Nas últimas semanas, duas críticas distintas - embora igualmente desabonadoras - têm sido dirigidas à presidente Dilma Rousseff. A primeira afirma que a presidente refugou da faxina anticorrupção que teria ensaiado no nada republicano Ministério dos Transportes. Para esses críticos, o recuo evidenciaria claramente que a tentativa de faxina não era para valer e que a presidente teria feito apenas um jogo de cena, retomando o estilo acomodatício de seu antecessor e mentor. A limpeza teria parado tão logo se auferiram ganhos de reputação e tornou-se evidente a necessidade de preservar os demais aliados e seu próprio partido, igualmente mergulhados no lodaçal da corrupção. Em resumo, não haveria interesse da presidente em promover qualquer faxina, pois isto contrariaria suas próprias preferências.
A segunda crítica retira da presidente qualquer mérito no processo de limpeza efetuado no governo. Afinal, segundo esta percepção, Dilma Rousseff nada teria feito senão assistir passivamente a um processo acionado por outros - notadamente, a imprensa e as disputas intestinas da coalizão governista. Assim, Antonio Palocci teria caído a despeito da vontade da presidente e unicamente porque sua situação tornou-se insustentável com as denúncias da mídia e com sua própria falta de jeito na interlocução com o PMDB. Alfredo Nascimento também teria saído porque a cada dia novas falcatruas apareciam na imprensa, tornando impossível à presidente sustentá-lo, o mesmo valendo para todas as demissões no Dnit. Wagner Rossi apenas teria sido ejetado porque a sucessão de denúncias solaparam sua posição. No Ministério do Turismo, a Polícia Federal - e não a presidente - seria responsável pelo afastamento de funcionários supostamente corruptos. Em suma, mesmo que contrariada, Dilma teria tido de aceitar que a dinâmica do jogo político e das denúncias produzissem seus efeitos.
Voluntarismo não é virtude, mas sinal de ingenuidade
A ambas as críticas subjaz um suposto normativo: a conduta imperativa da presidente deveria ter sido o ativismo no combate aos corruptos. No primeiro caso, ao refugar da continuidade da faxina, Dilma teria deixado de fazer o que se espera de uma chefe de governo decente e verdadeiramente compromissada com a defesa da coisa pública. No segundo, ela teria feito cortesia com chapéu alheio, ostentando um mérito que não lhe pertence - pois as demissões ocorreriam com ou sem a sua intervenção. E, pior ainda, teria posado de saneadora da República quando, na verdade, era a responsável pela nomeação dos corruptos.
Presumindo como correta a suposição normativa subjacente às críticas, deve-se avaliar o que provavelmente teria ocorrido caso a opção da presidente tivesse sido dar-lhe consequência. Neste caso, ela teria optado pelo furioso ativismo moralizador e, consequentemente, expulsado a chicotadas os vendilhões do templo. Estupendo, não fosse o detalhe de que seria um bocado de presunção imaginar que tudo ficaria por isto mesmo, como se a Presidência da República desfrutasse de um poder incontrastado e as eleições de 2010 (nas quais elegeu-se um Congresso multipartidário bastante fragmentado) não quisessem dizer absolutamente nada. Noutras palavras, tais críticas compartilham da concepção politicamente ingênua (e, por isto mesmo, desastrosa) de que tudo não passa de uma questão de "vontade política". Tal modo de ver as coisas é o que o linguajar prosaico da política denomina como "voluntarismo", mas que podemos (numa imagem literariamente mais eloquente) denominar como "quixotismo".
Ora, é bem sabido que o quixotismo político traz consequências funestas, algo que não pode ser mudado por mais que se bradem vitupérios moralistas contra a indignidade dos políticos, dos partidos e dos governos (ou de "certos" políticos, partidos e governos). Isto apenas aumenta o ruído e ajuda o vulgo a desopilar o fígado e os publicistas que por ele são lidos (ou ouvidos) a cultivar sua audiência.
O freio na operação de faxina pode ser explicado singelamente pelo fato de não ser prudente em política comprar todas as brigas de uma vez. É preciso escolher os adversários, a ocasião e as frentes nas quais investir. Nalguns momentos é preciso recuar, aguardando oportunidade mais propícia e recompondo energias. Como já ensinou um político revolucionário, é por vezes necessário dar um passo atrás para que seja possível, depois, dar dois passos à frente. Caso contrário, o risco que se corre é o de por tudo a perder por açodamento e presunção, imaginando-se ter mais poder do que efetivamente se desfruta.
Quanto a permitir que as coisas aconteçam não por iniciativa própria, mas por graça das ações de outros, vale destacar: se a presidente de fato instrumentalizou esses eventos em seu favor, demonstrou grande inteligência política. Ou, por acaso, bons resultados só são valiosos quando obtidos à base de sangue, suor e lágrimas? Ademais, como se precisa preservar a coalizão (repleta de políticos pouco republicanos) para assegurar a governabilidade, nada melhor do que lhes deixar claro que as cabeças rolam não por iniciativa da presidente, mas porque as instituições de controle funcionam - e a própria chefe de governo precisa se precaver quanto a isto. Responsabilizar a imprensa, a Polícia Federal e as lutas internas pela moralização significa transferir os custos políticos da faxina que, não obstante, acontece.
Fica claro que o processo de combate à corrupção não pode depender da ação desabrida de um chefe de governo completamente desapegado de seu mandato e da condução bem sucedida de uma agenda política bem mais ampla do que apenas a luta contra a bandalheira - por mais importante que seja. Inviabilizar politicamente um governo é um preço alto demais a pagar no enquadramento dos corruptos - mesmo porque, tende a se revelar contraproducente. Ações vindas de fora revelam-se mais eficientes e eficazes, razão pela qual a sociedade como um todo (e a mídia, em particular) são os atores chave deste processo.
Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP
FONTE: VALOR ECONÔMICO
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