Pelo que disse e pelo que dispensa explicação, o incansável ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva deve estar vivendo seu momento particular de Nero, e se sente apto a assumir, na História do Brasil, o lugar que lhe parece reservado no segundo capítulo do mensalão, a ser produzido pela respectiva comissão parlamentar de inquérito aprovada na Câmara e no Senado com a segunda intenção de atear fogo ao circo por falta de melhor.
Os escassos pessimistas sobreviventes (desde a volta à legalidade) saboreiam a expectativa de juízo final que se esboça no horizonte como o definitivo teste de carga da atual versão da democracia à brasileira. Da operação se incumbirá pessoalmente o próprio Lula na condição de extra do governo Dilma Rousseff. Na função de Nero, Lula tacará fogo no que resta da ficção que mal se sustenta nas pernas da primeira versão do presidencialismo de coalizão, sem lenço e sem documento.
O material à disposição da CPI do Cachoeira, cujo interesse favorece os dois lados em confronto, banca um jogo de altas apostas. O ex-presidente volta ao destaque que, a seu ver, devia ter ocorrido no curso do mensalão propriamente dito: o primeiro mandato ficou comprometido como recurso operacional de caixa 2, enquanto a presidente Dilma soma pontos e o deixa para trás nas pesquisas de opinião pública: já tem 77 por cento de aprovação pessoal e seu governo ficou nos 52 por cento de aprovação. Há, politicamente, mais do que parece na diferença.
A diferença entre a presidente e o seu governo, na opinião geral, ajusta-se como uma luva no débito do seu antecessor: o eleitor separa o que é da presidente e o que não passa de conversa fiada de quem quer apenas aproveitar a oportunidade de encurtar o tempo de espera do terceiro mandato. Lula quer tirar o atraso das três derrotas inesquecíveis que antecederam os dois mandatos também inesquecíveis, também por falta de obras deixadas pelo caminho.
Se a CPI não romper as conveniências acumuladas, pode ser inevitável a segunda personalidade de Lula recorrer ao expediente com que Nero, para quebrar o tédio da decadência do império, incendiou Roma e debitou a culpa na conta dos cristãos. E, enquanto o fogo fazia a sua parte, Nero (que não dependia de eleição), incendiou Roma pelas razões que dispensam até interpretações científicas. Pediu uma lira e deu um recital cujo programa, infelizmente, não foi resgatado nos meios de comunicação ainda precários daquele tempo.
A diferença de personagens e de tempo, entre Nero e Lula, não pesa na balança em favor de um e prejuízo de outro. Um tocava a lira e o outro nem chega a sanfoneiro. Entre os dois, o que poderia ser avaliado é o gosto de ver o circo pegar fogo. No caso de Nero, com as arquibancadas cheias de cristão e portões fechados. E, no de Lula, incinerar as variedades de social-democratas que estão em extinção por conta própria.
Ninguém sabe o suficiente sobre a receita das altas apostas que aguardam a oportunidade gentilmente cedida à CPI, que se insinua como serpente de versão cinematográfica. Tem dinâmica própria e pode ser também um curso de inverno sobre golpismo, para parlamentares de primeiro man dato. O mensalão não ficará de fora e vai custar mais caro do que vale, pois sempre rende alguma coisa no país dos juros altos.
Cuidar do passado como se fosse do futuro e, deste, como se já estivesse arquivado, é desrespeito à História. Lula é anacrônico em mais de um aspecto, e não quer resolver o passado, mas descarrilar o presente e confundir as aparências. Há no ar mais do que o Rafale, mas ninguém localiza. Lula saiu da moita desconfortável e se assanhou com a hipótese de uma CPI desviar as atenções da cachoeira de escândalos, e atrair mais eleitores do que turistas.
FONTE: JORNAL DO BRASIL
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