terça-feira, 30 de outubro de 2018

Opinião do dia: Fernando Gabeira

O novo governo tem uma agenda brava, e só me resta usar esses meses de transição para estudar melhor e criticá-la com fundamento.

Outro campo de estudo se abre. A frase de Mano Brown — é preciso encontrar o povo — foi endereçada ao PT. Mas não vale também para o sistema partidário, a academia, a mídia, os especialistas? Como reconciliá-los com o homem comum?

As manifestações de 2013 colocaram na rua multidões com uma aspiração difusa de melhores serviços. As de 2015 afunilaram na denúncia da corrupção, impulsionaram a queda de Dilma.

Uma esquerda, sem élan para se reinventar ou base teórica para vislumbrar o horizonte, tornou-se uma presa fácil no debate de ideias.

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Fernando Gabeira, jornalista, ‘Uma virada à direita’, O Globo, 29/10/2018.

Eliane Cantanhêde: O novo Bolsonaro

- O Estado de S.Paulo

Passada a eleição, Bolsonaro mostra que sabe ouvir e sabe recuar. E na economia?

Já nos primeiros momentos e dias o presidente eleito, Jair Bolsonaro, dá indicações sobre o seu governo bem mais claras do que durante a longa campanha eleitoral. Ele mudou o tom, faz apelos à união dos brasileiros, deixa vazar nomes do futuro Ministério e decide que suas primeiras viagens internacionais serão aos Estados Unidos, ao Chile e a Israel. Isso diz tudo sobre o eixo da política externa.

Para reforçar a descompressão política, o petista Fernando Haddad, que não tinha telefonado para Bolsonaro no domingo, enviou-lhe ontem uma mensagem de paz pelas redes sociais. Num tom coloquial, mas respeitoso, Haddad disse que o Brasil merece “o melhor” e desejou sorte ao futuro presidente. Seco, mas sem belicosidade, Bolsonaro enfatizou “o melhor”.

Essa troca de mensagens, se foge à tradição pós-eleições, sobretudo eleições presidenciais, pelo menos sinaliza aos eleitores e à militância do PT e de Bolsonaro que o pior da guerra passou e é hora de uma trégua para respirar, recuperar forças e reduzir o nível de estresse no País.

Durante a campanha Bolsonaro foi alvo de duríssimas reportagens das publicações mais importantes do mundo, inclusive, ou principalmente, dos grandes veículos liberais, mas bastou ser eleito para atrair telefonemas, mensagens e votos de sucesso dos maiores líderes mundiais, a começar do americano Donald Trump, de quem o futuro presidente brasileiro é um admirador declarado.

* Aloysio Nunes Ferreira: A reconstrução do Mercosul

- O Estado de S.Paulo

Legado do governo do presidente Temer reclama continuidade, para o bem do Brasil

Há um debate na sociedade brasileira em torno da relevância do Mercado Comum do Sul (Mercosul). De fato, há pouco mais de dois anos o panorama era desolador. A letargia do bloco, evidente. Os propósitos que levaram à sua criação soavam como uma vaga lembrança, ocupados que estavam Estados-membros em utilizar o bloco para ecoar preferências ideológicas, sem conexão com os reais interesses de nossas sociedades.

Uma das maiores conquistas do governo Temer na área externa é ter colaborado para a reconstrução do Mercosul. Ao lado da Argentina, do Paraguai e do Uruguai, o Brasil trabalhou com afinco para recuperar a vocação original de um regionalismo aberto. Os resultados apareceram rapidamente, tanto no interior do bloco como em sua articulação com o restante do Hemisfério e com a economia mundial.

Um passo importante foi a remoção de quase 90% dos 78 entraves que existiam no comércio intrabloco, como aqueles que dificultavam o acesso ao mercado argentino de carne bovina e banana. Não menos digna de registro foi a assinatura do Protocolo de Contratações Públicas, que abre uma valiosa frente de negócios para as empresas e reduz custos para os governos. Já o Protocolo de Cooperação e Facilitação de Investimentos tornou o ambiente mais receptivo à atração de poupança externa. Adotamos, ainda, um plano de convergência regulatória em áreas como governo digital, governo aberto, segurança cibernética, assinatura eletrônica, direito do consumidor, pequenas e médias empresas e comércio eletrônico.

Ana Carla Abrão*: O elo perdido

- O Estado de S.Paulo

O eleitor se manifestou em favor de renovação e contra a corrupção

A beleza da democracia se assenta no respeito ao resultado soberano das urnas. Por meio delas, milhões de brasileiros se pronunciaram. Boa parte desses pode até não se ver representado no presidente eleito (nem tampouco no derrotado), mas foi ele quem recebeu o mandato da maioria da população para nos guiar pelos próximos 4 anos. Finalizada a contagem dos votos no domingo, agora é hora de enfrentar a realidade e encarar o dia a dia de um país complexo, dividido e marcado econômica e socialmente pela maior recessão de todos os tempos.

Não precisamos aqui requentar os números das nossas mazelas. Esses foram muitas vezes repetidos ao longo do período eleitoral, mas quase nada influenciaram nas escolhas feitas ou rejeitadas. Mas, passada a campanha e conhecido o resultado, vale listar os temas que deverão estar no foco das políticas públicas e das decisões do novo presidente, da sua equipe e dos novos, muitos inexperientes, congressistas.

A lista é longa: déficit fiscal, elevado endividamento do setor público, Estados em colapso fiscal, orçamento engessado, carências profundas na área de infraestrutura, investimento público reduzido, produtividade estagnada, desemprego elevado, baixo crescimento, mercado de crédito caro e retraído, distorções microeconômicas. Além dessas graves questões, há um problema ainda maior: uma enorme dívida com a educação básica de qualidade, com a saúde e com a segurança públicas que, de forma mais direta, sacrificam as atuais e as próximas gerações de brasileiros.

Merval Pereira: Novos tempos

- O Globo

Bolsonaro terá que entender que é presidente de todos, e adequar seus pontos de vista a uma realidade diferente

Bolsonaro ganhou com mais de 10 milhões de votos de diferença, a vantagem é grande, mas foi eleito com um índice recorde de rejeição, e não teve a maioria dos votos totais. Nem os votos de Bolsonaro são todos dele, nem os votos de Haddad são do PT.

Nessa eleição tão polarizada em projetos antagônicos, muita gente votou em Bolsonaro contra o PT, e outros tantos votaram em Haddad contra Bolsonaro. Os dois precisam colocar os pés no chão. Nas eleições anteriores, a disputa havia sido muito mais sobre projetos de país semelhantes entre PT e PSDB, de cunho esquerdista, muito baseados na social-democracia.

Mesmo que o PT tenha tentado jogar o PSDB para a direita do espectro político, os tucanos tinham um DNA de esquerda, que foram perdendo pouco a pouco, e só agora caminham para a direita devido à vitória de João Doria em São Paulo.

Esse tsunami que carregou boa parte da velha política e seus hábitos, revelados na Operação Lava-Jato, vai ter consequências. O povo já há muito demonstrava que não gostou do que estava vendo, depois que caiu a máscara de políticos tradicionais.

Esse sentimento foi demonstrado em diversas ocasiões, o establishment não entendeu, ou fingiu que não entendeu, e foi apanhado de surpresa pelo levante através do voto. O PSDB quase certamente deverá sofrer uma cisão que pode vir a ser o embrião de um novo partido, que reunirá outros políticos deslocados em seus partidos pela adesão em massa ao novo governo de direita.

José Casado: O valor das promessas

- O Globo

É politicamente perigoso supor que 57,7 milhões de brasileiros elegeram Jair Bolsonaro sem ter a mais vaga ideia do que ele vai fazer no Palácio do Planalto, a partir de 1º de janeiro. Sua vitória em todo o Sul, Sudeste, Centro-Oeste e Norte (exceto Tocantins e Pará) não foi acaso.

Goste-se ou não, mais da metade do eleitorado deu-lhe o crédito de confiança que era reivindicado pelos adversários. E, dizia Abraham Lincoln, ninguém é suficientemente competente para governar outras pessoas sem o seu consentimento.

O problema de Bolsonaro, agora, é cumprir as promessas. Quase todas, sim, podem ser qualificadas como confusas, inconsistentes, equivocadas, entre outros adjetivos. Uma exceção está no compromisso público assumido no sábado, 20 de outubro: “O que eu pretendo é fazer uma excelente reforma política para acabar com instituto da reeleição que, no caso, começa comigo, se eu for eleito.”

Não conseguiria ser mais límpido. É, portanto, legítima a expectativa de que Bolsonaro apresente ao novo Congresso, em fevereiro, um projeto de renúncia à reeleição, limitando-se aos 1.460 dias do mandato.

Faltam razões objetivas para não se acreditar ao menos nesse compromisso de um candidato que, há 72 horas, obteve maioria de votos numa dimensão só comparável ao mapa eleitoral de Lula em 2002.

Outras promessas independem da caneta presidencial, como a de enxugar “em 15% ou 20%” o número de integrantes do Legislativo.

Carlos Pereira: A democracia brasileira corre riscos com Bolsonaro?

- O Globo

O Brasil tem sido capaz de eleger governos de forma livre, competitiva e sem fraudes. Partidos perdem eleições e se alternam no poder. As eleições ocorrem com alto grau de incerteza sobre quem será o vencedor. Perdedores se subordinam ao resultado final, e o jogo se repete de forma estável.

As democracias eleitorais possuem salvaguardas institucionais robustas capazes de proteger direitos individuais dos cidadãos? Seriam aptas a restringir potenciais comportamentos oportunistas de governantes que, uma vez eleitos, subvertam as regras do jogo e coloquem em risco a própria democracia?

Não tem sido incomum presidentes fazerem uso exagerado de poderes unilaterais. Usam mecanismos plebiscitários para subverter regras constitucionais e se perpetuar no poder. Exemplos recentes como os de Turquia, Polônia, Filipinas, Hungria, Venezuela, Peru, El Salvador têm levado estudiosos a identificar uma onda de recessão da democracia.

Alguns alertam que, nos dias atuais, democracias não morreriam via golpes, mas via deterioração gradativa das instituições. O novo mecanismo de quebra seria lento, através da eleição de políticos que distorcem de forma insidiosa o sistema representativo.

Bernardo Mello Franco: Os sinais trocados do presidente eleito

- O Globo

Nas primeiras entrevistas após a vitória, Bolsonaro prometeu moderação e respeito à democracia. Ao mesmo tempo, reforçou ameaças à oposição e à imprensa

Jair Bolsonaro deu sinais trocados no primeiro dia como presidente eleito. Em entrevistas a quatro emissoras de TV, ele repetiu promessas de moderação e respeito às leis e à democracia. Ao mesmo tempo, renovou ameaças a opositores e a jornais que o criticarem no exercício do poder.

No Jornal Nacional, o capitão se disse “totalmente favorável à liberdade de imprensa”. Pouco depois, ameaçou usar verbas públicas para punir veículos. A intenção é sufocar financeiramente quem publicar reportagens que o desagradem.

Ele fez ataques à “Folha de S.Paulo”, que revelou a existência de uma funcionária fantasma em seu gabinete. Não explicou, porém, por que demitiu a assessora. Ela foi flagrada vendendo açaí em Angra dos Reis durante o horário de expediente.

Míriam Leitão: Como acabar com o vermelho

- O Globo

Déficit este ano deve ser R$ 40 bilhões menor, ainda assim, não será fácil para o próximo governo acabar com o vermelho nas contas públicas

O governo Jair Bolsonaro vai assumir tendo que enfrentar um vermelho forte nas contas públicas, o ajuste que precisa ser feito é de quatro pontos do PIB ou R $300 bilhões. O espaço para corte de gastos existe, mas é pequeno. Haverá uma boa notícia, de certa forma, a atual administração deve terminar o ano comum déficit de R $120 bilhões, que é R $40 bilhões menor do que está previsto no Orçamento. Se a nova equipe quiser dar um sinal bom e realista poderias e comprometerem levar para R $100 bilhões. Mas o programa prometeu acabar como vermelho em um ano. Isso é mais difícil.

A análise detalhada das armas para vencer o vermelho, que se espalhou nas contas públicas a partir de 2014, mostra um caminho penoso. Nada mudará de cor apenas porque o governo será outro.

O economista Paulo Guedes falou durante a campanha que havia mais dinheiro do que se imagina em alguns lugares e deu exemplos.

Um deles é a privatização, mas agora as empresas que poderiam dar bons ganhos saíram da lista. O Orçamento do ano que vem prevê R$ 12 bilhões de receita com a venda das ações da Eletrobras, mas até isso o presidente eleito Jair Bolsonaro já disse que não fará. Bolsonaro fará o oposto do que quer: aumentará o vermelho, que já é bem tinto. Assim, se não vender a estatal, terá que cortar em outras despesas bem no começo do ano.

Luiz Carlos Azedo: Depois da ressaca

- Correio Braziliense

“Enquanto não forem divulgados a nova equipe econômica e os planos do governo, haverá inquietação no mercado. Há duas incógnitas: o corte de gastos e a reforma da Previdência”

“Presidente Jair Bolsonaro. Desejo-lhe sucesso. Nosso país merece o melhor. Escrevo essa mensagem, hoje, de coração leve, com sinceridade, para que ela estimule o melhor de todos nós. Boa sorte!”, disparou no Twitter o candidato do PT, Fernando Haddad, ontem, reconhecendo a vitória do adversário e cumprimentando o novo presidente eleito, o que não havia feito no domingo. Também pelo Twitter, lacônico, respondeu Bolsonaro: “Senhor Fernando Haddad, obrigado pelas palavras! Realmente o Brasil merece o melhor”. Que ninguém espere uma dança de acasalamento, mas é um bom começo para o país voltar à calma depois da ressaca eleitoral.

Ressaca mesmo, porque o dólar voltou a subir ontem. A moeda havia caído abaixo de R$ 3,60, mas encerrou o dia em alta de 1,51%, vendida a R$ 3,7068. O dólar turismo encerrou a R$ 3,86, sem a cobrança de IOF. Analistas de mercado fazem duas leituras: uma minimiza o fato, atribuindo a queda aos investidores que aproveitaram os preços atrativos para irem às compras; outros, veem na alta do dólar um sinal de que os investidores não estão com confiança nos rumos da economia, porque Bolsonaro emite sinais contraditórios sobre o poder de decisão de Paulo Guedes, futuro ministro da Fazenda, sobre a política econômica.

Apelidado de Posto Ipiranga pelo próprio presidente eleito, Guedes é um economista da escola de Chicago, com propostas ultraliberais. Acontece que o homem forte na equipe de transição é o deputado Onyx Lorenzoni, uma espécie de “tertius”, em razão dos choques que estariam ocorrendo entre o grupo de militares liderado pelo general Augusto Heleno, futuro ministro da Defesa, e a equipe de economistas de Guedes.

Enquanto não forem divulgados a nova equipe econômica e os planos do governo, haverá inquietação no mercado. Há duas incógnitas em relação à política econômica: o corte de gastos e a reforma da Previdência. Bolsonaro falou em reduzir para 10 os ministérios, fundindo ou extinguindo os existentes, mas já desistiu de acabar com os ministérios de Meio Ambiente, que seria anexado à Agricultura, e da Indústria e Comércio, que seria absorvido pela Fazenda. Recuou no decorrer do segundo turno, em razão de compromissos assumidos com o agronegócio e a indústria. O lobby desses setores é poderoso, são aliados de primeira hora do presidente eleito.

Hélio Schwartsman: Explorando as ambiguidades

- Folha de S. Paulo

Declarações da campanha de Bolsonaro apresentam característica da retórica populista

Jair Bolsonaro conseguiu a façanha de ser eleito presidente sem ter dito o que pretende fazer depois de 1º de janeiro. Ou melhor, sua campanha soltou tantas e tão contraditórias declarações que qualquer proposta que o governo venha a apresentar será compatível com alguma das sinalizações emitidas.

Podemos tanto esperar uma reforma da Previdência vigorosa, quanto uma versão ultra-aguada daquela que foi proposta na gestão Temer. Para os que gostam de marcar “nenhuma das anteriores”, outra possibilidade é a mudança do regime de repartição para um de capitalização, que a maioria dos técnicos considera pouco viável.

Também não sabemos se veremos um programa de privatizações tão ousado que inclua praias e parques nacionais —seria a única forma de chegar ao R$ 1 trilhão desejado por Paulo Guedes—, ou um tão tímido que deixe de fora estatais “estratégicas” como Petrobras, BB, CEF e Eletrobras, que são as que valem dinheiro grosso. Em algum momento, tudo isso foi vocalizado ou ao menos insinuado por algum membro do núcleo duro bolsonariano.

Bruno Boghossian: O PT e o bonde de 2018

- Folha de S. Paulo

PT e esquerda saem defasados do ciclo que elegeu Bolsonaro

O PT e a esquerda saíram defasados do ciclo político que elegeu Jair Bolsonaro. O movimento de oposição ao novo governo deve preservar a relevância dos partidos derrotados, mas seu futuro dependerá de uma correção de rumos.

As principais marcas da eleição deste ano foram a renovação e a repulsa à política tradicional. Os petistas apostaram no caminho inverso: tentaram reciclar o governo Lula e formaram uma tropa composta especialmente por veteranos.

No PT, a atualização de quadros no Congresso ficou bem abaixo da média. Dos 56 deputados eleitos pela sigla, só quatro podem ser considerados novidades. Quarenta já estavam na Câmara, oito são deputados estaduais e outros quatro exerceram cargos relevantes nos últimos anos.

Embora o partido seja um dos únicos com uma vida partidária que estimule o surgimento de novos nomes, os petistas parecem ter perdido o bonde de 2018. Fernando Haddad, derrotado na corrida presidencial, desponta como principal aposta para recuperar o tempo perdido.

Joel Pinheiro da Fonseca: A prioridade do novo governo

- Folha de S. Paulo

Reforma da Previdência é peça essencial e inescapável do ajuste fiscal

Bolsonaro é o próximo presidente e dele dependerão decisões cruciais para o futuro do Brasil. Dado que continuamos a viver todos no mesmo país e que a situação é grave, um bom governo Bolsonaro interessa a todos nós.

Em meio à troca de acusações e xingamentos que caracterizou a campanha, pouco ou nada se falou do abismo para o qual o Brasil se dirige se nada for feito para ajustar as contas do Estado.

Ainda não estamos quebrados, mas o aumento explosivo de gastos exigirá um esforço concentrado de ajuste fiscal. Os impostos já são altíssimos e aumentá-los apenas mataria a recuperação. O controle terá que se dar nos gastos.

A reforma da Previdência, além de justa para corrigir injustiças de nosso sistema (os privilégios do funcionalismo público) e a mudança demográfica, é uma peça essencial e inescapável desse ajuste.

Para a sorte do novo presidente, Temer e sua equipe econômica deixaram uma proposta de reforma pronta para ser votada no Congresso. Ela não é perfeita; já incorpora diversas acomodações —frutos da discussão com parlamentares— que atenuaram seus efeitos.

Reformas futuras serão necessárias, mas esta é o bastante para tirar o rombo fiscal do futuro próximo, e permitir que o governo enderece outras pautas importantes.

Afinal, ajuste fiscal é meio, e não fim em si mesmo. O Estado brasileiro precisa ter as contas em ordem para garantir a estabilidade da economia e realizar seus programas.

Fernando Exman: É chegada a hora do choque de realidade

- Valor Econômico

Cabe ao vencedor conduzir processo de pacificação

Gestos ainda incipientes para um possível armistício foram feitos ontem pelos dois protagonistas do segundo turno da eleição presidencial. Não garantem a esperada pacificação do país, mas ao menos interromperam a escalada beligerante vista até a véspera do dia da votação.

Se Fernando Haddad conseguir firmar-se como nova liderança petista, seu gesto de parabenizar Jair Bolsonaro pelas redes sociais pode servir de exemplo e ajudar a demover aqueles que parecem estar mais preocupados com a retomada da campanha "Lula Livre" do que com os rumos da democracia. Perdedores precisam saber perder. Mas é tão ou mais importante que os vencedores saibam ganhar, o que aumenta a responsabilidade do presidente eleito.

Em outras palavras, isso significa garantir o pleno funcionamento das instituições que servem de contrapeso ao sobrepesado Poder Executivo, a segurança de todos os brasileiros, a livre atuação política dos derrotados e o respeito a todos os segmentos da população.

Por ora, no entanto, ainda predomina entre petistas e seus aliados a determinação de "resistir" contra tudo o que vier do Palácio do Planalto - postura que tende a alimentar os radicais do campo oposto. Mesmo assim, as sessões de terapia em grupo já começaram.

Cid Gomes, senador eleito por Ceará e irmão de um candidato que obteve cobiçados votos no primeiro turno, lembrou aos presentes em um comício que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva se encontra preso e o destino de Haddad era a derrota. O poeta e cantor Mano Brown colocou o dedo nas feridas dos militantes esperançosos com uma improvável virada e afirmou que o partido se distanciara das periferias. Ambos ouviram impropérios de um ou outro militante presente, demonstrando que esse processo de depuração será doloroso.

Ricardo Noblat: O capitão e seu aprendizado

- Blog do Noblat | Veja

A Constituição e a Bíblia

Louvado seja o esforço do presidente eleito Jair Bolsonaro em reescrever o que possa ter dito de pior, de mais chocante, de mais bárbaro ao longo dos últimos anos – e, especialmente, nos meses mais recentes. Tudo para que o desafio de governar um país dividido se torne menos incerto do que será para ele. Compreensível.

Foi assim com o discurso que lhe deram para ler no domingo à noite tão logo acabou a apuração dos votos. E novamente foi assim na série de entrevistas que concedeu ontem a diversas emissoras de televisão. Na Record, ele pareceu em casa. Disse o que quis sem se preocupar em ouvir o que não desejaria. Esteve menos à vontade na Globo.

Notável o esforço de William Bonner e de Renata Vasconcelos no Jornal Nacional em tentar “normalizar” Bolsonaro. Trataram-no com o devido respeito a um presidente da República. E deram-lhe todas as chances para retificar o que quisesse e sair-se da melhor maneira possível. Bolsonaro desperdiçou algumas. Ou não quis aproveitá-las.

Insistiu com a fake news do kit gay, por exemplo, e ameaçou cortar as verbas de publicidade do governo destinadas ao jornal Folha de S. Paulo. O kit gay foi a sacada que teve e que mais o beneficiou durante a campanha. A sacada não foi dele. Bolsonaro ouviu falar a respeito há mais de um ano em uma escola de Copacabana. Gostou.

Desarmando os espíritos: Editorial | O Estado de S. Paulo

Tanto o presidente eleito Jair Bolsonaro como o candidato derrotado Fernando Haddad, tão logo o resultado da eleição presidencial foi conhecido, trataram de acalmar os ânimos da sociedade, bastante exaltados ao longo da campanha eleitoral, especialmente na reta final. Dado o nível da disputa, muito abaixo do que seria considerado civilizado, não surpreende que os dois contendores tenham sido incapazes de respeitar a etiqueta prevista para a ocasião - isto é, nem o candidato derrotado telefonou para o vencedor nem o vencedor mencionou o nome do derrotado ao fazer seu discurso da vitória. No entanto, Bolsonaro e Haddad, em seus discursos, reduziram em vários graus o tom belicoso da campanha eleitoral e conclamaram respeito às regras do jogo e prevalência do interesse nacional.

É evidente que há uma distância muito grande entre o discurso e a prática, mas, no momento, esses pronunciamentos servem de baliza para o comportamento da militância de parte a parte e também para enquadrar as expectativas do País, ajudando a desanuviar um pouco o clima de apocalipse que se instaurou há algumas semanas.

Bolsonaro fez dois discursos. O primeiro foi de improviso, feito para as redes sociais, ambiente no qual o eleito fez praticamente toda a sua campanha. Ali, pareceu dirigir-se a seus aguerridos simpatizantes, ao criticar a “grande mídia” e ao dizer que o País não podia mais “continuar flertando com o socialismo, com o comunismo e com o populismo” - numa referência ao PT, seu alvo predileto durante a campanha. Nem parecia que a campanha havia se encerrado.

Primeiro discurso formal define os alvos corretos: Editorial | O Globo

Pronunciamento lido por Bolsonaro estabelece pontos de um programa de reformas

Há candidatos que, à medida que chega a horada votação, ficam mais sensíveis acríticas e procuram corrigir rumos. Aconteceu com Jair Bolsonaro (PSL), eleito na noite de domingo o 38º presidente brasileiro, marcando uma mudança de eixo na política do país — afinal, saiu derrotado o PT, legenda à esquerda, que disputara os sete pleitos presidenciais anteriores, dos quais ganhou quatro.

Agora, seu candidato, Fernando Haddad, ficou mais de 10 milhões de votos atrás de Bolsonaro. Uma novidade nestes 30 anos de institucionalidade democrática, por ter sido eleito um candidato assumidamente de direita. O mapa ideológico do Brasil passa por um ajuste, para ficar mais realista.

Consolidado líder nas pesquisas ainda no primeiro turno, Bolsonaro recuou em afirmações extremadas de cunho homofóbico, desculpou-se por descabido apoio à tortura e a torturadores e ainda se curvou à Constituição, penitenciando-se por já ter defendido a ditadura militar. Ex-capitão, deputado federal por 28 anos, Jair Bolsonaro moldou um figurino de ultradireita e fez uma campanha com várias omissões em assuntos chave econômicos, por exemplo.

Mas a escolha de Paulo Guedes para principal assessor na área sinalizara a opção pelo caminho do liberalismo, devido à formação do economista. Confirmada a vitória, Bolsonaro fez um discurso nas redes sociais conduzido mais pela emoção do momento. Depois, porém, leu um pronunciamento em que alinhou uma agenda acertada neste campo—sem deixar de repetir a reverência à Constituição, o que nunca será demais.

Pequenez na derrota: Editorial | Folha de S. Paulo

Haddad esteve longe de mostrar a capacidade de liderar uma oxigenação do discurso do PT

Treze anos no poder não fizeram do PT uma oposição mais madura. Desde a deposição de Dilma Rousseff, em 2016, o partido retrocedeu ao esquerdismo panfletário, acrescido de fantasias persecutórias, em busca de preservar seus nichos mais fiéis —e à custa de intensificar sua rejeição no restante majoritário do eleitorado nacional.

Derrotado na disputa presidencial deste domingo (28), Fernando Haddad esteve longe de mostrar a capacidade de liderar uma oxigenação do discurso e das práticas da sigla. Dificilmente poderia ser promissor, nesse contexto, o pronunciamento que fez quando já se conhecia o veredito das urnas.

Voltaram, previsivelmente, os queixumes contra o impeachment de Dilma e a “prisão injusta” do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, condenado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro.

A “tarefa enorme” que disse ver pela frente seria “defender o pensamento e as liberdades desses 45 milhões de brasileiros [foram 47 milhões ao final da apuração]” que nele votaram. A despeito do adjetivo empregado, a missão não abarca a maioria que fez outra escolha.

Haddad também não seguiu o rito democrático de cumprimentar de pronto o presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL), pela vitória. Só veio a fazê-lo nesta segunda-feira (29), por meio de uma rede social. Menos mal, mas ainda assim sintomático da propensão petista a negar legitimidade aos adversários.

O PT recebeu um respeitável mandato oposicionista no pleito, no qual elegeu 56 deputados federais e quatro governadores. Ainda mais eloquente, entretanto, foi a ampla e aguda rejeição ao partido —maior entre os votantes mais ricos e escolarizados dos grandes centros urbanos, mas elevada em quase todos os estratos e regiões.

Qual PSDB?: Editorial | Folha de S. Paulo

Partido mantém sua longa hegemonia em São Paulo, mas corre o risco de ver desfeito um legado

Ex-prefeito de São Paulo, João Doria (PSDB) elegeu-se governador com 51,75% dos votos válidos. Conquistou quase 11 milhões de sufrágios e derrotou Márcio França (PSB) no segundo turno do pleito.

Ao triunfar no estado mais populoso do país, Doria garantiu para o partido, juntamente com dois correligionários vitoriosos (em Mato Grosso do Sul e no Rio Grande do Sul), o governo de quase 60 milhões de brasileiros.

Na sequência aparece o PT, com quatro eleitos no Nordeste (Bahia, Ceará, Piauí e Rio Grande do Norte), mas com apenas metade do número de governados.

Notável também se revela o predomínio tucano em território paulista. Com Doria, esta é a sétima eleição subsequente vencida pelo PSDB. Mas qual PSDB?

Soa inadequado qualificar de social-democrata um candidato que obteve a vitória após engatar sua imagem, em piruetas de oportunismo, à de um populista de direita —sem nem mesmo ter obtido o apoio resoluto do presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL).

Em realidade, a triunfo de “Bolsodoria” representa a derrota do PSDB histórico. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, um dos fundadores egressos do chamado MDB autêntico, não foi o único a ser abatido nas refregas do pleito.

Tornaram-se personagens secundários também Aécio Neves e José Serra, acossados por problemas judiciais na esteira da Lava Jato.

Aécio obteve vaga de deputado; Serra tem mais quatro anos no Senado. Deixaram, porém, de serem vozes relevantes na arena política.

O ex-governador Geraldo Alckmin, de seu lado, sai como grande perdedor: não só recebeu votação pífia na disputa presidencial como ainda viu o pupilo voltar-se contra ele e mandar para casa seu candidato preferido, França.

Alckmin, FHC e Serra abstiveram-se de cumprimentar Doria de pronto pela conquista do Palácio dos Bandeirantes, mais um sintoma da lenta agonia tucana. O eleito, não sem alguma ironia, afirmou não ver problema nisso: “Eu tenho grandeza, tenho altivez”.

Bolsonaro deve ter apoio no Congresso a seus projetos: Editorial | Valor Econômico

A onda de insatisfações que levou Jair Bolsonaro (PSL) a vencer a disputa pela Presidência embaralhou também as cartas no Congresso e nos Estados, permitindo, pelo menos no primeiro momento, que o presidente eleito possa iniciar seu governo com uma base no Congresso disposta a aprovar seus projetos. O apoio de governadores e parlamentares, como sempre, cobrará um preço que não se sabe se o presidente eleito estará ou não disposto a pagar.

A renovação conservadora do Congresso trouxe ao PSL um bloco de 52 deputados, número que se estima que poderá crescer para até 70, ao atrair a maior parte de 32 eleitos por partidos que não conseguiram ultrapassar a cláusula de barreira. Os aliados do PSL foram sugados pela força do prestígio do capitão reformado e elegeram menos parlamentares. O PSD, de Kassab, perdeu 2 deputados (34) e o PTB, 6 (10). As contas variam, mas legendas que apoiam para valer Bolsonaro somam 108 deputados.

Na oposição parlamentar, a avalanche antipetista fez com que o PT, ainda forte, não detenha mais a maioria da bancada da esquerda. O PT teve perda de 6 cadeiras (56), mas outras legendas aumentaram sua representação, com o salto de 6 cadeiras do PSB (32), 8 do PDT (28) e 4 do Psol (10). Socialistas e pedetistas já são em maior número que deputados petistas. No total, não se alinharão em princípio ao governo 136 deputados, com possíveis acréscimos de 8 deputados do PPS, 8 do Pros, que apoiaram o candidato petista na eleição, 7 do Avante e 4 do PV.

Sobra então a geleia geral do Centrão, que determinará os rumos das votações e cujo apoio é determinante para a viabilidade das agendas de governo. Bolsonaro contribuiu para emagrecer também os principais partidos desse aglomerado. O PP, maior deles, encolheu 12 cadeiras (37) e o MDB, sempre disposto a apoiar qualquer governo, perdeu 16 (34), enquanto que o PR está com 7 deputados a menos agora. O PRB, apoiado pela Igreja Universal, avançou 9 cadeiras (30). A esse grupo com 134 deputados podem aderir também os 29 deputados do DEM, que perdeu 14 deputados de seus 43. O interesse em manter a presidência da Câmara em suas mãos levou Rodrigo Maia (RJ) a aproximar-se de Bolsonaro, que deverá ganhar para sua agenda de mudanças do Estatuto do Desarmamento trânsito desimpedido para tramitação na Casa.

Eleito volta a fazer ameaças a veículos de imprensa

Bolsonaro diz que publicação ‘não é digna’ e fala em cortar verbas; em nota, ‘Folha’ diz que ele ‘não entendeu o papel’ do jornalismo

- O Globo

Depois de dizer ontem, em entrevista ao “Jornal Nacional”, que era “totalmente favorável à liberdade de imprensa”, o presidente eleito, Jair Bolsonaro, acusou o jornal “Folha de S.Paulo” de propagar notícias falsas a respeito dele e disse que irá cortar as verbas de propaganda oficial de veículos jornalísticos que agirem, na avaliação dele, “mentindo descaradamente”.

Bolsonaro citou uma reportagem veiculada pelo jornal no início do ano, revelando que uma funcionária lotada no gabinete dele vendia açaí em um pequeno comércio de Angra dos Reis, na mesma rua onde fica sua casa de veraneio. Na ocasião, ele alegou que a assistente estava de férias. Ontem, Bolsonaro desqualificou as informações da reportagem dizendo que o jornal havia mentido no episódio.

Em nota, a “Folha de S. Paulo” afirmou que “o presidente eleito se engana”. “A reportagem da Folha mostrou que uma funcionária sua na Câmara dos Deputados trabalhava em horário de expediente vendendo açaí em Angra dos Reis (RJ) em mais de uma ocasião e em meses diferentes. Tanto que ela acabou exonerada por ele. Jair Bolsonaro, mesmo após eleito presidente, não deixa de ameaçar a Folha. Ainda não entendeu o papel da imprensa nem a Constituição que promete obedecer”, destacou o veículo.

Na entrevista ao JN, Bolsonaro foi questionado se seria do seu desejo que o jornal acabasse. Ele então citou as verbas do governo.

— Não posso considerar essa imprensa digna. Não quero que ela acabe, mas, no que depender de mim, da propaganda oficial do governo, a imprensa que se comportar dessa maneira, mentindo descaradamente, não terá apoio (financeiro) do governo federal.

Ele também criticou reportagem recente da “Folha de S. Paulo” sobre empresas que bancaram disparos de mensagens falsas contra o PT. Mais cedo, em entrevista à TV Record, o presidente eleito afirmou que não vai atuar para impor limites à liberdade de expressão, deixando a tarefa aos cidadãos.

Estratégia de Bolsonaro põe Estado laico em risco, diz pesquisadora

Christina Vital afirma que candidatos revelam e ocultam confessionalização da política

Thais Bilenky | Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - A estratégia de candidatos que dialogam com o eleitorado religioso como o presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) assumiu textura mais escorregadiça, o que torna a defesa do Estado laico um desafio crescente.

É a constatação de Christina Vital, doutora em ciências sociais e docente na Universidade Federal Fluminense, segundo quem a agenda política nunca esteve tão permeada por valores religiosos.

“Desde 2010, a gente só viu aumentarem os riscos à laicidade”, afirmou a pesquisadora, em entrevista à Folha.

A estratégia adotada por candidatos, especialmente para o Executivo, que precisam dialogar com público expandido, é o que Vital chama de revelação e ocultação da confessionalização da política.

Consiste em ativar a agenda religiosa para os grupos em que ela é um capital eleitoral e amainá-la ao tratar com grupos de interesse. Nestes casos, pautas setorizadas são abordadas, em especial a da segurança pública.

Bolsonaro evidencia o jogo. Ele chegou a arriscar a estratégia puramente confessional inicialmente.

Banhou-se no rio Jordão com a bênção do Pastor Everaldo (PSC), em 2016, um gesto explícito ao eleitorado evangélico.

Não se converteu, contudo, nem religiosa nem politicamente. Define-se católico, mas sensível ao eleitorado que representa 30% do Brasil. É o que Vital chama de ADE, amigo de evangélicos. Ajuda-o o casamento com uma fiel da Igreja Batista.

Sem a identidade evangélica fincada, manteve prestígio entre o público avesso ao fervor de uma fé em particular. E para isso, como é notório, usa do passado militar para alavancar sua associação com a pauta da segurança.

Eleição de Bolsonaro é teste de fogo para nossa democracia, diz historiador

Para José Murilo de Carvalho, muita coisa ruim pode ser feita dentro dos limites da Constituição

Mario Cesar Carvalho | Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - É um teste de fogo para a democracia brasileira a eleição do deputado federal e capitão reformado Jair Bolsonaro (PSL) para a Presidência da República.

A opinião é de José Murilo de Carvalho, 79, um dos mais importantes historiadores do país, autor de um clássico sobre a nascente República ("Os Bestializados") e de uma obra que se tornou referência no estudo da relação dos militares com a política ("Forças Armadas e Política no Brasil").

Carvalho acha que o maior risco não é um golpe ou autogolpe, para o qual, segundo ele, faltaria o apoio das Forças Armadas. "O problema é que a Constituição de 1988 é muito generosa em relação à interferência militar na política", afirmou à Folha.

O artigo 142 da Constituição, segundo ele, permite que militares sejam chamados para garantir ameaças aos poderes constitucionais e à lei e à ordem. "Muita coisa ruim pode ser feita dentro desses limites sem caracterizar golpe", diz.

Carvalho, professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro e membro da Academia Brasileira de Letras desde 2004, prevê anos difíceis pela frente. "Haverá tentativas de introduzir, por lei ou decreto, medidas que representem retrocesso democrático. A principal tarefa da oposição será combater sem tréguas essas tentativas".

Se as instituições chegarem intactas em 2022, "já será um ganho", na opinião dele.

O historiador, que também é cientista político, diz que só por uma "enorme burrice" Bolsonaro manteria o discurso ofensivo e preconceituoso que caracterizou seus mandatos como parlamentar e sua campanha à Presidência. "Imagino que haverá pessoas a seu redor, inclusive generais, que o farão mudar de retórica. Caso contrário, ele estaria cavando a própria sepultura política".

• Como explicar a chegada de Jair Bolsonaro, um deputado do baixo clero, à Presidência da República?

Precisaria de um tratado para responder a essa pergunta. Não tenho nada de diferente do coquetel que tem sido apresentado: falta de confiança nos políticos e na política desde 2013, crise econômica, desgaste do longo governo do PT, Lava Jato, violência, reação a mudanças que afetaram os conceitos e valores tradicionais a respeito de família e gênero.

• A eleição de Jair Bolsonaro é uma ameaça à democracia? Há risco de um golpe?

É um teste de fogo para nossa democracia. A haver golpe seria o que o general Mourão [vice-presidente eleito] chamou de autogolpe, isto é, dado pelo próprio governo, como em 1955 e 1969. Não acredito que vá haver o indispensável apoio militar para isso. O problema é que a Constituição de 1988 é muito generosa em relação à interferência militar na política. O artigo 142 dá às Forças Armadas o papel de garantidoras dos poderes constitucionais e, a pedido de um desses, de garantidoras da lei e da ordem. Muita coisa ruim pode ser feita dentro desses limites sem caracterizar golpe.

Partidos querem fazer oposição longe do PT

Coluna do Estadão

Partidos que farão oposição ao governo Bolsonaro começam a se reunir esta semana para discutir como atuar. Uma preocupação é tentar se diferenciar do PT. Líderes do PSDB dizem que a estratégia será fazer uma oposição pontual, votando os projetos que o partido considerar importantes para o País, diferentemente do “quanto pior, melhor” defendido pelos petistas. Os tucanos querem evitar interpretações de que agem em bloco com o PT. Hoje haverá na Câmara uma reunião entre os líderes do PCdoB, PDT e PSB. O PT não foi convidado.

Escolado. Um tucano graúdo diz que o PSDB vai repetir o que fez na época do governo Collor, quando conseguiu se contrapor aos petistas como oposição, “até porque ninguém saberia fazer diferente”. No “quanto pior, melhor” nada do governo é positivo.

Racha. Se no Congresso o PSDB será oposição, em São Paulo a história é outra. “Vamos fazer o quê? Nos juntar com os derrotados do PT”, justifica o governador eleito João Doria. O grupo do tucano quer impor sua posição com o lema: manda quem tem voto.

SAMBA DA UTOPIA (Jonathan Silva)

Carlos Drummond de Andrade: Acordar, viver

Como acordar sem sofrimento?
Recomeçar sem horror?
O sono transportou-me
àquele reino onde não existe vida
e eu quedo inerte sem paixão.

Como repetir, dia seguinte após dia seguinte,
a fábula inconclusa,
suportar a semelhança das coisas ásperas
de amanhã com as coisas ásperas de hoje?

Como proteger-me das feridas
que rasga em mim o acontecimento,
qualquer acontecimento
que lembra a Terra e sua púrpura
demente?
E mais aquela ferida que me inflijo
a cada hora, algoz
do inocente que não sou?

Ninguém responde, a vida é pétrea.