DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / Caderno 2 (21/11/2009)
Ex-integrantes do Cebrap guardam elogios e algumas críticas à instituição que abrigou FHC e Serra
Antonio Gonçalves Filho
A história poderia começar assim: um grupo de professores da USP se reúne seis anos antes de os militares tomarem o poder em Brasília para estudar regularmente O Capital e ver como as lições de Karl Marx poderiam ser aplicadas à realidade brasileira. Fazem parte desse seleto grupo um homem que viria a ser presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, sua mulher, Ruth Cardoso, o filósofo José Arthur Giannotti, o economista Paul Singer, o cientista social Octávio Ianni e o historiador Fernando Novais. Depois viriam o crítico literário Roberto Schwarz e o sociólogo Juarez Brandão Lopez, até que o golpe militar fez essas cabeças voarem para o exílio. Na volta, com o País ainda fechado e as universidades vigiadas pelo regime, FHC resolveu reunir de novos os amigos para estudar e foi assim que surgiu o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) num pequeno sobrado de Higienópolis, financiado com dinheiro americano da Fundação Ford.
Nos anos 1970, a ditadura ficou ainda mais tenebrosa com a decretação do AI-5. Começaram as perseguições, professores foram "aposentados" pelo regime e as cabeças pensantes encontraram no Cebrap um refúgio para a inteligência. Foi assim que, entre 1970 e 1971, o quadro de pesquisadores do Cebrap ganhou em sua fase embrionária a adesão de nomes como os dos sociólogos Francisco de Oliveira, um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT), e Bolívar Lamounier, entre outros, que passaram, em 1971, a publicar seus estudos na revista Estudos Cebrap e nos Cadernos Cebrap, três séries com 45 históricas edições (de 1971 a 1997). A resistência parecia surtir efeito até que, em 1974, alguns integrantes do Cebrap foram presos e até torturados, caso dos sociólogos Francisco de Oliveira e Vinícius Caldeira Brant. Para completar o quadro de terror, uma bomba caseira explodiu na sede do Cebrap em 1976, um ano antes de FHC filiar-se ao MDB e ser candidato ao Senado, e dois antes de José Serra voltar do exílio e tornar-se pesquisador do Cebrap.
Essa seria a história oficial se alguns dos ex-integrantes do Cebrap não tivessem a própria história para contar. Hoje distanciados por questões ideológicas, alguns contestam a versão de que teria sido o Cebrap o marco zero de partidos como o PSDB e o PT. Em sua entrevista no livro Retrato de Grupo, o recifense Francisco de Oliveira, já avisando que não é historiador soviético nem revisionista, discorda de Fernando Henrique Cardoso. Não aceita a versão de que o Cebrap tenha nascido sob o signo da Fundação Ford, embora tenha recebido dinheiro dela. Ex-presidente do Cebrap de 1993 a 1995, quando já havia se instalado a divisão partidária dentro da instituição, ele saiu rompido com alguns de seus integrantes que o consideravam anti-Cardoso. Oliveira diz que não era e não é contra FHC, mas não olha com nostalgia para o Cebrap do passado, onde passou 25 anos de sua vida. Admite que ele continua sendo um centro de pesquisas importante, mas que a universidade ocupou seu espaço, dividindo-o com outras instituições similares que cresceram nos últimos anos.
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, respondendo a uma questão dos entrevistadores no livro, sobre a incorporação de pesquisadores no Cebrap não- oriundos da USP, diz que na época de sua criação, a USP "era muito fechada", "muito francesa, considerando-se superior ao resto daqui que não era francês". Destacando o papel do Cebrap como um "foco de resistência" contra a ditadura, FHC observa que nem todos os seus integrantes foram cassados ou perseguidos pelo regime, citando como exemplo o sociólogo Juarez Brandão Lopes. Sem mencionar nomes de outros ex-colegas do Cebrap, o ex-presidente conclui sua entrevista dizendo que "a maioria da esquerda brasileira está aferrada a duas ideias que envelheceram: a do velho nacionalismo e a do estatismo". Sua última frase vai para os candidatos a tomar o lugar de Lula. Eles teriam de ser como Barack Obama, capazes de funcionar como um ponto de referência para a sociedade de massas, papel que o atual presidente brasileiro desempenha bem. "O líder tem de tomar posição para pode existir", observa. E conclui: "Você vê que o Lula fala todo dia - fala sobre o que ele sabe e sobre o que ele não sabe, toma posição e até muda de posição." Vale como elogio. Mas pode servir como crítica.
Como o Cebrap virou referência não só no meio político como cultural, duas entrevistas com integrantes da área se destacam na edição de Retrato de Grupo, as do crítico literário Roberto Schwarz e a do crítico de artes visuais Rodrigo Naves. O primeiro organizou, em 1982, um dossiê sobre os pobres na literatura brasileira para a revista Novos Estudos, do Cebrap, que depois seria editada por Rodrigo Naves. O dossiê virou um livro irregular, com artigos fracos. Schwarz admite que poderia ter editado os textos ou pedido para que seus autores os reescrevessem. É possível que a prometida reedição de Os Pobres na Literatura Brasileira venha a corrigir esses equívocos.
A Novos Estudos, sob orientação de Rodrigo Naves, produziu também números especiais, como o dedicado ao filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas, uma mudança na orientação na revista, até então dedicada quase que exclusivamente a debater a realidade brasileira. Naves observa que a nova linha adotada pelo Cebrap desde 1990, mais voltada para a pesquisa do que para a atuação política, pode até trazer surpresas, mas a crença inicial de seus fundadores, de que iriam mudar o capitalismo, essa já foi por terra.
Ex-integrantes do Cebrap guardam elogios e algumas críticas à instituição que abrigou FHC e Serra
Antonio Gonçalves Filho
A história poderia começar assim: um grupo de professores da USP se reúne seis anos antes de os militares tomarem o poder em Brasília para estudar regularmente O Capital e ver como as lições de Karl Marx poderiam ser aplicadas à realidade brasileira. Fazem parte desse seleto grupo um homem que viria a ser presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, sua mulher, Ruth Cardoso, o filósofo José Arthur Giannotti, o economista Paul Singer, o cientista social Octávio Ianni e o historiador Fernando Novais. Depois viriam o crítico literário Roberto Schwarz e o sociólogo Juarez Brandão Lopez, até que o golpe militar fez essas cabeças voarem para o exílio. Na volta, com o País ainda fechado e as universidades vigiadas pelo regime, FHC resolveu reunir de novos os amigos para estudar e foi assim que surgiu o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) num pequeno sobrado de Higienópolis, financiado com dinheiro americano da Fundação Ford.
Nos anos 1970, a ditadura ficou ainda mais tenebrosa com a decretação do AI-5. Começaram as perseguições, professores foram "aposentados" pelo regime e as cabeças pensantes encontraram no Cebrap um refúgio para a inteligência. Foi assim que, entre 1970 e 1971, o quadro de pesquisadores do Cebrap ganhou em sua fase embrionária a adesão de nomes como os dos sociólogos Francisco de Oliveira, um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT), e Bolívar Lamounier, entre outros, que passaram, em 1971, a publicar seus estudos na revista Estudos Cebrap e nos Cadernos Cebrap, três séries com 45 históricas edições (de 1971 a 1997). A resistência parecia surtir efeito até que, em 1974, alguns integrantes do Cebrap foram presos e até torturados, caso dos sociólogos Francisco de Oliveira e Vinícius Caldeira Brant. Para completar o quadro de terror, uma bomba caseira explodiu na sede do Cebrap em 1976, um ano antes de FHC filiar-se ao MDB e ser candidato ao Senado, e dois antes de José Serra voltar do exílio e tornar-se pesquisador do Cebrap.
Essa seria a história oficial se alguns dos ex-integrantes do Cebrap não tivessem a própria história para contar. Hoje distanciados por questões ideológicas, alguns contestam a versão de que teria sido o Cebrap o marco zero de partidos como o PSDB e o PT. Em sua entrevista no livro Retrato de Grupo, o recifense Francisco de Oliveira, já avisando que não é historiador soviético nem revisionista, discorda de Fernando Henrique Cardoso. Não aceita a versão de que o Cebrap tenha nascido sob o signo da Fundação Ford, embora tenha recebido dinheiro dela. Ex-presidente do Cebrap de 1993 a 1995, quando já havia se instalado a divisão partidária dentro da instituição, ele saiu rompido com alguns de seus integrantes que o consideravam anti-Cardoso. Oliveira diz que não era e não é contra FHC, mas não olha com nostalgia para o Cebrap do passado, onde passou 25 anos de sua vida. Admite que ele continua sendo um centro de pesquisas importante, mas que a universidade ocupou seu espaço, dividindo-o com outras instituições similares que cresceram nos últimos anos.
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, respondendo a uma questão dos entrevistadores no livro, sobre a incorporação de pesquisadores no Cebrap não- oriundos da USP, diz que na época de sua criação, a USP "era muito fechada", "muito francesa, considerando-se superior ao resto daqui que não era francês". Destacando o papel do Cebrap como um "foco de resistência" contra a ditadura, FHC observa que nem todos os seus integrantes foram cassados ou perseguidos pelo regime, citando como exemplo o sociólogo Juarez Brandão Lopes. Sem mencionar nomes de outros ex-colegas do Cebrap, o ex-presidente conclui sua entrevista dizendo que "a maioria da esquerda brasileira está aferrada a duas ideias que envelheceram: a do velho nacionalismo e a do estatismo". Sua última frase vai para os candidatos a tomar o lugar de Lula. Eles teriam de ser como Barack Obama, capazes de funcionar como um ponto de referência para a sociedade de massas, papel que o atual presidente brasileiro desempenha bem. "O líder tem de tomar posição para pode existir", observa. E conclui: "Você vê que o Lula fala todo dia - fala sobre o que ele sabe e sobre o que ele não sabe, toma posição e até muda de posição." Vale como elogio. Mas pode servir como crítica.
Como o Cebrap virou referência não só no meio político como cultural, duas entrevistas com integrantes da área se destacam na edição de Retrato de Grupo, as do crítico literário Roberto Schwarz e a do crítico de artes visuais Rodrigo Naves. O primeiro organizou, em 1982, um dossiê sobre os pobres na literatura brasileira para a revista Novos Estudos, do Cebrap, que depois seria editada por Rodrigo Naves. O dossiê virou um livro irregular, com artigos fracos. Schwarz admite que poderia ter editado os textos ou pedido para que seus autores os reescrevessem. É possível que a prometida reedição de Os Pobres na Literatura Brasileira venha a corrigir esses equívocos.
A Novos Estudos, sob orientação de Rodrigo Naves, produziu também números especiais, como o dedicado ao filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas, uma mudança na orientação na revista, até então dedicada quase que exclusivamente a debater a realidade brasileira. Naves observa que a nova linha adotada pelo Cebrap desde 1990, mais voltada para a pesquisa do que para a atuação política, pode até trazer surpresas, mas a crença inicial de seus fundadores, de que iriam mudar o capitalismo, essa já foi por terra.
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