terça-feira, 30 de outubro de 2018

Ana Carla Abrão*: O elo perdido

- O Estado de S.Paulo

O eleitor se manifestou em favor de renovação e contra a corrupção

A beleza da democracia se assenta no respeito ao resultado soberano das urnas. Por meio delas, milhões de brasileiros se pronunciaram. Boa parte desses pode até não se ver representado no presidente eleito (nem tampouco no derrotado), mas foi ele quem recebeu o mandato da maioria da população para nos guiar pelos próximos 4 anos. Finalizada a contagem dos votos no domingo, agora é hora de enfrentar a realidade e encarar o dia a dia de um país complexo, dividido e marcado econômica e socialmente pela maior recessão de todos os tempos.

Não precisamos aqui requentar os números das nossas mazelas. Esses foram muitas vezes repetidos ao longo do período eleitoral, mas quase nada influenciaram nas escolhas feitas ou rejeitadas. Mas, passada a campanha e conhecido o resultado, vale listar os temas que deverão estar no foco das políticas públicas e das decisões do novo presidente, da sua equipe e dos novos, muitos inexperientes, congressistas.

A lista é longa: déficit fiscal, elevado endividamento do setor público, Estados em colapso fiscal, orçamento engessado, carências profundas na área de infraestrutura, investimento público reduzido, produtividade estagnada, desemprego elevado, baixo crescimento, mercado de crédito caro e retraído, distorções microeconômicas. Além dessas graves questões, há um problema ainda maior: uma enorme dívida com a educação básica de qualidade, com a saúde e com a segurança públicas que, de forma mais direta, sacrificam as atuais e as próximas gerações de brasileiros.

Mas esses dois conjuntos de problemas são faces da mesma moeda. O colapso fiscal e a captura do Estado por grupos de interesses, quer seja pela corrupção, pelo loteamento de cargos e ministérios ou pelo domínio do corporativismo na defesa de seus privilégios, se refletem, invariavelmente, na nossa falência em atender o cidadão. Nossa incapacidade de planejar ações públicas, de formular uma agenda de Estado, de avaliar se os resultados das ações de governo estão chegando ao cidadão, ou se os benefícios estão apenas sendo apropriados por alguns, são a face abstrata da nossa impossibilidade concreta de garantir aos brasileiros o mínimo que se espera do Estado.

E o maior dos desafios do novo governo será justamente o de fazer essa conexão e convencer toda a sociedade e a classe política, que as reformas necessárias são a nossa única chance de resgatar a confiança, a serenidade e o sentimento de cidadania da população.

Uma multidão foi às ruas em 2013 e protestou. Agora em 2018, se manifestou, mais do que escolheu, em favor de renovação e contra a corrupção. Mas o que essa população de fato sente, no seu dia a dia, é o ônibus lotado, são as escolas que não ensinam e os hospitais sem remédios. Boa parte dos cidadãos que foram às urnas no domingo não tem acesso a esgoto tratado, não consegue colocar os filhos pequenos numa creche e fica horas nas filas de oferta de emprego, na esperança de finalmente voltar a ter uma renda estável. Essas pessoas, que representam a grande maioria dos brasileiros, não sabem bem em que optaram ao definir seu voto, mas sabem o que sofrem e o que lhes falta, diariamente. A aprovação das reformas tem, no meio do caminho, a dificuldade das pessoas em associarem o seu sofrimento e a sua insatisfação, além de à corrupção, também a um sistema que direciona recursos públicos aos que menos precisam. A maior parte delas não percebe que a gestão pública, ao não ser capaz de formular políticas de investimento de longo prazo, ao privilegiar o acordo partidário na definição de investimentos em habitação e infraestrutura, ao ceder às pressões por benesses setoriais e ao proteger os privilégios de categorias específicas, está nos tirando a oportunidade de construção de um país melhor para todos.

Esse é o diálogo difícil que precisa ser feito. Esse é o elo perdido que precisa ser resgatado. Sem ele, o novo governo dificilmente conseguirá neutralizar as pressões corporativistas e os movimentos de proteção partidária que já se consolidaram na administração pública brasileira para aprovar as urgentes e necessárias reformas que o Brasil tanto precisa.
------------
*Economista

Nenhum comentário: