Gustavo H. B. Franco
DEU NO VALOR ECONÔMICO
Com 15 anos de vida, o real é o mais bem comportado de todos os oito padrões monetários que tivemos desde 1942, como nos mostra a tabela.
É verdade que o nosso histórico nesse assunto é nada menos que trágico: que outro país teve oito padrões monetários em 60 anos? É estonteante e humilhante lembrar a quantidade de zeros que cortamos ao longo dessas mudanças, como quem troca fraldas repetidamente usadas. E isso sem falar nos congelamentos, confiscos e maldades que acompanharam diversas dessas reformas monetárias.
A racionalidade monetária, portanto, não mais é que uma adolescente, a quem cabe, por certo, méritos de adulta, a julgar pelas crises que superou para chegar aos 15 anos assim viçosa e cheia de boas perspectivas para o futuro. Na verdade, ao revisitar a trajetória do real com o auxílio dos números para o IPCA, como exibidos no gráfico, ganhamos um utilíssimo distanciamento dos eventos e versões montadas no calor dos acontecimentos e uma métrica que o sistema de metas de inflação tornou bastante familiar. O leitor que hoje reflete sobre variações do IPCA na segunda casa decimal não poderá deixar de se surpreender com os números dos primeiros tempos.
O gráfico indica sete momentos importantes da política monetária, alguns mais decisivos que outros, mas todos muito educativos.
O extraordinário sucesso na primeira das batalhas - os quatro meses de vida da URV (Unidade Real de Valor) - pode ter trazido a impressão equivocada de que o Plano Real tinha acabado ali. Tínhamos reduzido a inflação de 43,1% mensais (em média para o IPCA no primeiro semestre de 1994), ou 7.260% anuais, para um número bem menor em julho de 1994: 6,8% mensais, ou 121% anuais. Uma queda extraordinária, um processo encantador, cheio de excelentes desígnios, mas o ponto de chegada, 121%, era um número totalmente absurdo, sendo este, na verdade, o tamanho do desafio a ser enfrentado no início da segunda batalha, aquela na qual as autoridades teriam que combater com armamento convencional.
Esta segunda batalha durou quatro anos. Paralelamente ao combate à inflação, lutávamos em várias frentes: na área fiscal, nas dívidas com estados, nas privatizações, na abertura e na solução de uma crise bancária que ceifou cerca de 100 bancos dos 300 que existiam em 1993. Entre nós, da área econômica, quando se falava de "âncoras", repetíamos Vasco Moscoso de Aragão, personagem de Jorge Amado, capitão de longo curso, que, ao aportar em lugar desconhecido e ser perguntado sobre que âncoras lançar, dizia: "Todas!"
E mesmo com todas as âncoras, e com muitos sabichões dizendo que era muito, tudo que conseguimos nos primeiros 12 meses de vida da nova moeda foi uma inflação acumulada, medida pelo IPCA, de 33%, um número que soa tão impossível ao observador de hoje quanto os 121% iniciais. Mas tivemos perseverança: a inflação caiu abaixo de 20% em abril de 1996, 22º mês, e abaixo de 10% apenas em dezembro, 30º mês da nova moeda. No ano-calendário de 1997, o IPCA cresceu 5,2% e em 1998 a inflação pelo IPCA foi a menor em nossa história: 1,7%.
Não creio que pudéssemos dizer que o plano funcionara, e que a desindexação realmente se entranhara, antes de atingir esse nível, uma espécie de "zero técnico", uma inflação igual à dos Estados Unidos. Era a prova material e essencial de que podíamos ter uma inflação, e uma moeda, de Primeiro Mundo.
Duas crises internacionais sobrevieram a partir do final de 1997, e uma terceira batalha teve de ser travada em torno da mudança do regime cambial. A desvalorização cambial oferecia um desafio aterrorizante, o risco de se colocar tudo a perder, mas, felizmente, o organismo estava preparado, surpreendentemente desintoxicado, e, novamente superando os piores prognósticos, vencemos. A vitória aí não foi propriamente em reduzir a inflação, mas ter evitado que a inflação sequer atingisse 10% anuais. E, mais importante, assentou-se firmemente a "tríade": superávit primário, câmbio flutuante e metas de inflação. Tínhamos agora uma contraprova!
Mas o pior desafio ainda estava por vir, não por um choque externo, mas pela ascensão ao poder dos aguerridos adversários de todas as medidas pró-estabilidade tomadas nos dois governos anteriores. O adolescente precisava lidar com seus próprios fantasmas e, em certo momento, não parecia capaz de superar o desafio. A batalha de número 4, no decorrer de 2002, foi perdida, o sistema de metas entrou em colapso, a inflação pelo IPCA superou os 15% (e pelo IGPM superou 30%), enquanto o pânico nos mercados era tacitamente alimentado pelos pronunciamentos na área política.
A batalha de número 5 talvez tenha sido a mais fácil, pois a vitória teve que ver com o comando decidir que não ia tocar fogo no barco em que ia navegar. Ou com o adolescente revelar sinais de maturidade, como acabou mostrando. O bom-senso prevaleceu, as ideias heterodoxas e seus patrocinadores foram exilados e a tríade foi restabelecida. Em 2004, no décimo aniversário do Real, o grande enredo era a convergência: a moeda era agora, na prática, de toda a nação, os riscos de "rupturas ideológicas" estavam afastados e o "grau de investimento" era questão de tempo.
Do 10º ao 15º ano, felizmente, a integridade da estabilização não esteve mais sob ameaça, ao menos com riscos comparáveis aos que corremos no passado. Vivemos apenas a rotina do regime de metas, com seus ciclos de aperto e de relaxamento, e que vem funcionando a contento mesmo diante da crise internacional de 2008, que terminou sendo uma crise de consequências deflacionistas. Na verdade, se há alguma explicação para os efeitos relativamente modestos da crise de 2008 sobre o Brasil, ela começa com o trabalho cumulativo e paciente desenvolvido por diversos governos e administradores ao longo dos últimos 15 anos.
Aos 15 anos de idade, portanto, nossa moeda vai bem, e o país observa suas possibilidades futuras com mais otimismo do que em qualquer outro momento em nossa história. É ótimo que o Real seja percebido, cada vez mais claramente, como uma obra coletiva: no critério de tempo de serviço, estritamente falando, os 15 anos se dividem em 8 do PSDB, ½ para Itamar Franco e 6 ½ para Lula. A rigor, a distribuição dos méritos não deveria ser bem esta, pois a genética pode ser mais relevante que o padrasto, ou não, mas pouco importa. O apreço pela coisa pública - e não há coisa mais pública que a moeda - começa com o desprendimento, ou com o sentimento de que ela não pertence a ninguém senão ao país.
Gustavo H. B. Franco, ex-presidente do Banco Central (1997-1999), é estrategista-chefe da Rio Bravo, presidente do conselho de administração e um dos sócios fundadores da gestora de recursos
DEU NO VALOR ECONÔMICO
Com 15 anos de vida, o real é o mais bem comportado de todos os oito padrões monetários que tivemos desde 1942, como nos mostra a tabela.
É verdade que o nosso histórico nesse assunto é nada menos que trágico: que outro país teve oito padrões monetários em 60 anos? É estonteante e humilhante lembrar a quantidade de zeros que cortamos ao longo dessas mudanças, como quem troca fraldas repetidamente usadas. E isso sem falar nos congelamentos, confiscos e maldades que acompanharam diversas dessas reformas monetárias.
A racionalidade monetária, portanto, não mais é que uma adolescente, a quem cabe, por certo, méritos de adulta, a julgar pelas crises que superou para chegar aos 15 anos assim viçosa e cheia de boas perspectivas para o futuro. Na verdade, ao revisitar a trajetória do real com o auxílio dos números para o IPCA, como exibidos no gráfico, ganhamos um utilíssimo distanciamento dos eventos e versões montadas no calor dos acontecimentos e uma métrica que o sistema de metas de inflação tornou bastante familiar. O leitor que hoje reflete sobre variações do IPCA na segunda casa decimal não poderá deixar de se surpreender com os números dos primeiros tempos.
O gráfico indica sete momentos importantes da política monetária, alguns mais decisivos que outros, mas todos muito educativos.
O extraordinário sucesso na primeira das batalhas - os quatro meses de vida da URV (Unidade Real de Valor) - pode ter trazido a impressão equivocada de que o Plano Real tinha acabado ali. Tínhamos reduzido a inflação de 43,1% mensais (em média para o IPCA no primeiro semestre de 1994), ou 7.260% anuais, para um número bem menor em julho de 1994: 6,8% mensais, ou 121% anuais. Uma queda extraordinária, um processo encantador, cheio de excelentes desígnios, mas o ponto de chegada, 121%, era um número totalmente absurdo, sendo este, na verdade, o tamanho do desafio a ser enfrentado no início da segunda batalha, aquela na qual as autoridades teriam que combater com armamento convencional.
Esta segunda batalha durou quatro anos. Paralelamente ao combate à inflação, lutávamos em várias frentes: na área fiscal, nas dívidas com estados, nas privatizações, na abertura e na solução de uma crise bancária que ceifou cerca de 100 bancos dos 300 que existiam em 1993. Entre nós, da área econômica, quando se falava de "âncoras", repetíamos Vasco Moscoso de Aragão, personagem de Jorge Amado, capitão de longo curso, que, ao aportar em lugar desconhecido e ser perguntado sobre que âncoras lançar, dizia: "Todas!"
E mesmo com todas as âncoras, e com muitos sabichões dizendo que era muito, tudo que conseguimos nos primeiros 12 meses de vida da nova moeda foi uma inflação acumulada, medida pelo IPCA, de 33%, um número que soa tão impossível ao observador de hoje quanto os 121% iniciais. Mas tivemos perseverança: a inflação caiu abaixo de 20% em abril de 1996, 22º mês, e abaixo de 10% apenas em dezembro, 30º mês da nova moeda. No ano-calendário de 1997, o IPCA cresceu 5,2% e em 1998 a inflação pelo IPCA foi a menor em nossa história: 1,7%.
Não creio que pudéssemos dizer que o plano funcionara, e que a desindexação realmente se entranhara, antes de atingir esse nível, uma espécie de "zero técnico", uma inflação igual à dos Estados Unidos. Era a prova material e essencial de que podíamos ter uma inflação, e uma moeda, de Primeiro Mundo.
Duas crises internacionais sobrevieram a partir do final de 1997, e uma terceira batalha teve de ser travada em torno da mudança do regime cambial. A desvalorização cambial oferecia um desafio aterrorizante, o risco de se colocar tudo a perder, mas, felizmente, o organismo estava preparado, surpreendentemente desintoxicado, e, novamente superando os piores prognósticos, vencemos. A vitória aí não foi propriamente em reduzir a inflação, mas ter evitado que a inflação sequer atingisse 10% anuais. E, mais importante, assentou-se firmemente a "tríade": superávit primário, câmbio flutuante e metas de inflação. Tínhamos agora uma contraprova!
Mas o pior desafio ainda estava por vir, não por um choque externo, mas pela ascensão ao poder dos aguerridos adversários de todas as medidas pró-estabilidade tomadas nos dois governos anteriores. O adolescente precisava lidar com seus próprios fantasmas e, em certo momento, não parecia capaz de superar o desafio. A batalha de número 4, no decorrer de 2002, foi perdida, o sistema de metas entrou em colapso, a inflação pelo IPCA superou os 15% (e pelo IGPM superou 30%), enquanto o pânico nos mercados era tacitamente alimentado pelos pronunciamentos na área política.
A batalha de número 5 talvez tenha sido a mais fácil, pois a vitória teve que ver com o comando decidir que não ia tocar fogo no barco em que ia navegar. Ou com o adolescente revelar sinais de maturidade, como acabou mostrando. O bom-senso prevaleceu, as ideias heterodoxas e seus patrocinadores foram exilados e a tríade foi restabelecida. Em 2004, no décimo aniversário do Real, o grande enredo era a convergência: a moeda era agora, na prática, de toda a nação, os riscos de "rupturas ideológicas" estavam afastados e o "grau de investimento" era questão de tempo.
Do 10º ao 15º ano, felizmente, a integridade da estabilização não esteve mais sob ameaça, ao menos com riscos comparáveis aos que corremos no passado. Vivemos apenas a rotina do regime de metas, com seus ciclos de aperto e de relaxamento, e que vem funcionando a contento mesmo diante da crise internacional de 2008, que terminou sendo uma crise de consequências deflacionistas. Na verdade, se há alguma explicação para os efeitos relativamente modestos da crise de 2008 sobre o Brasil, ela começa com o trabalho cumulativo e paciente desenvolvido por diversos governos e administradores ao longo dos últimos 15 anos.
Aos 15 anos de idade, portanto, nossa moeda vai bem, e o país observa suas possibilidades futuras com mais otimismo do que em qualquer outro momento em nossa história. É ótimo que o Real seja percebido, cada vez mais claramente, como uma obra coletiva: no critério de tempo de serviço, estritamente falando, os 15 anos se dividem em 8 do PSDB, ½ para Itamar Franco e 6 ½ para Lula. A rigor, a distribuição dos méritos não deveria ser bem esta, pois a genética pode ser mais relevante que o padrasto, ou não, mas pouco importa. O apreço pela coisa pública - e não há coisa mais pública que a moeda - começa com o desprendimento, ou com o sentimento de que ela não pertence a ninguém senão ao país.
Gustavo H. B. Franco, ex-presidente do Banco Central (1997-1999), é estrategista-chefe da Rio Bravo, presidente do conselho de administração e um dos sócios fundadores da gestora de recursos
Nenhum comentário:
Postar um comentário