O Globo
São farinha do mesmo saco quem comemorou o
assassinato de Marielle e quem acha que o tiro letal em Charlie Kirk melhorou o
mundo
Aprendemos nos livros de História que os termos “esquerda” e “direita” nasceram na França, no fim do século XVIII: na Assembleia Nacional, os partidários da monarquia se sentavam do lado direito, e os simpatizantes da Revolução, do lado oposto. Desde então (grosso modo), esquerdistas são associados a democracia, coletivismo, internacionalismo, intervencionismo estatal e desejo de mudança; a direita, a elitismo, individualismo, nacionalismo, livre mercado e apego a que as coisas continuem do jeito em que estão. Hoje, isso virou um balaio de gatos.
A mesma esquerda que investiu contra o
dicionário, considerando que o verbo “judiar” perpetuava o preconceito contra
os judeus, embarcou de mala e cuia no antissemitismo. A pretexto de defender os
palestinos, fez de Israel — única democracia do Oriente Médio — seu inimigo
preferencial. E qualquer coisa é pretexto para que o antissemita enrustido saia
do armário: bastou o ministro Luiz Fux divergir da condenação aos golpistas do
8 de Janeiro para que os piores epítetos fossem associados à sua origem
judaica. Tivesse o voto sido do ex-ministro Joaquim
Barbosa, veríamos os antirracistas rasgarem as cartilhas em que exibem suas
virtudes igualitárias. Viesse a divergência de Cármen
Lúcia, adeus sororidade e feminismo; no mínimo ouviríamos que lugar de
mulher é no tanque e no fogão. Flávio Dino que
ouse divergir, para ver o que é gordofobia. Parte da esquerda só é progressista
até a página 2 — isso se as letras forem grandes, e as margens bem largas.
A direita, que bancou 21 anos de ditadura —
com censura, tortura e prisões arbitrárias — tomou para si a defesa da (sua)
liberdade de expressão. Faz-se de vítima da “ditadura da toga” — logo ela, que
deitou e rolou com a ditadura da farda. Trocou a soberania por uma enorme
bandeira americana e, depois de acusar os adversários de defender bandidos,
aderiu em massa à blindagem dos delinquentes com assento no Congresso.
A turma da diversidade fez das feiras
literárias um feudo de sua panelinha — e sobe nas tamancas quando alguém de seu
campo é excluído. Pessoas “de bem” exigem que sejam expurgados das bibliotecas
públicas livros que não rezem pelo seu catecismo. E ambos os lados reduzem a
arte ao proselitismo – anticapitalista, antiwoke etc. Ninguém ainda ateou fogo,
mas os fósforos já estão na mão.
São farinha do mesmo saco quem comemorou o
assassinato de Marielle Franco e quem acha que o tiro que matou Charlie Kirk
tornou o mundo um lugar melhor. Aliás, Kirk, que fazia turnês para debater com
quem discordava dele, era chamado de fascista; Márcia Tiburi se recusou a
conversar com quem não pensa da mesma forma que ela; e manteve a aura de
antifa.
O pensador Augusto de Franco coloca a questão
não em termos de esquerda ou direita, mas de liberais e iliberais. Os primeiros
podem ser progressistas ou conservadores, mas defendem democracia, liberdade,
pluralidade e preferem as reformas à ruptura. Os segundos são populistas, com
um pé no autoritarismo e uma queda pela hegemonia — que é o golpismo por outros
meios.
Visto por esse ângulo, Lula,
Bolsonaro, Trump, Putin, Orbán, Ortega, Bukele, Maduro estão todos sentados do
mesmo lado. Do outro — dos que prezam o diálogo e acham que a sociedade deve
controlar o governo, não o contrário —, o que mais tem é cadeira vazia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário