A flor de lótus nasce no pântano. Exibe beleza e força. Das águas lodosas desabrocham flores brancas, imaculadas, uma perfeição da natureza. A imagem da flor foi usada, faz bom tempo, neste espaço para expressar a crença de que no meio do caos há uma réstia de esperança. A frase era: "A política chegou ao fundo do poço em matéria de moral. Mas não morreu a esperança de nascer uma flor no pântano". Saulo Ramos, jurista e sábio, e também um incréu, pinçou a alegoria em seu livro Código da Vida para atribuí-la aos "puros, os poetas, os idealistas", não sem fazer votos para que "eles tenham razão" na pregação.
Pois bem, a política continua cercada de lama por todos os lados, mas são inegáveis as flores que nascem aqui e ali, sob os cuidados atentos de uma gente de fé que junta forças e motivação para deixar o conforto de sua casa e organizar uma Marcha Contra a Corrupção, dando-se as mãos, erguendo faixas, ecoando palavras de ordem, clamando por decência. As manifestações do dia 7 de setembro, em Brasília e em outras regiões, mostram que o Brasil está longe de ser um gigante adormecido em berço esplêndido. Fazia tempo que não se distinguiam, em rostos juvenis, as cores verde e amarela, traços da estética cívica que o Brasil tem gravados desde os tumultuados idos do impeachment de Collor.
Há uma chama iluminando parcela considerável da consciência social. Ou, para usar outra imagem, um rastilho de pólvora se infiltra em numerosos espaços, pronto para receber o fósforo da explosão. A escalada ética que se descortina neste instante é emoldurada, de um lado, pelo desenho da assepsia que a presidente Dilma Rousseff realiza em estruturas críticas da administração federal e, de outro, por atos corporativos como o da Câmara ao inocentar a deputada federal Jaqueline Roriz, flagrada em indecoroso gesto de receber dinheiro suspeito.
A mobilização social pela moralização de costumes e práticas na política ganha volume ao impulso das redes sociais, sendo este, aliás, um fenômeno que se amolda ao modo de pensar e agir das correntes da sociedade. O fato é que os milhões de internautas que usam cotidianamente as redes tecnológicas da comunicação - beirando 50 milhões de pessoas - configuram um poderoso núcleo irradiador de informações e visões e, como tal, funcionarão como pulmões a oxigenar o coração da opinião pública. Não há mais como deixá-los à margem do processo comunicacional brasileiro. Doravante deverão ser avaliados sob o prisma da articulação e da mobilização, sendo demonstração cabal de seu poderio a convocação da Marcha Contra a Corrupção, sob a égide exclusiva das teias sociais.
Ao lado do fator tecnológico, que confere ao Brasil posição de destaque no ranking da internet mundial, é oportuno atentar para a organicidade social. O País alcança grau elevado no que concerne à organização de grupos, núcleos, categorias profissionais, gêneros, raças e etnias. O IBGE acaba de catalogar 338 mil organizações não governamentais. Adicione-se o exército composto pelos batalhões informais para contabilizar cerca de meio milhão de entidades jogando fermento na massa nacional.
Voltemos às flores do pântano, para lembrar que sua proliferação se deve, também, ao denso composto organizacional aqui formado. É inegável que os últimos ciclos governamentais privilegiaram a articulação com movimentos da sociedade, que foram incentivados a tomar assento na mesa de políticas públicas e em foros de participação política. Reforço a essa estratégia foi proporcionado pelo universo político, na esteira de crises intermitentes que o consomem e que se apresentam ao crivo da opinião pública sob o desfile de denúncias de abusos, desvios, flagrantes de conchavos, prisões escandalosas, etc.
Nossa democracia representativa vive o clímax de sua crise crônica. Eventos negativos se sucedem. A escatologia da política pantanosa transparece em exibições midiáticas e, agora, frequenta a lupa de milhares de olheiros e analistas das redes, que não se furtam a expressões virulentas contra os atores flagrados com a boca na botija. Portanto, ante o refluxo e o descenso do poder centrífugo - o poder das instituições políticas - emerge, abrindo novas fronteiras, um poder centrípeto, que se movimenta a partir das margens sociais em direção ao centro. No espaço intermediário da pirâmide social - e essa é a observação a frisar - abrigam-se novos grupamentos médios, vindos de baixo, os quais começam a se iniciar nas artes e técnicas usadas pelas classes tradicionais. Essa faceta da composição social passa a gerar efeitos sobre o modo nacional de pensar. A dedução é que as marolas no meio da lagoa pantanosa se multiplicam, com possibilidade de deflagrar uma cadeia homogênea de pressões e interações, as quais, por sua vez, fazem o papel de filtro contra o lodo.
É interessante observar que o dicionário da política, antes restrito a meia dúzia de letrados, começa a ganhar locução aberta e irrestrita nas redes da internet. Conceitos como reforma política, sistema de voto, qualidade da representação, renovação e até posições individuais de atores políticos passam a ser acompanhados de maneira atenta. E essa corrente pode vir a alargar as ondas da reforma política. Com maior clareza sobre coisas como voto em lista, voto distrital, distritão, tais instrumentos poderão compor o debate imediato sobre essa reforma, principalmente quando lideranças, como Lula, se dispõem a colocar a temática na agenda nacional.
O fato auspicioso é que a consciência cívica dá sinais de alerta nestes tempos de intensa mudança de quadros, troca de ministros e de mutirões de mobilização, destinados a permanecer nas redes sociais. No dia 12 de outubro, a convocação pela via eletrônica sinalizará uma nova marcha, desta feita pela educação e contra a corrupção.
Não há por que deixar de crer - e ver - que resplandecem flores no pântano.
Jornalista, é professor titular da USP e consultor político e de comunicação
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO
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