal). Mas as
intenções do pacote são de outra natureza. E o que surgiu sob o pretexto de
“reequilibrar” os Poderes deflagra, ao contrário, mais desequilíbrio, ao dar
poderes absolutos ao Congresso. Eis aí o que pretendem, na prática, os liberticidas
que hoje se apresentam como a vanguarda do combate ao “ativismo judicial”.
Julgando-se maioria não só no Congresso, mas
na sociedade, esses inconformados com a democracia parecem ter concluído que
essa sua alegada condição majoritária durará para sempre. Não lhes passa pela
cabeça, desacostumada de raciocinar com bom senso, que a emasculação do
Supremo, uma vez inscrita na Constituição, servirá a quem for maioria, agora e
no futuro. Como a democracia tem como pressuposto a alternância no poder,
presume-se que, em algum momento, a maioria de hoje será a minoria de amanhã.
Ou seja, se hoje seria a direita reacionária a maior beneficiada de uma
eventual redução do poder do Supremo, amanhã pode ser a esquerda autoritária. A
não ser que a democracia representativa seja extinta no País, como aliás desde
sempre desejaram o ex-presidente Jair Bolsonaro e seus devotos mais radicais,
essa hipótese não é implausível.
Como se viu, o pacote foi desengavetado tão
logo o ministro do STF Flávio Dino decidiu suspender o pagamento de emendas
parlamentares até que o Palácio do Planalto e o Congresso estabeleçam
mecanismos de transparência para controle da disposição desses recursos
públicos. No pacote, há propostas legislativas como a PEC 28/2024, que propõe
dar ao Congresso o poder de suspender, por até quatro anos, decisões do
Supremo, se dois terços dos integrantes de cada uma das Casas Legislativas
considerarem que elas ultrapassam os limites legais. Dois projetos de lei (PL
658/2022 e PL 4.754/2016), por sua vez, tratam de novas hipóteses de
impeachment de ministros do STF. Entre elas, usurpar as competências do
Legislativo e violar a imunidade parlamentar em votos e decisões.
São iniciativas forjadas por quem acredita
que seu poder vai durar para sempre. O risco parece especialmente importante
quando se propõem regras vagas o suficiente para funcionar conforme a
interpretação de ocasião. É o caso do impeachment de ministros do Supremo. O
pacote amplia o rol de crimes de responsabilidade e permite a possibilidade de
processos em decorrência de medidas tomadas monocraticamente por ministros.
Trata-se de alínea escrita sob medida para o principal desafeto do
bolsonarismo, o ministro Alexandre de Moraes. No entanto, poderia, amanhã ou
depois, servir para eventualmente punir, por exemplo, um ministro irresponsável
que fizesse o que Kassio Nunes Marques fez em plena pandemia de covid-19.
Recorde-se que Nunes Marques, indicado à Corte pelo então presidente Bolsonaro,
mandou reabrir templos religiosos mesmo diante da necessidade óbvia de
distanciamento social, numa decisão monocrática que figura entre as piores da
história do Supremo e que, por esse motivo, rapidamente foi revertida pelo alarmado
plenário.
Em resumo, cuidado com o que se deseja. É
preciso boa-fé nos debates sobre propostas que, na prática, podem modificar
profundamente o horizonte republicano de um país. Seus efeitos e seus riscos
requerem prudência, cautela e discussão qualificada – e não o revanchismo
irresponsável que parece prevalecer no momento.
Quem avisa amigo é
O Estado de S. Paulo
Avaliações técnicas de órgãos do Executivo e
do Legislativo consideraram novo modelo do Auxílio Gás um convite à fraude,
além de risco flagrante de irregularidade nas contas públicas
Antes de o governo Lula da Silva enviar ao
Congresso o projeto com o novo desenho do Auxílio Gás, com a meta de
quadruplicar o benefício dos atuais R$ 3,4 bilhões para R$ 13,6 bilhões no ano
eleitoral de 2026, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) havia
advertido que a fórmula usada para suprimir essas despesas do cálculo fiscal
poderia torná-las “irregulares e lesivas ao patrimônio público”. A área técnica
do Ministério da Fazenda também fez ressalvas ao modelo diante do potencial de
incentivo a fraudes. Por fim, a Consultoria de Orçamentos da Câmara alertou
para a violação constitucional que representa o pagamento de despesas à margem
do processo orçamentário.
Com tantos e tão explícitos avisos –
revelados pelo Estadão com dados obtidos por meio da Lei de Acesso à
Informação –, é lícito questionar por que, afinal, o governo ignorou tudo isso
e enviou o projeto ao Congresso para votação em regime de urgência.
Ante a repercussão negativa, o regime de
urgência foi retirado, mas o problema continua. Na ausência de qualquer lógica
– ainda mais por estar tão fresca na memória nacional a contabilidade criativa
do governo Dilma Rousseff, que levou ao impeachment da petista –, resta
concluir que, como na fábula do escorpião e do sapo, em que o primeiro mata o
segundo porque esta é, afinal, sua natureza, o lulopetismo simplesmente não
consegue ser responsável.
As irregularidades são flagrantes. Criar um
caminho alternativo para que o dinheiro para concessão do auxílio seja
repassado por empresas de petróleo diretamente à Caixa, para bancar o
fornecimento e distribuidoras de botijão de gás, dribla o Orçamento tanto no
sentido das receitas quanto no das despesas.
Os recursos para o programa, rebatizado de
Gás para Todos, provêm de contribuição para o Fundo Social do Pré-sal.
Portanto, o governo estaria renunciando a essa receita no Orçamento. O uso da
Caixa como agente repassador do benefício, por sua vez, faria a despesa
desaparecer do Orçamento, como mágica. Daí se explica o fato de o governo ter
enviado o Orçamento de 2025 com um corte de 84% na verba para o Auxílio Gás.
A irresponsabilidade fiscal travestida de
política social, que é uma marca do PT, ignora que a solvência das contas
públicas não é um capricho, e sim condição indispensável para a redução das
desigualdades sociais. Em contraponto, a engenhosidade contábil que por vias
tortuosas tenta criar mais espaço para a farta partilha de dinheiro público com
fins eleitorais é um passaporte para a insolvência e a recessão.
Além disso, o novo modelo embute um grande
risco de fraudes, como a revenda de botijões por beneficiários do programa ou
operações fictícias entre revendedores e beneficiários, como consta da nota
técnica da Secretaria de Reformas Econômicas do Ministério da Fazenda. A
advertência não impediu o envio do projeto ao Legislativo, com as assinaturas
dos ministros da Fazenda, Fernando Haddad, e de Minas e Energia, Alexandre
Silveira.
O regime de urgência, que havia sido
solicitado pelo Executivo, é adotado em matéria de inadiável interesse e, por
isso, impõe deliberação imediata, dispensando alguns ritos processuais, como a
tramitação em algumas comissões. Depois da retirada do pedido, o ministro
Haddad declarou que a proposta pode ser redesenhada.
Mas ainda há integrantes do governo que
consideram válida a manobra para turbinar o Auxílio Gás evitando os freios do
arcabouço fiscal. É o caso do ministro do Desenvolvimento Social, Wellington
Dias, que defende o uso do Fundo Social do Pré-Sal na operação do programa pela
Caixa. “Isso aqui é ou não social?”, indagou o ministro, petista histórico. É o
caso de lembrar ao ministro que sob nenhum pretexto a Constituição brasileira
pode ser desrespeitada. E ela determina que todas as receitas e despesas federais
devem constar da Lei Orçamentária Anual para garantir transparência e controle
no uso dos recursos públicos.
A consequência do rearmamento
O Estado de S. Paulo
Aumento de roubos e furtos de armas de CACs é
fruto da irresponsabilidade de Bolsonaro
Para surpresa de rigorosamente ninguém, o
número de roubos e furtos de armas de fogo adquiridas legalmente por caçadores,
atiradores e colecionadores (CACs) triplicou entre 2018 e este ano, segundo um
balanço do Exército, instituição responsável por registrar e fiscalizar os
armamentos em poder dos CACs no País. Em 2018, de acordo com o relatório da
Força Terrestre, foi registrada uma média mensal de 62,5 ocorrências desse
tipo. Até 9 de outubro de 2024, a média havia saltado para 180,7 roubos e
furtos por mês.
É incontornável associar esse terrível
indicador à política de afrouxamento das exigências para a aquisição de armas
de fogo por CACs durante o trevoso mandato de Jair Bolsonaro na Presidência da
República, entre 2019 e 2022. Entre os não poucos desdobramentos infaustos da
obsessão de Bolsonaro em armar a população brasileira até os dentes, o desvio
de armas de fogo adquiridas legalmente pelos CACs para as mais perigosas
organizações criminosas em atividade no País é seguramente o pior.
Não demorou para que facções criminosas como
o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV), entre outras,
vissem na ascensão dos CACs um potencial mercado fornecedor de armas de fogo
para suas atividades delitivas, sobretudo as armas de grosso calibre, muito
utilizadas na guerra pelo controle de rotas do tráfico de drogas e em ações do
chamado “novo cangaço”.
Por meio de laranjas, que falsificam
documentos para obtenção do certificado CAC, as facções passaram a pagar preços
significativamente menores do que os praticados no mercado ilegal de armas.
Para os bandos, CAC se tornou sinônimo de bons negócios, pois a aquisição de
fuzis, carabinas e pistolas automáticas antes restritas às Forças Armadas e às
polícias representa uma economia de até 70% em relação aos preços cobrados por
contrabandistas.
Às fraudes para obtenção dos certificados,
que também cresceram exponencialmente dada a incapacidade material e humana do
Exército para exercer a devida fiscalização sob a pressão de uma demanda que
não parou de crescer, somam-se esses roubos e furtos de armamento, tanto de
lojas autorizadas a vendê-lo como dos cidadãos que o adquiriram legalmente.
O Estadão apurou que o Ministério
da Justiça e Segurança Pública trabalha com o Exército na formulação de uma
nova política para os CACs, a vigorar a partir de 2025. Entre as mudanças
cogitadas está a transferência da competência para registro e fiscalização para
a Polícia Federal (PF). Pode ser um caminho, embora as mesmas limitações que o
Exército alega ter para cumprir bem a sua atribuição decerto serão apresentadas
pela PF caso eventualmente assuma o encargo.
O que interessa para a sociedade, a vítima
maior desse combo perigosíssimo que inclui grande circulação de armas de fogo
nas ruas e descontrole de sua origem, é que a fiscalização e o rastreio dessas
armas sejam mais bem feitos – se pelo Exército, pela PF ou por qualquer outra
instituição, pouco importa.
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