DEU NO JORNAL DO BRASIL
Tancredo Neves faria 100 anos hoje. Ao relembrar aqueles meses, dias e horas, dois sentimentos me abalam o espírito: a brevidade da vida e a escassez de homens de Estado. Atribui-se ao chanceler Oswaldo Aranha a constatação de que o Brasil “é um deserto de homens e de ideias”. Foi uma injustiça do bravo gaúcho – companheiro de Tancredo no segundo governo Vargas – para com muitos de seus contemporâneos, e a ele mesmo, invulgar servidor do Estado. Mas há situações históricas em que os grandes homens não deixam muitos seguidores. Naqueles anos finais do regime de exceção, a personalidade de Tancredo começou a destacar-se no horizonte. Ele não estava só: a oposição republicana contava com alguns veteranos combatentes, entre eles Franco Montoro, Ulysses Guimarães, Miguel Arraes, Barbosa Lima Sobrinho, Leonel Brizola.
Embora os houvesse, os olhos mais atentos se dirigiam ao mineiro, porque às convicções democráticas e virtudes pessoais se reuniam as circunstâncias. Ele vivera o passado não como testemunha, e sim como militante político. Mesmo durante a noite de chumbo do regime militar, ele, como exigia a situação, manteve-se atuante na resistência, tanto mais efetiva, quanto mais discreta. Dominava, com paciência montanhesa, a angústia diante do regime de opressão, que censurava a imprensa, prendia, torturava e matava. Mas essa paciência, que ele parecia pastorear pelos corredores do Congresso, ocultava esforço incansável para a manutenção da esperança entre seus companheiros do Congresso e personalidades importantes da sociedade.
Homem da região do garimpo, sabia que todos os dias são de cata, de olhos atentos no fundo da bateia, de mãos seguras no tateio dos grãos esquivos entre os seixos inúteis, a argila pegajosa e os cristais de brilho falso. Ele desprezava os agravos recebidos, como se desdenham os cascalhos opacos, como ocorria nas manifestações públicas de seus adversários. Constatava, com pragmatismo, que as vaias fazem parte da dieta do homem público. Recordo-me que, quando não estava exercendo cargos executivos, e não o submetiam as razões de segurança, recusava, com delicadeza, o oferecimento para usar as salas especiais de espera nos aeroportos. Um dia explicou-me que já havia muitas razões para que as pessoas comuns se sentissem discriminadas, e ele não queria ostentar o mesquinho privilégio.
Poucos homens públicos conheciam, quanto ele, tão bem a história política brasileira. Sentia-se orgulhoso de que os mineiros nela tivessem o destaque conhecido. Referia-se a homens do Império e da Primeira República como se os tivesse conhecido na intimidade. Reconhecia-lhes os defeitos humanos, ao mesmo tempo em que lhes registrava as qualidades. Para ele, o maior equívoco da Independência (e o debitava menos ao príncipe e mais à própria sociedade brasileira daquele tempo) fora a manutenção da escravatura. Além de oprobriosa, a escravidão dificultaria o desenvolvimento da economia industrial, que só ocorreria quando os cativos se transformassem em assalariados.
A associação política de Tancredo com Getulio é dos casos mais emblemáticos da crônica política nacional. Tancredo nunca ocultou sua profunda admiração pelo presidente. Ele atribuía o forte nacionalismo de Vargas, entre outras razões, à história atribulada do Rio Grande do Sul, em seus entreveros com os vizinhos meridionais. A fronteira, ele costumava dizer, ao mesmo tempo em que favorece os pequenos desvios do contrabando, torna mais nítido o sentimento de pátria. Confrontar-se com o inimigo é o mais forte estímulo ao patriotismo. Por isso, tinha profunda admiração pelos pernambucanos, alagoanos e paraibanos, que expulsaram os holandeses do território brasileiro.
A outra forte marca de sua personalidade era a da justiça para com os que trabalham. Logo no início de seu governo, em Minas, metalúrgicos de Barão de Cocais fizeram uma marcha de protesto sobre Belo Horizonte, reclamando melhores salários. Tancredo mandou convidá-los para realizar a manifestação, em segurança, nos jardins do Palácio da Liberdade. E lhes manifestou solidariedade. Não era mero gesto político. Com o ato, o governador deu seu recado aos patrões, para que negociassem logo com os grevistas.
Tancredo Neves faria 100 anos hoje. Ao relembrar aqueles meses, dias e horas, dois sentimentos me abalam o espírito: a brevidade da vida e a escassez de homens de Estado. Atribui-se ao chanceler Oswaldo Aranha a constatação de que o Brasil “é um deserto de homens e de ideias”. Foi uma injustiça do bravo gaúcho – companheiro de Tancredo no segundo governo Vargas – para com muitos de seus contemporâneos, e a ele mesmo, invulgar servidor do Estado. Mas há situações históricas em que os grandes homens não deixam muitos seguidores. Naqueles anos finais do regime de exceção, a personalidade de Tancredo começou a destacar-se no horizonte. Ele não estava só: a oposição republicana contava com alguns veteranos combatentes, entre eles Franco Montoro, Ulysses Guimarães, Miguel Arraes, Barbosa Lima Sobrinho, Leonel Brizola.
Embora os houvesse, os olhos mais atentos se dirigiam ao mineiro, porque às convicções democráticas e virtudes pessoais se reuniam as circunstâncias. Ele vivera o passado não como testemunha, e sim como militante político. Mesmo durante a noite de chumbo do regime militar, ele, como exigia a situação, manteve-se atuante na resistência, tanto mais efetiva, quanto mais discreta. Dominava, com paciência montanhesa, a angústia diante do regime de opressão, que censurava a imprensa, prendia, torturava e matava. Mas essa paciência, que ele parecia pastorear pelos corredores do Congresso, ocultava esforço incansável para a manutenção da esperança entre seus companheiros do Congresso e personalidades importantes da sociedade.
Homem da região do garimpo, sabia que todos os dias são de cata, de olhos atentos no fundo da bateia, de mãos seguras no tateio dos grãos esquivos entre os seixos inúteis, a argila pegajosa e os cristais de brilho falso. Ele desprezava os agravos recebidos, como se desdenham os cascalhos opacos, como ocorria nas manifestações públicas de seus adversários. Constatava, com pragmatismo, que as vaias fazem parte da dieta do homem público. Recordo-me que, quando não estava exercendo cargos executivos, e não o submetiam as razões de segurança, recusava, com delicadeza, o oferecimento para usar as salas especiais de espera nos aeroportos. Um dia explicou-me que já havia muitas razões para que as pessoas comuns se sentissem discriminadas, e ele não queria ostentar o mesquinho privilégio.
Poucos homens públicos conheciam, quanto ele, tão bem a história política brasileira. Sentia-se orgulhoso de que os mineiros nela tivessem o destaque conhecido. Referia-se a homens do Império e da Primeira República como se os tivesse conhecido na intimidade. Reconhecia-lhes os defeitos humanos, ao mesmo tempo em que lhes registrava as qualidades. Para ele, o maior equívoco da Independência (e o debitava menos ao príncipe e mais à própria sociedade brasileira daquele tempo) fora a manutenção da escravatura. Além de oprobriosa, a escravidão dificultaria o desenvolvimento da economia industrial, que só ocorreria quando os cativos se transformassem em assalariados.
A associação política de Tancredo com Getulio é dos casos mais emblemáticos da crônica política nacional. Tancredo nunca ocultou sua profunda admiração pelo presidente. Ele atribuía o forte nacionalismo de Vargas, entre outras razões, à história atribulada do Rio Grande do Sul, em seus entreveros com os vizinhos meridionais. A fronteira, ele costumava dizer, ao mesmo tempo em que favorece os pequenos desvios do contrabando, torna mais nítido o sentimento de pátria. Confrontar-se com o inimigo é o mais forte estímulo ao patriotismo. Por isso, tinha profunda admiração pelos pernambucanos, alagoanos e paraibanos, que expulsaram os holandeses do território brasileiro.
A outra forte marca de sua personalidade era a da justiça para com os que trabalham. Logo no início de seu governo, em Minas, metalúrgicos de Barão de Cocais fizeram uma marcha de protesto sobre Belo Horizonte, reclamando melhores salários. Tancredo mandou convidá-los para realizar a manifestação, em segurança, nos jardins do Palácio da Liberdade. E lhes manifestou solidariedade. Não era mero gesto político. Com o ato, o governador deu seu recado aos patrões, para que negociassem logo com os grevistas.
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