sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Balanço do governo Lula (1) :: Alberto Carlos Almeida

DEU NO VALOR ECONÔMICO

São Paulo - Há ainda dois artigos desta coluna até o fim do ano, o de hoje e o da antevéspera de Natal. Neles vou fazer um balanço não tradicional do governo Lula. Hoje proponho uma reflexão de qual tenha sido a principal inflexão de Lula em relação a Fernando Henrique Cardoso. Todos nós estamos cansados de saber que Lula deu continuidade à política econômica da era FHC. Nesse sentido, a campanha de 2002 foi inteiramente transparente, na famosa "Carta aos Brasileiros", acerca do que Lula faria a partir de 2003. Ele manteve a política de metas de inflação, o superávit primário (manteve e aumentou no início de seu primeiro governo) e o câmbio flutuante. FHC criou essa política, Lula manteve e Dilma tenderá também a mantê-la.

No sábado, Lula disse na imprensa que se limitou a fazer o óbvio na Presidência. Trata-se de uma afirmação verdadeira. Lula manteve o que funcionava e contou, sem nenhum demérito nisso, com uma enorme sorte. Aqueles que esperavam pelos erros ficaram a ver navios, os erros não vieram. Ou vieram, sim: foram tão óbvios como os acertos. Há algumas meias-previsões fáceis de ser feitas. Uma delas é que a cada seis meses vai eclodir um grande escândalo de corrupção, algum que tenha ou cenas chocantes, ou quantias exorbitantes, ou declarações desavergonhadas, ou uma mistura disso tudo.

Trata-se de uma meia-previsão porque não sabemos em que nível será o escândalo e qual governante atingirá. O mensalão se enquadra nesse critério de grande escândalo que ocorre a cada seis meses. No governo anterior aconteceram, também, grandes escândalos de corrupção. No governo Dilma eles também acontecerão.

Há algo que qualquer presidente tem que fazer, obrigatoriamente. A Presidência é a instituição última de arbitragem dos conflitos políticos. Todo e qualquer presidente da República, no Brasil e alhures, tem que exercer essa arbitragem. Fernando Henrique foi o árbitro último de todas as disputas internas de sua aliança: eleições de presidentes da Câmara e do Senado, conflitos federativos, o inesquecível duelo político e verbal entre ACM e Jáder Barbalho etc. Lula fez o mesmo no mensalão, na entrada triunfal pela porta da frente do PMDB em seu governo, na escolha e manutenção de Palocci à frente da política fiscal austera a quem Lula deve o sucesso de seu governo etc. Dilma já está fazendo e continuará a fazer o mesmo.

Lula, Fernando Henrique e Dilma foram e serão semelhantes, ao menos, nestas três coisas: política econômica, escândalos de corrupção e arbitragem de conflitos. Há, obviamente, diferenças de grau em cada um desses três aspectos. Todavia, ao menos no que tange a uma coisa extremamente relevante, Lula foi uma grande inflexão em relação a Fernando Henrique: ele transformou a Presidência em um órgão de comunicação com a sociedade. Nesse sentido, Lula foi um presidente extremamente americanizado.

Sim, uma das características mais importantes, senão a mais importante, da Presidência moderna americana é o papel de comunicador do presidente. Falar de Obama nesse quesito é covardia. Convém, todavia, lembrar de Ronald Reagan, o ator de cinema que continuou representando no cargo máximo do país. Clinton e seu charme, Bush filho e seu senso de oportunidade, JFK e seu enorme treinamento antes de cada aparição pública, FDR e a necessidade de esconder a paralisia das pernas. Em todos esses casos estamos falando de grandes comunicadores e de suas fortalezas (e fraquezas deliberadamente escondidas) com a finalidade de persuadir seus eleitores do acerto de suas decisões.

Nos Estados Unidos, o presidente fala regularmente à nação, seja por meio de entrevistas coletivas, seja em situações mais controladas. Todos se lembram de Bush filho falando ao público pelo megafone, em pé sobre os destroços do atentado de 11 de setembro de 2001. É possível que nos recordemos de inúmeras vezes que diferentes presidentes americanos se reúnem em eventos públicos cheios de simbolismo com suas tropas que operam em outros países.

Existe uma grande razão para que o presidente dos Estados Unidos se comunique de forma emblemática e regularmente com a população: trata-se de uma nação na qual os indivíduos se concebem, muito mais do que no Brasil, de maneira igualitária. Assim sendo, não há aprovação automática para o que o presidente faz. O presidente vai a público para dar argumentos àqueles que simpatizam consigo para defender o seu governo. A persuasão é parte do exercício democrático e igualitário. Aqueles que se consideram acima dos outros não precisam persuadir ninguém de nada. No passado, antes da democracia, eles apenas impunham suas políticas e azar de quem fosse contra.

Líderes que rejeitam a comunicação sistemática e profissional na democracia, pode ser que assim o façam porque avaliem erradamente que a população, uma vez reconhecendo a correção de determinadas ações, vai automaticamente aprová-las. Trata-se de um terrível engano.

A ascensão de Lula na política se deveu em grande medida a suas habilidades de comunicador. Não me venham com o argumento de que isso é nato porque não é. Algumas pessoas podem aprender mais e outras menos, mas todas aprendem a se comunicar bem. Lula aprendeu na prática da vida sindical. Lula teve, à frente de greves e manifestações, um longo e penoso treinamento nessa habilidade que lhe foi muito útil na Presidência da República. Sob esse aspecto é interessante analisar os debates presidenciais da eleição de 2010. Neles foi possível notar a falta de treino na comunicação de Dilma, Serra e Marina. Nenhum deles passou pela escola de comunicação de Lula.

A primeira eleição de Serra foi ganha de cima para baixo: primeiro é secretário de governo e depois disputa a eleição e vence. Não é a trajetória daqueles que começam, realmente, de baixo para cima, daqueles que não dependem do governo para ganhar votos, mas sim de sua habilidade de persuasão.

Lula, sendo alguém que vem de baixo, e não de uma elite já estabelecida, teve que contar com as palavras e o discurso para vencer. A experiência dele foi devidamente incorporada às suas práticas: no mesmo ritmo em que aprendia a se comunicar, passou a valorizar essa habilidade. Não são poucos os presidentes americanos que vêm da classe média. Precisaram da comunicação para alçar voo alto na política. Obama se enquadra nesse perfil. Já os líderes que vêm de famílias ricas nos Estados Unidos são submetidos ao ambiente de extrema mobilidade social e ideologia igualitária daquela sociedade. Assim, por isso, passam a valorizar a comunicação. A persuasão é fundamental para vencer.

Esqueçamos os detalhes dos discursos de Lula com seus argumentos precários, do ponto de vista da elite, e muitas vezes com palavras inadequadas (também do ponto de vista da elite tradicional brasileira). Em cada aparição pública Lula estava dando argumentos para seus eleitores defenderem o seu governo. Pensando assim, não importa ver este ou aquele discurso, analisar esta ou aquela palavra, mas, sim, entender o conjunto da obra: a cada discurso e evento emblemático, Lula estava tentando persuadir a sociedade a apoiá-lo. Uma das teclas em que o presidente bateu insistentemente foi a defesa dos pobres. Quando questionado sobre o que faria depois de deixar a Presidência, Lula disse que defenderia os pobres da África.

Analisando por que o Brasil não sofreu muito com a crise de 2008, Lula disse que foi porque os pobres não pararam de comprar. Existem muitos exemplos de pronunciamentos nessa direção.

A Presidência de Lula foi uma grande inflexão frente a Fernando Henrique no que diz respeito à comunicação com a sociedade. Lula americanizou a Presidência da República. Fez isso não porque tenha sido criado em uma sociedade de ideologia igualitária, mas porque veio de baixo e teve que contar com a comunicação para vencer na vida. A grande questão agora é saber se o que Lula fez ficará restrito à sua pessoa ou se tornará padrão na política brasileira. Dilma não tem os mesmos incentivos de seu mentor para se comunicar. O desafio é, portanto, institucionalizar a necessidade de se comunicar com o público.

A lição que Lula deixa, junto com os recentes presidentes americanos, é que é útil e apropriado fazer da Presidência, na prática, um órgão de comunicação e fazer do presidente o maior comunicador do Brasil. Os ministros e auxiliares existem (somente) para tocar o governo e fazer políticas públicas. O único que pode trazer o apoio da opinião pública, que é o apoio político necessário para bem governar, é o presidente.


Alberto Carlos Almeida, sociólogo e professor universitário, é autor de "A Cabeça do Brasileiro" e "O Dedo na Ferida: menos Imposto, mais Consumo".

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