O impossível também acontece para levantar o ânimo que se estiola na fossa sem fundo do pessimismo. E a Câmara dos Deputados, correndo atrás do Senado para ultrapassá-lo na disparada, começou – e apenas começou – a faxina para valer no pior Congresso de todos os tempos, varrendo o lixo acumulado da farra das passagens aéreas, a mais vexatória nódoa da coleção de mutretas, em decisão histórica por todas as suas circunstâncias.
Invoco, sem falsa modéstia, a minha coerência como o mais ranheta e insistente crítico do comportamento do Congresso, na degringolada que começa com a mudança da capital para Brasília inacabada, o canteiro de obras no ermo do cerrado, para pavimentar a estrada vitoriosa do risonho e leviano presidente Juscelino Kubitscheck, com os bugalhos arregalados na volta triunfal do JK-65. E que vai a pique com a renúncia do aloprado Jânio Quadros e é soterrada pelos 21 anos da ditadura militar.
Não tenho do que me desculpar nem de estender as mãos ao estalo da palmatória. Ao saudar o inesperado, que deve o empurrão ao instinto da sobrevivência dos líderes e do presidente, não desligo o computador que ainda tem muito o que fazer para acompanhar a limpeza até a última pá de lixo.
Sim, senhores: o escorregadio presidente da Câmara, o galante deputado Michel Temer (PMDB-SP), comandou a reação dos deputados, ignorando os resmungos do baixo clero, que amarga a sua maior derrota em décadas de sucessos nos saques ao cofre da Viúva.
O presidente quase bota tudo a perder quando recuou diante do alarido dos atingidos pelas medidas que, nos dias de recesso, tricotara em silêncio. E é evidente que se a decisão ficasse com o plenário, as mordomias venceriam por larga margem. Na singularidade de uma derrota da maioria que se acovardou e foi acuada pelo acordo das lideranças, a Câmara ficou com o compromisso de honra de levar a limpeza a todo o pacote de privilégios que ainda não foram tocados.
Mas, das passagens aéreas, que foi o jeitinho para vencer as resistências dos deputados a mudar para Brasília, a verba indenizatória de R$ 15 mil mensais para as despesas de fim de semana, aos assessores dos gabinetes individuais e outras miçangas, há muita sujeira a clamar pela vassoura.
E vejam como foi simples e óbvio o corretivo: os líderes partidários, convocados para decidir por suas bancadas, por sábia unanimidade que não deixa brechas, simplesmente aprovaram a restrição do uso das cotas de passagens aéreas ao deputados e ao assessor credenciado, com autorização da Terceira Secretaria. As cotas suplementares dos membros da Mesa Diretora foram extintas.
Mas, numa evidência de como a lógica, o bom senso e a compostura estavam de cabeça para baixo, o burburinho das queixas dos fundos do plenário alegava a dificuldade para o exercício do mandato com a poda das passagens para as esposas que não terão como ir e vir toda semana a Brasília.
Ora, o local de trabalho do parlamentar é o Congresso, na Praça dos Três Poderes, em Brasília. E a semana dos quatro dias úteis, das terças às sextas-feiras, um privilégio absolutamente indefensável. Mas, como observou em sentença irretocável o nobre deputado Silvio Costa (PMN-PE) "uma farra de mais de 40 anos, quando é mudada, não é muita gente que vai ficar satisfeita. É claro que essa decisão dos líderes deixou muita gente irritada". Pois, o calmante para o nervosismo dos irritados está ao alcance da mão: basta o parlamentar mudar-se para Brasília com a família, onde um esplêndido apartamento funcional está à sua espera há quase meio século.
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