- Valor Econômico
Cabe ao vencedor conduzir processo de pacificação
Gestos ainda incipientes para um possível armistício foram feitos ontem pelos dois protagonistas do segundo turno da eleição presidencial. Não garantem a esperada pacificação do país, mas ao menos interromperam a escalada beligerante vista até a véspera do dia da votação.
Se Fernando Haddad conseguir firmar-se como nova liderança petista, seu gesto de parabenizar Jair Bolsonaro pelas redes sociais pode servir de exemplo e ajudar a demover aqueles que parecem estar mais preocupados com a retomada da campanha "Lula Livre" do que com os rumos da democracia. Perdedores precisam saber perder. Mas é tão ou mais importante que os vencedores saibam ganhar, o que aumenta a responsabilidade do presidente eleito.
Em outras palavras, isso significa garantir o pleno funcionamento das instituições que servem de contrapeso ao sobrepesado Poder Executivo, a segurança de todos os brasileiros, a livre atuação política dos derrotados e o respeito a todos os segmentos da população.
Por ora, no entanto, ainda predomina entre petistas e seus aliados a determinação de "resistir" contra tudo o que vier do Palácio do Planalto - postura que tende a alimentar os radicais do campo oposto. Mesmo assim, as sessões de terapia em grupo já começaram.
Cid Gomes, senador eleito por Ceará e irmão de um candidato que obteve cobiçados votos no primeiro turno, lembrou aos presentes em um comício que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva se encontra preso e o destino de Haddad era a derrota. O poeta e cantor Mano Brown colocou o dedo nas feridas dos militantes esperançosos com uma improvável virada e afirmou que o partido se distanciara das periferias. Ambos ouviram impropérios de um ou outro militante presente, demonstrando que esse processo de depuração será doloroso.
Essa não foi a primeira vez que Haddad e sua equipe confrontavam-se com tal visão, uma vez que a mesma crítica foi feita quando ele tentou reeleger-se ao cargo de prefeito de São Paulo e perdeu de forma acachapante no primeiro turno. Também naquela época Haddad foi alvo da onda antipetista que deu empuxo ao impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff e na qual Bolsonaro surfou até conseguir chegar à rampa de acesso do Palácio do Planalto.
O PT já poderia ter feito uma correção de rumo, mas ficará outros quatro anos na oposição. Agora, sem o discurso de que esta condição lhe foi imposta por um golpe.
Por sua vez, Bolsonaro terá, durante o período de transição, a oportunidade de adequar seu discurso. O movimento começou a ser esboçado durante a campanha, em meio a arroubos autoritários e o risco de depois ser acusado de praticar estelionato eleitoral.
Ele mostrou-se, por exemplo, atento à crítica de setores produtivos em relação à sua proposta de acabar com o Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços, tradicional guichê de interlocução do governo com o empresariado. Ou unificar os ministérios da Agricultura e Meio Ambiente.
Outra proposta polêmica que logo entrará em evidência é a transferência da embaixada brasileira em Israel de Tel Aviv para Jerusalém. Promessa feita a parte da comunidade judaica e evangélicos, a ideia pode ter trágicas consequências para a economia, o mercado de trabalho e a política externa brasileira. Países árabes que importam toneladas e mais toneladas de alimentos produzidos no Brasil poderiam retaliar os exportadores nacionais. O Itamaraty, frequentemente apoiado por países árabes e africanos, poderia passar a enfrentar dificuldades para emplacar candidaturas brasileiras a cargos de direção de organismos multilaterais.
O processo de unificação do país dependerá de um presidente da República que saiba modular seu discurso quando necessário e seja assertivo na condenação de todo tipo de ato de violência, os quais dariam razão aos alertas feitos pela campanha de Haddad, além de um Ministério Público e um Poder Judiciário atuantes. Afinal, a obtenção da maioria dos votos válidos garante ao vencedor da eleição um mandato de quatro anos, não um passe para livre atuação.
Bolsonaro é capitão reformado do Exército, oficial de artilharia, mas também professor de educação física. Se a vitória ou subjugação de inimigos são os objetivos naturais de um militar, a boa convivência com adversários é obrigação do desportista. A redução da vantagem que tinha em relação ao seu adversário até poucos dias antes do segundo turno deve ser vista como um alerta de que muitos eleitores podem até ser contra o PT, mas não estiveram dispostos a pagar qualquer preço para impedir a vitória do candidato de Lula.
Lições de Raymundinho
Apesar das demonstrações de otimismo vistas no mercado financeiro, a articulação política do futuro governo ainda gera incertezas. Situação semelhante se via quando Raymundo Costa, um dos mais respeitados repórteres políticos do país e que nos deixou na semana passada, começou a esculpir suas linhas neste espaço.
Era início de 2005, ano em que ocorreu o escândalo do mensalão. Os textos de Raymundo, carinhosamente chamado de Raymundinho por toda a capital federal, retratavam as queixas de líderes governistas sobre a falta de tato de um presidente que se sentia autossuficiente e desdenhava dos parlamentares. Disputas de poder entre as alas política e econômica atrapalhavam a fluidez do governo, a política econômica adotada era questionada internamente e por aliados do governo. Os ministros responsáveis pela articulação com deputados e senadores também eram criticados.
A leitura das primeiras colunas de Raymundinho é recomendável ao presidente eleito. Em Brasília, a história muitas vezes parece se repetir, sobretudo com os presidentes que ignoram - nos sentidos de desconhecer como funciona e também no de desprezar - a prática cotidiana da política como um meio para viabilizar políticas governamentais. Esta coluna, porém, nunca mais será a mesma.
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