DEU EM O GLOBO
Quarenta dias após o segundo turno, o presidente Lula ainda mostra irrefreável apego ao discurso mistificador. Permitiu-se agora um balanço peculiar da reforma tributária. "...já mandei duas propostas para o Congresso, a primeira em 2003, e algum inimigo oculto não permitiu que ela andasse..." Em 2007, "quando ela chegou ao Congresso, imaginei que seria aprovada no primeiro dia, por unanimidade, tal era a coesão em torno da política tributária. O que aconteceu? Nada. Porque o inimigo oculto se manifestou outra vez e não permitiu que acontecesse". (O GLOBO, 4/12/2010)
A tentação de atribuir desfechos desfavoráveis a atores absconsos é um velho cacoete de Brasília. Vem assombrando ocupantes do Alvorada há quase meio século, desde que Jânio Quadros imputou a "forças ocultas" o retumbante fracasso da cambalhota política que tentara dar com intempestiva renúncia.
A verdade é que a agenda da reforma tributária compõe um desafio de ação coletiva extraordinariamente complexo. Envolve um jogo de soma zero que, ao exacerbar os temores de perda de receita nos três níveis de governo, cria enormes resistências à aprovação de mudanças mais ousadas. E exige a abertura de negociações que podem facilmente desandar em tentativas de redistribuição radical do bolo tributário no Congresso.
Nunca é demais lembrar o que ocorreu em 2003. Em abril daquele ano, Lula atravessou a Praça dos Três Poderes, acompanhado de 27 governadores, para entregar ao Congresso propostas supostamente consensuais de reforma nas áreas previdenciária e tributária. Essa iniciativa espalhafatosa até redundou em avanços importantes na área previdenciária. Mas a reforma tributária não teve o mesmo sucesso. Logo se instalou na Câmara um ativo mercado persa, no qual se tentava remover qualquer resistência à proposta do governo com promessas de favores federais aos estados alegadamente prejudicados. Em poucas semanas, essa conta em aberto passou a totalizar cifras inviáveis. E as negociações descambaram para a disputa em campo aberto pelo bolo tributário. Tendo o projeto sido desfigurado na Câmara, o governo decidiu baixar a bola, abandonar pretensões mais ousadas e concentrar atenção na aprovação de mudanças menos controversas, de interesse mais imediato.
Em 2007-2008, o governo até conseguiu desenvolver uma proposta mais articulada de reforma, graças ao empenho de Bernard Appy, que sobreviveu à desmontagem da equipe de Antonio Palocci. A verdade, no entanto, é que, escaldado pelo susto de 2003, o governo jamais apostou para valer na tramitação dessa nova proposta no Congresso.
A perspectiva de folga fiscal trazida pela descoberta do pré-sal abriu ao país uma excelente oportunidade de romper o jogo de soma zero da reforma tributária. A apropriação dessa folga fiscal pelos três níveis de governo poderia ter sido engenhosamente acoplada à reforma tributária, de forma a mitigar resistências advindas de temores de perda de receita. Mas isso teria exigido visão estratégica e suprapartidária, bem diferente da perspectiva que pautou a formatação corporativista e eleitoreira que o governo acabou dando ao pré-sal.
O fato é que a oportunidade foi perdida. Como mostra a entrevista do presidente da Petrobrás no "Valor" de 6/12, boa parte do excedente potencial da exploração do pré-sal deverá ser dilapidado num faustoso programa de favorecimento à produção local de equipamentos para a indústria petrolífera. A folga fiscal vai ser muito menor do que poderia ter sido. E o pior é que o Planalto parece ter aprendido bem menos do que deveria com a experiência de 2003. Atiçado mais uma vez o vespeiro federativo, o governo perdeu completamente o controle da disputa no Congresso pelo butim dos recursos provenientes do pré-sal. Na falta de um plano de jogo do Executivo que pudesse conciliar interesses antagônicos, o que se viu foi o conflito federativo aberto correndo solto no Congresso, sob olhares atônitos das lideranças do governo. Coisa de inimigo oculto, dirá Lula, contemplando o desastre.
Rogério Furquim Werneck é economista e professor da PUC-Rio.
Quarenta dias após o segundo turno, o presidente Lula ainda mostra irrefreável apego ao discurso mistificador. Permitiu-se agora um balanço peculiar da reforma tributária. "...já mandei duas propostas para o Congresso, a primeira em 2003, e algum inimigo oculto não permitiu que ela andasse..." Em 2007, "quando ela chegou ao Congresso, imaginei que seria aprovada no primeiro dia, por unanimidade, tal era a coesão em torno da política tributária. O que aconteceu? Nada. Porque o inimigo oculto se manifestou outra vez e não permitiu que acontecesse". (O GLOBO, 4/12/2010)
A tentação de atribuir desfechos desfavoráveis a atores absconsos é um velho cacoete de Brasília. Vem assombrando ocupantes do Alvorada há quase meio século, desde que Jânio Quadros imputou a "forças ocultas" o retumbante fracasso da cambalhota política que tentara dar com intempestiva renúncia.
A verdade é que a agenda da reforma tributária compõe um desafio de ação coletiva extraordinariamente complexo. Envolve um jogo de soma zero que, ao exacerbar os temores de perda de receita nos três níveis de governo, cria enormes resistências à aprovação de mudanças mais ousadas. E exige a abertura de negociações que podem facilmente desandar em tentativas de redistribuição radical do bolo tributário no Congresso.
Nunca é demais lembrar o que ocorreu em 2003. Em abril daquele ano, Lula atravessou a Praça dos Três Poderes, acompanhado de 27 governadores, para entregar ao Congresso propostas supostamente consensuais de reforma nas áreas previdenciária e tributária. Essa iniciativa espalhafatosa até redundou em avanços importantes na área previdenciária. Mas a reforma tributária não teve o mesmo sucesso. Logo se instalou na Câmara um ativo mercado persa, no qual se tentava remover qualquer resistência à proposta do governo com promessas de favores federais aos estados alegadamente prejudicados. Em poucas semanas, essa conta em aberto passou a totalizar cifras inviáveis. E as negociações descambaram para a disputa em campo aberto pelo bolo tributário. Tendo o projeto sido desfigurado na Câmara, o governo decidiu baixar a bola, abandonar pretensões mais ousadas e concentrar atenção na aprovação de mudanças menos controversas, de interesse mais imediato.
Em 2007-2008, o governo até conseguiu desenvolver uma proposta mais articulada de reforma, graças ao empenho de Bernard Appy, que sobreviveu à desmontagem da equipe de Antonio Palocci. A verdade, no entanto, é que, escaldado pelo susto de 2003, o governo jamais apostou para valer na tramitação dessa nova proposta no Congresso.
A perspectiva de folga fiscal trazida pela descoberta do pré-sal abriu ao país uma excelente oportunidade de romper o jogo de soma zero da reforma tributária. A apropriação dessa folga fiscal pelos três níveis de governo poderia ter sido engenhosamente acoplada à reforma tributária, de forma a mitigar resistências advindas de temores de perda de receita. Mas isso teria exigido visão estratégica e suprapartidária, bem diferente da perspectiva que pautou a formatação corporativista e eleitoreira que o governo acabou dando ao pré-sal.
O fato é que a oportunidade foi perdida. Como mostra a entrevista do presidente da Petrobrás no "Valor" de 6/12, boa parte do excedente potencial da exploração do pré-sal deverá ser dilapidado num faustoso programa de favorecimento à produção local de equipamentos para a indústria petrolífera. A folga fiscal vai ser muito menor do que poderia ter sido. E o pior é que o Planalto parece ter aprendido bem menos do que deveria com a experiência de 2003. Atiçado mais uma vez o vespeiro federativo, o governo perdeu completamente o controle da disputa no Congresso pelo butim dos recursos provenientes do pré-sal. Na falta de um plano de jogo do Executivo que pudesse conciliar interesses antagônicos, o que se viu foi o conflito federativo aberto correndo solto no Congresso, sob olhares atônitos das lideranças do governo. Coisa de inimigo oculto, dirá Lula, contemplando o desastre.
Rogério Furquim Werneck é economista e professor da PUC-Rio.
Nenhum comentário:
Postar um comentário