Motoristas, motociclistas, ciclistas e pedestres movem-se possuídos por uma concepção ditatorial do espaço e seu uso
O atropelamento de um grupo grande de ciclistas por um motorista de carro, em Porto Alegre, é um desses casos que expõem a complexidade de problemas sociais relativos à nefasta articulação de urbanização patológica com democratização inconclusa. Muita coisa foi atropelada naquela manhã de sexta, na Rua José do Patrocínio, naquele atropelamento dos ciclistas que faziam uma manifestação em favor do uso da bicicleta no deslocamento urbano dos moradores.
Não se trata de um acidente nem de um acaso. De um lado, porque o atropelador já altercara com os ciclistas quanto ao uso da rua. De outro, porque, segundo o Ministério Público, tem ele um histórico de violações: “Possui três processos por ameaça e agressão física, além de multas de trânsito por excesso de velocidade, trânsito na calçada, na contramão, em marcha à ré e por conversão proibida”. O autor da violência é funcionário de banco, pessoa de classe média, supostamente esclarecida, consciente das violações. Os ciclistas têm contra si o fato de que não notificaram a autoridade competente quanto à demonstração que fariam para que recebessem a devida proteção e para que os demais usuários da via pública, com urgências diversas das suas e motivações próprias, não fossem eventualmente prejudicados.
A ocorrência justamente indica que as irracionalidades sociais não se limitam àquelas populações ainda pouco familiarizadas com o mundo urbano, cotidianamente surpreendidas e mesmo vitimadas por violações de regras que desconhecem e uso impróprio de espaços e lugares. Por diferentes motivos, de ambos os lados, os envolvidos entraram conscientemente no jogo de tensões relativas ao uso do espaço urbano.
Os ciclistas são militantes do movimento internacional Massa Crítica, que em muitos países procura despertar as consciências para a alternativa da bicicleta no transporte urbano. Querem humanizar o trânsito, arrancando os seres humanos de sua insalubre passividade física no deslocamento espacial. É um movimento de jovens. Portanto, um movimento de renovação das mentalidades na perspectiva das demandas próprias das novas gerações, cansadas dos abusos e conformismos da geração que, no último meio século, foi a dos diletos filhos da sociedade de consumo.
O automobilista impaciente e imprudente está do outro lado, o da geração do automóvel e de tudo de problemático que o automóvel, símbolo maior da sociedade de consumo, representa nos dias de hoje. Inúmeras ocorrências semelhantes, em diferentes lugares do Brasil, e mesmo em outros países, já mostraram que o automóvel se tornou um instrumento de afirmação violenta de direitos de seus motoristas, o panzer da blitzkrieg urbana, a arma de afirmação da identidade dos que, nessa modalidade de uso do carro, se revelam instrumentos de seu instrumento, forma extrema e exacerbada da alienação moderna, o homem convertido em coisa de suas coisas.
O atropelamento de um grupo grande de ciclistas por um motorista de carro, em Porto Alegre, é um desses casos que expõem a complexidade de problemas sociais relativos à nefasta articulação de urbanização patológica com democratização inconclusa. Muita coisa foi atropelada naquela manhã de sexta, na Rua José do Patrocínio, naquele atropelamento dos ciclistas que faziam uma manifestação em favor do uso da bicicleta no deslocamento urbano dos moradores.
Não se trata de um acidente nem de um acaso. De um lado, porque o atropelador já altercara com os ciclistas quanto ao uso da rua. De outro, porque, segundo o Ministério Público, tem ele um histórico de violações: “Possui três processos por ameaça e agressão física, além de multas de trânsito por excesso de velocidade, trânsito na calçada, na contramão, em marcha à ré e por conversão proibida”. O autor da violência é funcionário de banco, pessoa de classe média, supostamente esclarecida, consciente das violações. Os ciclistas têm contra si o fato de que não notificaram a autoridade competente quanto à demonstração que fariam para que recebessem a devida proteção e para que os demais usuários da via pública, com urgências diversas das suas e motivações próprias, não fossem eventualmente prejudicados.
A ocorrência justamente indica que as irracionalidades sociais não se limitam àquelas populações ainda pouco familiarizadas com o mundo urbano, cotidianamente surpreendidas e mesmo vitimadas por violações de regras que desconhecem e uso impróprio de espaços e lugares. Por diferentes motivos, de ambos os lados, os envolvidos entraram conscientemente no jogo de tensões relativas ao uso do espaço urbano.
Os ciclistas são militantes do movimento internacional Massa Crítica, que em muitos países procura despertar as consciências para a alternativa da bicicleta no transporte urbano. Querem humanizar o trânsito, arrancando os seres humanos de sua insalubre passividade física no deslocamento espacial. É um movimento de jovens. Portanto, um movimento de renovação das mentalidades na perspectiva das demandas próprias das novas gerações, cansadas dos abusos e conformismos da geração que, no último meio século, foi a dos diletos filhos da sociedade de consumo.
O automobilista impaciente e imprudente está do outro lado, o da geração do automóvel e de tudo de problemático que o automóvel, símbolo maior da sociedade de consumo, representa nos dias de hoje. Inúmeras ocorrências semelhantes, em diferentes lugares do Brasil, e mesmo em outros países, já mostraram que o automóvel se tornou um instrumento de afirmação violenta de direitos de seus motoristas, o panzer da blitzkrieg urbana, a arma de afirmação da identidade dos que, nessa modalidade de uso do carro, se revelam instrumentos de seu instrumento, forma extrema e exacerbada da alienação moderna, o homem convertido em coisa de suas coisas.
Alienação, também, porque muitos motoristas se imaginam pessoalmente possuídos da força de suas máquinas, supondo-se protegidos por elas quando transgridem e fogem, movidos pelo medo ou pela covardia. O caso indica, também, que hoje temos acesso a bens modernos, como o carro, ainda que movidos por uma mentalidade arcaica e antiurbana.
No cenário geral, o caso de Porto Alegre é indicativo da nossa persistente intolerância política com os movimentos sociais. Embora eles constituam a forma moderna e pacífica de anúncio e proposição das demandas sociais. Foi neles que a sociedade civil encontrou um democrático instrumento de reivindicação social e política. É verdade que não raro os movimentos de rua se apresentam como arrogante forma de peitar os circunstantes e os democraticamente indiferentes.
Criou-se com isso, sobretudo entre nós, uma cultura de absurdos, que se estende muito além do carro, nessa espécie de prerrogativa generalizada dos mais fortes contra os mais fracos. Os motoqueiros, tomados de ira contra os carros, fazem com os pedestres o que os automobilistas fazem contra eles. E mesmo os ciclistas se lixam para os pedestres, pondo-os em risco com seu trânsito desregrado. Nem por isso os pedestres são flores que se cheire: atravessam fora da faixa (até porque sabem que a faixa, no desrespeito geral, é mais perigosa do que a travessia arbitrária e imprudente). E não são raros os que preferem caminhar pelo leito da rua em vez de fazê-lo pela calçada, numa proclamação perigosa de que os pedestres têm direitos absolutos sobre o espaço público.
Em tudo, na verdade, uma mentalidade rústica, motoristas, motoqueiros, ciclistas e pedestres movendo-se como se estivessem cavalgando cavalos chucros, todos possuídos por uma concepção ditatorial do espaço e seu uso. Como se cada um tivesse o direito de inventar suas próprias regras de trânsito. São reiteradas as demonstrações de incompetência e insensibilidade para reconhecer o urbano como tecido da diversidade e da pluralidade, que deveria ser o lugar do encontro e não do desencontro.
José de Souza Martins, Professor Emérito da Universidade de São Paulo, é autor de A sociabilidade do homem simples (Contexto)
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS
No cenário geral, o caso de Porto Alegre é indicativo da nossa persistente intolerância política com os movimentos sociais. Embora eles constituam a forma moderna e pacífica de anúncio e proposição das demandas sociais. Foi neles que a sociedade civil encontrou um democrático instrumento de reivindicação social e política. É verdade que não raro os movimentos de rua se apresentam como arrogante forma de peitar os circunstantes e os democraticamente indiferentes.
Criou-se com isso, sobretudo entre nós, uma cultura de absurdos, que se estende muito além do carro, nessa espécie de prerrogativa generalizada dos mais fortes contra os mais fracos. Os motoqueiros, tomados de ira contra os carros, fazem com os pedestres o que os automobilistas fazem contra eles. E mesmo os ciclistas se lixam para os pedestres, pondo-os em risco com seu trânsito desregrado. Nem por isso os pedestres são flores que se cheire: atravessam fora da faixa (até porque sabem que a faixa, no desrespeito geral, é mais perigosa do que a travessia arbitrária e imprudente). E não são raros os que preferem caminhar pelo leito da rua em vez de fazê-lo pela calçada, numa proclamação perigosa de que os pedestres têm direitos absolutos sobre o espaço público.
Em tudo, na verdade, uma mentalidade rústica, motoristas, motoqueiros, ciclistas e pedestres movendo-se como se estivessem cavalgando cavalos chucros, todos possuídos por uma concepção ditatorial do espaço e seu uso. Como se cada um tivesse o direito de inventar suas próprias regras de trânsito. São reiteradas as demonstrações de incompetência e insensibilidade para reconhecer o urbano como tecido da diversidade e da pluralidade, que deveria ser o lugar do encontro e não do desencontro.
José de Souza Martins, Professor Emérito da Universidade de São Paulo, é autor de A sociabilidade do homem simples (Contexto)
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS
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