Marco Aurélio Nogueira
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO
Dever-se-ia analisar com mais atenção o II Pacto Republicano de Estado por um Sistema de Justiça mais Acessível, Ágil e Efetivo, recentemente assinado pelos representantes dos três Poderes da República brasileira. Os presidentes do Supremo Tribunal Federal, da Câmara dos Deputados e do Senado, ao lado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, num documento de seis páginas, comprometeram-se a empreender esforços para conseguir a aprovação de projetos sobre acesso universal à Justiça, agilidade na prestação jurisdicional e proteção aos direitos humanos fundamentais.
Curiosamente, o assunto não despertou emoção nem entrou na pauta política.
Um pacto é tanto uma suspensão de litígios quanto um compromisso de defesa, algo que duas ou mais partes que não pensam obrigatoriamente do mesmo modo nem têm os mesmos interesses particulares se propõem a fazer em nome de uma meta comum, valiosa para todos e que se encontra ameaçada. Também exige cooperação e implica uma resolução de se manter fiel a uma causa, um princípio ou uma instituição.
O gesto mesmo intriga. Se se faz um pacto republicano, é porque se supõe que a República esteja a correr algum risco, não necessariamente de soçobrar, mas, por exemplo, de não estar sendo adequadamente valorizada. Se tal pacto tem no centro o sistema de Justiça, é porque o que existe é ruim, funciona mal ou não cumpre o que promete à sociedade. Se o compromisso é tornar mais acessível, ágil e efetivo o sistema, é porque se supõe que ele não está ao alcance dos cidadãos, é lerdo e produz poucos resultados.
É de fato o que se passa? Temos indícios de uma crise dessa magnitude, que mexe com os fundamentos éticos e a base institucional do Estado brasileiro e está a ameaçar o coração do sistema republicano, que pulsa, como se sabe, ao ritmo dos direitos humanos fundamentais, da lei e da justiça igual para todos?
A lista dos pontos estabelecidos como prioritários pelos signatários do pacto é grave. Inclui, por exemplo, a preocupação com a legislação penal e confere grande atenção à investigação criminal, aos recursos, à prisão processual, à liberdade provisória e aos critérios para a interceptação telefônica e o uso da informática em investigações. Tudo para evitar excessos e proteger a dignidade da pessoa humana. São previstas alterações no Código Penal para dispor sobre os crimes praticados por grupos de extermínio ou milícias privadas, assim como na legislação sobre crime organizado e lavagem de dinheiro. Há preocupação também com a questão do abuso de autoridade e com a responsabilização dos agentes e servidores públicos em eventuais violações dos direitos fundamentais. Pensa-se em aperfeiçoar o Programa de Proteção à Vítima e Testemunha, do Ministério da Justiça, e a legislação trabalhista, com o objetivo de ampliar as tutelas de proteção das relações de trabalho.
A se considerar o teor do documento, a situação é calamitosa. O compromisso entre os três Poderes estaria, nesse caso, a endossar a tese do presidente do STF, Gilmar Mendes, de que convivemos com um "Estado policialesco", que ele tem associado aos excessos que estariam sendo cometidos pela Polícia Federal em operações como a Castelo de Areia e a Satiagraha, envolvendo banqueiros, empresários, delegados, políticos e funcionários públicos.
Seria, portanto, um cenário de horror.
Mas, e se o pacto não for mais um jogo de efeito do que algo para valer?
Como, em política, não há fumaça sem fogo, daria para vê-lo como instrumento de um "ajuste de contas" entre as instâncias superiores do Estado. Dizem, por exemplo, que há muitas arestas no interior da Polícia Federal. Mesmo as relações entre o Executivo e o Legislativo não são as melhores, com o segundo se mostrando muito subserviente ao primeiro. Poderia ser visto como palco para que se defenda a supremacia do Estado judicial sobre o administrativo ou o político, ou para que alguém exiba seu amor aos ritos da Justiça. Tais coisas, diga-se de passagem, não seriam estranhas nesta nossa época, em que conflitos, tensões e divergências políticas transbordam a esfera política para cair no terreno do julgamento espetacular, tido como mais rigoroso e imparcial. Judicialização da política, costuma-se dizer.
Outra maneira de analisar o pacto é lembrando que operações destinadas a defender e valorizar uma República não se podem limitar ao protagonismo dos Poderes. Um modo republicano de governar e organizar o Estado é aquele em que o interesse público se distingue dos interesses dos particulares, o direito e a lei preponderam e os cidadãos escolhem livremente seus dirigentes. Ele exige Poderes alertas e legitimados, mas só faz sentido e sobrevive se contar com bons políticos e estiver embebido de cima a baixo de educação cívica.
Possui virtude republicana uma comunidade que se organiza e se governa com instituições e hábitos públicos que são compreendidos e defendidos pelos cidadãos, que sabem valorizar a redução dos privilégios pessoais e das condições de possibilidade de imposição de um grupo ou classe sobre outros.
Atos de corrupção, abusos de autoridade ou defeitos da Justiça não podem ser vistos apenas como um problema de servidores, juízes ou políticos. Não estão associados a uma degradação da moralidade - daquilo que se refere ao homem moral, que responde por seus atos tendo em vista a própria consciência individual -, mas sim a um padrão de eticidade, referida ao homem ético, que define seus atos tendo em vista os outros homens. Têm tem muito mais que ver com vida intersubjetiva e organização social do que com caráter pessoal ou força institucional.
Sem repercutir nesse terreno e envolver os atores sociais de modo amplo, qualquer pacto republicano que se propuser será limitado e poucos efeitos virtuosos produzirá.
Marco Aurélio Nogueira, professor titular de Teoria Política da Unesp, é autor dos livros Em Defesa da Política (Senac, 2001)e Um Estado para a Sociedade Civil (Cortez, 2004)
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO
Dever-se-ia analisar com mais atenção o II Pacto Republicano de Estado por um Sistema de Justiça mais Acessível, Ágil e Efetivo, recentemente assinado pelos representantes dos três Poderes da República brasileira. Os presidentes do Supremo Tribunal Federal, da Câmara dos Deputados e do Senado, ao lado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, num documento de seis páginas, comprometeram-se a empreender esforços para conseguir a aprovação de projetos sobre acesso universal à Justiça, agilidade na prestação jurisdicional e proteção aos direitos humanos fundamentais.
Curiosamente, o assunto não despertou emoção nem entrou na pauta política.
Um pacto é tanto uma suspensão de litígios quanto um compromisso de defesa, algo que duas ou mais partes que não pensam obrigatoriamente do mesmo modo nem têm os mesmos interesses particulares se propõem a fazer em nome de uma meta comum, valiosa para todos e que se encontra ameaçada. Também exige cooperação e implica uma resolução de se manter fiel a uma causa, um princípio ou uma instituição.
O gesto mesmo intriga. Se se faz um pacto republicano, é porque se supõe que a República esteja a correr algum risco, não necessariamente de soçobrar, mas, por exemplo, de não estar sendo adequadamente valorizada. Se tal pacto tem no centro o sistema de Justiça, é porque o que existe é ruim, funciona mal ou não cumpre o que promete à sociedade. Se o compromisso é tornar mais acessível, ágil e efetivo o sistema, é porque se supõe que ele não está ao alcance dos cidadãos, é lerdo e produz poucos resultados.
É de fato o que se passa? Temos indícios de uma crise dessa magnitude, que mexe com os fundamentos éticos e a base institucional do Estado brasileiro e está a ameaçar o coração do sistema republicano, que pulsa, como se sabe, ao ritmo dos direitos humanos fundamentais, da lei e da justiça igual para todos?
A lista dos pontos estabelecidos como prioritários pelos signatários do pacto é grave. Inclui, por exemplo, a preocupação com a legislação penal e confere grande atenção à investigação criminal, aos recursos, à prisão processual, à liberdade provisória e aos critérios para a interceptação telefônica e o uso da informática em investigações. Tudo para evitar excessos e proteger a dignidade da pessoa humana. São previstas alterações no Código Penal para dispor sobre os crimes praticados por grupos de extermínio ou milícias privadas, assim como na legislação sobre crime organizado e lavagem de dinheiro. Há preocupação também com a questão do abuso de autoridade e com a responsabilização dos agentes e servidores públicos em eventuais violações dos direitos fundamentais. Pensa-se em aperfeiçoar o Programa de Proteção à Vítima e Testemunha, do Ministério da Justiça, e a legislação trabalhista, com o objetivo de ampliar as tutelas de proteção das relações de trabalho.
A se considerar o teor do documento, a situação é calamitosa. O compromisso entre os três Poderes estaria, nesse caso, a endossar a tese do presidente do STF, Gilmar Mendes, de que convivemos com um "Estado policialesco", que ele tem associado aos excessos que estariam sendo cometidos pela Polícia Federal em operações como a Castelo de Areia e a Satiagraha, envolvendo banqueiros, empresários, delegados, políticos e funcionários públicos.
Seria, portanto, um cenário de horror.
Mas, e se o pacto não for mais um jogo de efeito do que algo para valer?
Como, em política, não há fumaça sem fogo, daria para vê-lo como instrumento de um "ajuste de contas" entre as instâncias superiores do Estado. Dizem, por exemplo, que há muitas arestas no interior da Polícia Federal. Mesmo as relações entre o Executivo e o Legislativo não são as melhores, com o segundo se mostrando muito subserviente ao primeiro. Poderia ser visto como palco para que se defenda a supremacia do Estado judicial sobre o administrativo ou o político, ou para que alguém exiba seu amor aos ritos da Justiça. Tais coisas, diga-se de passagem, não seriam estranhas nesta nossa época, em que conflitos, tensões e divergências políticas transbordam a esfera política para cair no terreno do julgamento espetacular, tido como mais rigoroso e imparcial. Judicialização da política, costuma-se dizer.
Outra maneira de analisar o pacto é lembrando que operações destinadas a defender e valorizar uma República não se podem limitar ao protagonismo dos Poderes. Um modo republicano de governar e organizar o Estado é aquele em que o interesse público se distingue dos interesses dos particulares, o direito e a lei preponderam e os cidadãos escolhem livremente seus dirigentes. Ele exige Poderes alertas e legitimados, mas só faz sentido e sobrevive se contar com bons políticos e estiver embebido de cima a baixo de educação cívica.
Possui virtude republicana uma comunidade que se organiza e se governa com instituições e hábitos públicos que são compreendidos e defendidos pelos cidadãos, que sabem valorizar a redução dos privilégios pessoais e das condições de possibilidade de imposição de um grupo ou classe sobre outros.
Atos de corrupção, abusos de autoridade ou defeitos da Justiça não podem ser vistos apenas como um problema de servidores, juízes ou políticos. Não estão associados a uma degradação da moralidade - daquilo que se refere ao homem moral, que responde por seus atos tendo em vista a própria consciência individual -, mas sim a um padrão de eticidade, referida ao homem ético, que define seus atos tendo em vista os outros homens. Têm tem muito mais que ver com vida intersubjetiva e organização social do que com caráter pessoal ou força institucional.
Sem repercutir nesse terreno e envolver os atores sociais de modo amplo, qualquer pacto republicano que se propuser será limitado e poucos efeitos virtuosos produzirá.
Marco Aurélio Nogueira, professor titular de Teoria Política da Unesp, é autor dos livros Em Defesa da Política (Senac, 2001)e Um Estado para a Sociedade Civil (Cortez, 2004)
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