quinta-feira, 9 de agosto de 2018

Míriam Leitão: Malandros e indolentes

- O Globo

Ninguém ensinou ao general Mourão sobre a força cultural, a capacidade de trabalho e a luta de resistência dos brasileiros negros e indígenas

A declaração do general Hamilton Mourão sobre as raízes brasileiras é toda ruim. É uma ofensa ao país como um todo. Na visão que ele tem do Brasil, nossa herança africana nos legou a malandragem, nossa herança indígena nos trouxe a indolência. E dos portugueses teríamos recebido a tendência de gostar de privilégios. Essa maneira como o general apresenta o país é o que parece: racista.

Ele está na chapa do PSL, de Jair Bolsonaro. Uma chapa puro-sangue militar, e, pelo visto, de compartilhamento de valores e visão de mundo. Bolsonaro já usou uma medida de animais para falar de um suposto sobrepeso de pessoas das comunidades quilombolas, já ofendeu as mulheres com diversas afirmações, como a que explica ter tido uma filha como resultado de uma “fraquejada”, ou que elas têm que ganhar menos porque engravidam. Disse que se dependesse dele os índios não teriam terra no Brasil. Já fez declarações contra os homossexuais, informando que preferia um filho morto a aparecer com um “bigodudo”. Bolsonaro ofendeu as partes, Mourão ofende o todo. E assim eles formam esse par coerente que vai para a eleição como quem oferece ao país um expresso para o passado.

—Por isso essa crise política, econômica e psicossocial —explicou o general Mourão.

Além de ser uma explicação sem sentido para a crise, esse termo “psicossocial” lembra a linguagem usada na caserna dos anos 1970. No resto da declaração, o general traz para o presente um tempo ainda mais antigo, do estigma que recaiu de forma violenta sobre os brasileiros pelo racismo que se escondia atrás dessas explicações da nacionalidade.

Nada há que salve a declaração feita pelo candidato a vice de Bolsonaro. E ele a fez com tal espontaneidade que mostra que a repetiu sempre, sem qualquer contraponto. Ninguém o lembrou das verdades óbvias, das quais devemos nos orgulhar. Da força cultural, da capacidade de trabalho e da luta de resistência dos brasileiros negros e indígenas.

Ao tentar se explicar, o general Mourão repetiu que “só não gosta de privilégio quem não tem”, atribuindo isso à herança ibérica. Depois, tentou fugir com frases de sujeito indeterminado. “Essa coisa da malandragem, muitas vezes se fala que determinados habitantes de alguns estados brasileiros do país são malandros.”

Mesmo quando tenta atenuar a própria fala, ele repete a visão que tanto mal fez ao Brasil no começo do século passado com as explicações discriminatórias e racistas sobre nós e nossas origens culturais e étnicas. Por isso, o repúdio é a única reação possível a quem define dessa maneira o país que o general pretende governar como vice do capitão.

Na entrevista da sexta-feira passada com o candidato Jair Bolsonaro, na Globonews, lembrei a ele que o Brasil é um dos países com maior sociodiversidade do mundo, com mais de 200 povos indígenas e que isso é parte da nossa força e riqueza cultural. Falei também que as imagens de satélite mostram que as terras ocupadas pelos índios costumam ser as mais bem protegidas do ponto de vista ambiental. Diante disso, perguntei sobre uma declaração de que se dependesse dele os índios não teriam um centímetro de terra.

—Nem um milímetro —corrigiu. Acrescentou que o subsolo das terras indígenas é riquíssimo e elas foram demarcadas por pressão externa. Segundo ele, o risco é esse território ficar independente do Brasil, e sustentou que o país vai perder toda a calha norte, porque ela é vital para o mundo. Revela mais um desconhecimento. As terras indígenas são da União. Bolsonaro disse que manterá as reservas, mas os índios serão “incorporados” à sociedade e ao Exército:

— Eu já apresentei uma proposta para alguns generais, vamos fazer com que alguns índios partam para a estabilidade.

Foi essa mesma ideia que levou tantos índios à morte, como relata o escritor Rubens Valente em “Os fuzis e as flechas”.

Bolsonaro virou motivo de piada em Portugal ao dizer ao Roda Viva, da TV Cultura, que os portugueses não pisaram na África, já que os negros teriam sido escravizados por eles mesmos. Do alto dos cinco séculos de colonialismo no continente, Portugal sabe o que fez.

A dúvida é: como dois militares, um tendo feito a Aman, outro tendo chegado a general, conseguiram atravessar a vida sabendo tão pouco do país e da sua história. Só o preconceito, profundo e arraigado, explica essa visão tosca do mundo e do Brasil.

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