sexta-feira, 3 de julho de 2009

Geopolítica complexa

Sergio Leo
DEU NO VALOR ECONÔMICO

Para defender a entrada da Venezuela no Mercosul, alvo de críticas e ameaças de rejeição no Senado, um embaixador dedicou dois dias em visitas a parlamentares, em Brasília. O inédito, na esforçada ação do diplomata em defesa dos venezuelanos, era sua origem: não era o embaixador da Venezuela no Brasil, mas o titular da embaixada do Brasil no país presidido por Hugo Chávez, Antônio Simões, que viajou a Brasília para a tarefa. Os senadores estranharam a iniciativa - apenas um exemplo dos esforços do governo brasileiro para manter em bom estado as relações com o vizinho.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que já foi apontado como rival de Chávez na disputa pela liderança na América do Sul, empenha-se para divulgar a amizade e a identidade de interesses entre ele e o venezuelano. Já inaugurou obras com Chávez durante campanha eleitoral na Venezuela, fez uma defesa emocionada do bom caráter do colega em uma conversa dos dois com o presidente Barack Obama, dá declarações em favor das tentativas do venezuelano de reeleger-se seguidamente para consolidar seu projeto bolivariano.

Esse esforço, segundo uma autoridade com trânsito no Planalto, parte da avaliação de que, sob Chávez, o chavismo, na Venezuela, segue um caminho que se bifurca: por um lado, andam autoridades simpáticas ao esquerdismo modelo Lula, com a preservação de estruturas tradicionais na economia e na política e forte intervenção do governo com políticas sociais; por outro lado, seguem auxiliares de Chávez ligados fortemente a Havana, alguns formados em escolas cubanas, que gostariam de reproduzir no país o modelo socialista da ilha caribenha, com a eliminação da propriedade privada dos meios de produção.

Lula age para reforçar a posição dos moderados venezuelanos, ainda que, na retórica, todos se assemelhem. Esse caminho moderado é o que leva Chávez, por exemplo, a se inspirar no modelo brasileiro de casas populares, financiado pela Caixa Econômica Federal, para lançar seu programa de habitação local e entregar pessoalmente as chaves aos primeiros moradores - ainda que anuncie a distribuição de propriedade privada como entrega de "casas socialistas".

No governo brasileiro, defende-se a cooperação em programas como a troca de informações sobre o programa Bolsa Família, auxílio técnico da Embrapa e apoio aos planos de industrialização como formas de facilitar a gestão econômica, reduzir as pressões sobre Chávez e reforçar as correntes mais democráticas do chavismo.

Os críticos da atitude brasileira apontam os preocupantes indícios de que o presidente venezuelano favorece amplamente o caminho cubano, de confronto com os interesses privados e progressiva estatização da produção industrial - ainda que as desestatizações, até agora, tenham se dado dentro da lei, com indenizações às empresas afetadas.

Como notou o cientista político Miguel Ángel Latouchers, da Universidade Central da Venezuela, em artigo recente na revista "Foreign Affairs", não há como negar a origem popular e legitimidade eleitoral do governo Chávez, mas seu projeto político é baseado em um projeto de "revolução permanente" no qual, sem espaço para acordos, as vozes de oposição são enfrentadas com mecanismos de "segregação político-social" - como a famosa "lista Tascón", pela qual os signatários de um pedido de referendo para revogação do mandato de Chávez entraram em uma lista negra distribuída às repartições públicas.

A força da linha "cubana" no aparato chavista alimenta-se do apoio técnico (Cuba ajudou na estatização da empresa de telefonia CANTV) e das ações humanitárias, como a manutenção de 30 mil a 35 mil médicos e profissionais de saúde cubanos no país - que prestam atendimento básico e atuaram na chamada Operação Milagre, de cirurgias oftalmológicas. Além disso, a paranoia sobre uma possível tentativa de desestabilização do governo sustentada pelos Estados Unidos ou pelo vizinho governo colombiano garante a permanência, no país, de profissionais cubanos ligados a serviços de inteligência.

Para os críticos do governo Lula, a proximidade entre os dois presidentes é motivada por afinidades ideológicas, é daninha aos interesses brasileiros e estimula Chávez a seguir um projeto totalitário, com implicações sobre a estabilidade política da região, onde estimula ações nacionalistas.

Mesmo entre analistas críticos a Chávez ou a ambos os presidentes, não é pequeno o número dos que atribuem as ações de Lula a uma tentativa de estabelecer, na política externa, o que se chama de "política não confrontacionista", avessa a sanções ou medidas de força contra países e favorável ao esforço de negociação e diálogo.

Essa política, no Brasil, impede manifestações públicas de desagrado com ações do aliado, embora não exclua represálias, como ocorreu com a Bolívia, quando a Petrobras cancelou projetos de investimento em ampliação do gasoduto e em industrialização local do gás, após a nacionalização dos campos de petróleo e refinarias de propriedade da empresa. Ou no Equador, onde a expulsão unilateral da empreiteira Odebrecht e a ameaça de não pagamento de empréstimos ao BNDES levaram o Brasil a cancelar projetos bilaterais de investimento em infraestrutura.

Na semana passada, o reatamento de relações diplomáticas entre Venezuela e Estados Unidos foi apontado por membros do governo brasileiro como demonstração de que é possível buscar o diálogo com Chávez, para frear as tendências mais radicais do governo venezuelano.

"Lula escolheu para ele e o Brasil a função de estabilizador no continente, e adotou a política não confrontacionista", diz o professor da Universidade de Brasília Amado Cervo, autor de livros-texto sobre a política externa brasileira e as relações com a Venezuela. "Isso significa evitar sanções ou embargos e políticas cooperativas, não importa qual seja a natureza do regime."

Antigo defensor da aproximação entre os dois países, com uma visão favorável da ação diplomática brasileira, Cervo, mesmo assim, critica os rumos tomados pelos países da Alternativa Bolivariana dos Povos da América (Alba), protagonizada por Chávez. Como Bolívia e Equador, a Venezuela adota, segundo Cervo, "um modelo introspectivo, nacionalista, voltado para mecanismos e recursos internos para resolver todos os problemas", avesso à integração internacional e econômica. Ações hostis desses países não são dirigidas contra o Brasil, mas resultam de "um modelo de inserção, no mundo, contrário à tendência das relações internacionais do século XXI".

Cervo concorda com o governo brasileiro na avaliação de que endurecer no tom com esses países só reforçaria acusações de ação "imperialista" do Brasil, tema recorrente na vizinhança. "O Brasil poderia ajudar o desenvolvimento, modernização, oferta de emprego e renda, mas o que a diplomacia vai fazer se a reação é chauvinista, nacionalista, introspectiva?", pergunta.

Há uma certeza, mesmo entre os críticos das atitudes de Lula em relação a Chávez: ainda que o presidente brasileiro agisse diferente, dificilmente exerceria influência significativa sobre o vizinho, que tem um projeto próprio, enraizado no fracasso das experiências de governo anteriores, e profundamente marcado pela paranoia de segurança que cresceu após a frustrada tentativa de golpe de Estado em 2002, endossado pelo então governo dos Estados Unidos e boa parte das elites políticas e empresariais locais.

Se a estratégia "moderadora" é apropriada para lidar com Chávez, esse é um julgamento a ser feito pela história, comenta o presidente do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), embaixador José Botafogo Gonçalves, que não crê na possibilidade de o Brasil exercer uma influência decisiva no projeto bolivariano de Chávez. O próprio Chávez descreve seu projeto com tons totalitários, argumenta Botafogo: defende a democracia plebiscitária em lugar da democracia representativa, é contrário à economia de mercado e demoniza a alternância de poder.

"Se não muda o projeto de Chávez, o que se tem de atentar é para os efeitos do projeto bolivariano sobre o Brasil ou outros países", comenta Botafogo. Passados os atritos com Bolívia e Equador, recentemente, o fenômeno mais nítido é o forte interesse de empresas brasileiras pelo projeto industrial do governo venezuelano, que tenta instalar 200 grandes indústrias no país, grande parte em parcerias com brasileiros.

O interesse empresarial tempera, por exemplo, as manifestações da Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp), dividida nessa questão entre os que querem uma crítica aberta a Chávez e os que defendem a aproximação com o governo bolivariano. Alguns analistas apontam a ênfase no mercado interno como um ponto de contato entre Lula e Chávez, uma opção comum de estratégia para o desenvolvimento.

"O Brasil exporta US$ 6 bilhões à Venezuela e importa US$ 1 bilhão; entre US$ 600 milhões e US$ 800 milhões, só em bens de capital. E ainda estão nos pedindo ajuda", comenta Mário Mugnaini, ex-diretor-executivo da Associação Brasileira de Máquinas e Equipamentos (Abimaq), um dos executivos que participou das negociações dos empresários do setor de bens de capital, fabricantes de máquinas e equipamentos para a indústria. Mugnaini entende que a relação com um mercado promissor como o venezuelano não deve ser comprometida por considerações políticas, como defende Lula. Toda aproximação só melhoraria as condições de acesso das empresas brasileiras, diz.

O argumento comercial é citado com frequência no governo e tem defensores também na academia, como a coordenadora do Observatório Político Sul-Americano (Opsa) do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), Maria Regina Soares de Lima. Em depoimento recente ao Senado, após observar que a maior integração com a Venezuela começou nos governos Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, com interligação elétrica e rodoviária, ela lembrou que o comércio com os venezuelanos cresceu 858% entre 1999 e 2008, quando chegou a US$ 4,6 bilhões.

O Brasil ocupou fatias de mercado antes cativas dos Estados Unidos e da Colômbia como fornecedor de produtos como leite em pó, carne de frango e gado em pé, fármacos, eletroeletrônicos e outros alimentos. Roraima e o Distrito Federal já têm no país seu principal destino de exportação, e vários Estados - Piauí, Paraíba, Minas Gerais e Pernambuco - aumentaram as vendas entre mais de 200% e até 2.800% nos últimos quatro anos.

Assim como membros do governo, Soares de Lima avalia que a entrada da Venezuela no Mercosul contribuiria para a estabilidade política regional, ao assegurar ao país o apoio institucional do bloco contra ameaças de golpe, arrefecendo as tensões políticas alimentadas pela lembrança da tentativa de 2002. A Venezuela mantém o referendo revocatório, que permite a derrubada legal de presidentes em meio de mandato, lembra. A exclusão da Venezuela do Mercosul, observa, seria considerada um ato hostil, com consequências negativas para a articulação política e interesses econômicos do Brasil no país e na região.

Essa análise está longe de ser consensual, porém, e muitos empresários se queixam da burocracia e dificuldades no centralizado governo Chávez, que cria entraves para o pagamento aos exportadores brasileiros, sujeitos ao regime de centralização cambial do país. As queixas são recebidas no governo brasileiro com a justificativa de que a Venezuela passa, agora, pelo auge da restrição cambial em razão da queda, no início do ano, do preço do petróleo, sua principal fonte de divisas. Quando chegarem as receitas com o petróleo aos novos preços, registrados nos últimos meses, a situação tende a melhorar, argumenta-se em Brasília.

Mas a falta de transparência e a insegurança jurídica criadas pelo estilo de Chávez, que contesta as instituições tradicionais, podem virar um pesadelo para os empresários que hoje apostam em bons negócios com o governo venezuelano, garante o advogado internacional Robert Amsterdam, que esteve no Brasil, há duas semanas, também em lobby no Senado, mas contra a inclusão da Venezuela no Mercosul. Amsterdam foi contratado recentemente pelo milionário Eligio Cedeño, preso desde 2007, em um processo que, afirma, tem motivações políticas.

Acusado de fraude cambial, Cedeño, desafeto de Hugo Chávez, teve sua prisão preventiva prolongada por mais dois anos neste ano, em um processo no qual Amsterdam aponta falhas e manipulação, com intimidação de juízes. "Quando estava claro que ficaria provada a inocência dele, o governo suspendeu o julgamento, e usa a detenção como instrumento político, em violação aos direitos humanos", argumenta Amsterdam, que tentou fazer chegar seu dossiê sobre o empresário a Lula. "O presidente Lula tem liderança real no continente, uma manifestação dele teria peso na situação da Venezuela", afirma.

A visão confrontacionista de Chávez, que prioriza a política em relação a razões econômicas, agregará ao Mercosul mais dificuldades às que o bloco já enfrenta, aponta o ex-ministro de Relações Exteriores, Celso Lafer. Como a maioria dos especialistas brasileiros, porém, ele vê chances limitadas de Lula exercer algum controle sobre Chávez, ou influência decisiva sobre a situação interna venezuelana.

Embora admita que o esforço de aproximar-se da Venezuela tem também razões geopolíticas tradicionais, de relacionamento suave com a vizinhança e de estímulo à integração econômica do Norte do Brasil, Lafer acredita que o entorno de Lula confunde os interesses do Estado brasileiro com os do partido, o PT, o que inclinaria o presidente a ver com condescendência os demais movimentos de esquerda da região, por afinidade ideológica.

A visão nacionalista desses movimentos entra algumas vezes em conflito com interesses brasileiros, acredita Lafer. "O presidente, felizmente, é mais pragmático que seus assessores", ironiza. "Mas também a região sul-americana enfrenta situação muito mais complicada que no passado", reconhece o ex-ministro. Isso também é um consenso entre os analistas: Chávez não ajuda muito a simplificar essa situação complicada na região que divide com Lula e os outros governantes sul-americanos.

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