O Brasil está melhor que os Estados Unidos, na qualidade de sua democracia. Afirmei algo absurdo? Não. A democracia com maior continuidade na história, a única que jamais suspendeu uma eleição nem conheceu um golpe de Estado, infelizmente vive hoje, a cada quatro anos, o pavor de que a barbárie triunfe. Ou como chamar uma linha política que, como fazem os dois principais aspirantes republicanos à Casa Branca, quer desestimular os jovens de estudar nas melhores universidades que existem? No Brasil, seria inimaginável Dilma - ou Serra - dizer alguma das enormidades em que a extrema-direita norte-americana acredita. (Mesmo assim, devemos tomar cuidado com os extremistas religiosos, que têm peso no Congresso para sua luta retrógrada).
Tentemos explicar esse fenômeno. Sustento que a estabilidade democrática depende de que a grande maioria de uma sociedade vote em partidos comprometidos com a democracia - não só com a forma eleitoral dela, mas também com os direitos humanos e com essa suma da ética política, que se resume em respeitar o outro. Só que essa condição não é tão simples assim. Sua aplicação traz resultados que surpreendem.
Numa democracia, primeiro, as questões polêmicas devem ser decididas em eleições livres. É óbvio. Segundo: no mundo moderno, se entendeu que é bom haver partidos. As tentativas de construir um regime democrático que dispense essas organizações - investindo na participação direta dos cidadãos - não deram certo, pelo menos até hoje. As democracias realmente existentes se organizam em partidos, que competem pelo poder.
Essa competição geralmente dá certo. Mesmo um partido que parece firme no poder não tem garantias de conservá-lo por muito tempo. Depois que o PSDB venceu em 1994, seu líder Sergio Mota falou num projeto de vinte anos no poder. Ficou oito. A alternância eleitoral existe na maior parte dos países democráticos - Alemanha, França, Itália, Espanha, Reino Unido, Estados Unidos.
Mas o que sugiro como condição adicional para a democracia é que os partidos ou coligações que reúnem a grande maioria dos votos tenham convicções democráticas. É importante eles assumirem certos valores, em seu programa e prática, que estabilizem a sociedade. O primeiro é o da liberdade de expressão, organização e voto. O segundo é um fator recente, componente essencial das novas democracias, as que cresceram no Atlântico Norte com a guerra contra o nazismo, e na América Latina desde a queda de suas ditaduras, nos anos 1980: o empenho em eliminar a miséria e reduzir a injustiça social e a pobreza. O primeiro conjunto de compromissos garante a manutenção da forma democrática. Mas daí decorre o segundo conjunto, que se refere ao conteúdo da democracia. Esta não existirá se as pessoas não tiverem educação para tomarem decisões autônomas, em vez de repetirem a palavra alheia como papagaios; se não contarem com um mínimo de renda graças ao trabalho para serem livres em suas escolhas, inclusive políticas; e se não contarem com uma formação cultural que amplie seus horizontes. Daí, podem chegar quer a uma visão cooperativa, solidária e socialista, quer a uma atitude liberal, empreendedora e competitiva. Essa escolha, ninguém fará por elas. Mas ambas estão dentro da esfera democrática.
Ora, como fica o mapa mundi disso tudo? O Brasil se sai bem. Nas eleições presidenciais de 2010, votamos esmagadoramente em candidatos do campo democrático. Nenhum deles liquidaria as liberdades. Todos as ampliariam. Evidentemente, cada um o faria a seu modo, mas está errado dizer que algum deles poria em risco a democracia. O mesmo podemos afirmar quanto à Alemanha e ao Reino Unido. Já no tocante à Itália, não. O polo político de direita, representado por Berlusconi, tem constituído constante ameaça ao Estado de Direito naquele país. Na França, as políticas do presidente Sarkozy, copiando as medidas xenófobas da extrema-direita, afetam negativamente seu compromisso com a democracia.
Mas o caso mais grave é o dos Estados Unidos. Desde que os republicanos se tornaram reféns de extremistas, uma vitória de seu partido representa um pesadelo para a democracia. Basta ver o desastre que foi a administração de Bush 2.0. Deu presentes, por sinal desnecessários, aos mais ricos. Iniciou duas guerras. Construiu déficits cada vez maiores. Desregulou as finanças. Tecnicamente, foi um governo ruim, mas no plano dos valores foi ainda pior. Guantánamo é seu emblema.
Estamos melhor que os Estados Unidos? Neste plano, sim. Na pujança da economia, não. Mas a forma pela qual um povo concebe seu futuro tem muito a ver com os valores que se debatem na praça pública. Não espanta que o Brasil esteja se dando bem nas pesquisas sobre a felicidade. Na medida em que a política concorra para isso, nosso país pode ter razoável segurança de que nenhuma de suas principais forças políticas ameaça as liberdades básicas, nem proporá um recuo nos projetos sociais desenvolvidos neste novo milênio.
Esta é uma grande mudança para o país, em face do que vivemos até 1994 em escala nacional e, no Estado e na cidade de São Paulo, até que o malufismo deixou de ser protagonista. As últimas eleições em que a direita que apoiou a ditadura se mostrou competitiva, chegando ao segundo turno, foram em 1998, para o governo do Estado, e em 2000, para a prefeitura da capital. Assim, desde 1994 ela não chega à reta final para a Presidência, desde 2002 para o governo do Estado mais populoso e desde 2004 para a prefeitura da maior cidade. Hoje, nossos principais antagonistas políticos têm credenciais democráticas.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
FONTE: VALOR ECONÔMICO
Nenhum comentário:
Postar um comentário