O Globo
O que para uns é crise, para o caroneiro é
oportunidade de negócio. Deus o livre do fim das tretas
Extremistas de esquerda brasileiros
comemoraram o assassinato de um extremista de direita americano na semana
passada. "Adoro quando fascistas morrem em agonia", postou uma
consultora de estilo (que depois alegou se referir a Jair
Bolsonaro, e não ao extremista americano). "É terrível um ativista ser
morto por ideias, exceto quando é [o trumpista] Charlie Kirk", disse um
historiador.
Pelo que postaram e disseram, consultora e historiador foram achincalhados, cancelados, perderam emprego e contratos — se deram mal.
Uma outra turma, porém, se deu bem: os
“caroneiros de treta” — influenciadores que se aproveitaram do episódio para
escrever inflamados textos nas redes sociais pedindo a cabeça da consultora e
do historiador e outros que, do lado oposto, postaram mensagens igualmente
exaltadas exigindo “proteção” para os cancelados (vistos como, na verdade,
vítimas de preconceitos da direita).
Os posts de caroneiros dos dois campos têm
por característica transbordar de indignação e sede de justiça, e pouco importa
se nada disso for muito sincero. Com seus pontos de exclamação e suas tintas de
sangrar o coração, despertam em quem os lê raiva, ódio e medo — os sentimentos
que mais engajam ou, em outras palavras, fazem com que as pessoas se
engalfinhem, se insultem, portem-se como selvagens e desejem a morte umas das
outras.
Mas não foi justamente por festejar a morte
de alguém que os extremistas de esquerda foram cancelados? Bem, a esta altura
esse detalhe pouco importa. O circo já pegou fogo, e ninguém mais se lembra do
motivo do incêndio —tudo virou um embate entre esquerda e direita, que termina
com reputações destruídas, amizades rompidas e final feliz só para o
influenciador caroneiro. Este aumentou sua visibilidade, ganhou seguidores,
monetizou o que pôde e engordou o cofrinho. O que para uns é crise, para o
caroneiro é oportunidade de negócio. Deus o livre do fim das tretas.
A “treta” de redes sociais é o braço digital
da polarização política — a divisão da sociedade em campos opostos, que
enxergam o mundo de forma incompatível e se tratam mutuamente como inimigos.
Muita gente acha que fica até mais fácil viver assim, dado que essa divisão
evita o trabalho de pensar. Quem quiser assumir posição sobre alguma questão
não precisa perder tempo analisando seus prós e contras. Basta ver o que o
outro lado pensa — e pensar o contrário.
Muitos políticos gostam da polarização
também, nesse caso porque a lógica dos antagonismos dispensa nuances e
simplifica o jogo. O candidato se apresenta como o único capaz de evitar a
vitória do inimigo e, quanto mais esse inimigo parecer crescer, mais
importância ganham suas credenciais de salvador da pátria. Claro que, para
funcionar, os campos têm de estar bem delimitados.
O PT usa o discurso da polarização desde priscas
eras, quando chamava o PSDB de partido “a serviço dos banqueiros”. Foi assim,
encarnando o “povo” contra as “elites”, que respondeu ao maior escândalo de
corrupção que enfrentou, o mensalão.
— Eles [as elites] não suportam ver um
metalúrgico na Presidência —resumiu Lula em
2006.
Em 2018, foi a vez de a sigla provar o gosto
amargo do “nós contra eles”. Com Jair Bolsonaro, a retórica antielite do
partido perdeu para a retórica antipetista do ex-capitão, que arrastou o debate
para o campo moral e inaugurou a guerra do “bem contra o mal”, em que o PT era
nada menos que o demônio.
A gangorra mudou de posição mais uma vez em
2022, quando o PT baseou sua campanha na ameaça à democracia representada por
Bolsonaro, e o “voto do medo”, que se provou fundamentado, beneficiou o
petista. Lula contou com Bolsonaro para se eleger e continuou contando com ele
para manter a popularidade de seu governo acima da linha-d’água. Agora,
Bolsonaro está fora do jogo. Como ninguém gosta de polarização, mas muita gente
se aproveita dela, aguarda-se o rápido preenchimento da vaga de inimigo do
povo.
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