Impasse na Itália pode resultar em outra ‘deflação da política’
Há cerca de um ano, a Itália iniciou uma série de experimentos. Pela ordem: é dirigida, desde 2011, por um "governo técnico", fora das rotinas políticas habituais; está sob o choque da renúncia do Papa; acaba de realizar eleições nas quais o vencedor - a centro-esquerda - é o grande derrotado, Berlusconi reemerge redivivo e um bufão - Beppe Grillo - lidera um movimento contra tudo e todos e conquista a maior fatia do eleitorado.
Em dezembro de 2011, no que parecia ser o fim de Silvio Berlusconi, o presidente Giorgio Napolitano o demitiu e nomeou como chefe de governo o economista Mario Monti. A dignidade de Napolitano e o caráter "técnico" e "apartidário" de Monti apareceram como um bálsamo, diante da ruína financeira, política e moral do berlusconismo. Poucos dias depois, na abertura da temporada do Scala de Milão, em magnífica apresentação do Don Giovanni, de Mozart, a orquestra abriu os trabalhos com uma execução impecável do hino da Itália. No antigo camarote real, Napolitano e Monti, juntos, pareciam materializar as palavras de abertura do hino: "Fratelli d’Italia, L’Italia s’è desta"(Irmãos da Itália, a Itália despertou). Ao fim do último ato, o fantasma do Comendador, que retorna para enviar Don Giovanni ao inferno, foi encenado no próprio camarote real. Houve quem visse na encenação da voz que desceu do camarote em direção ao palco, e dali ao inferno, uma analogia com o castigo que Napolitano e Monti dariam à libertinagem política de Berlusconi. Vida que segue, a Itália viveu 2012 sob o signo da deflação da política. O programa de Monti impôs ao país a associação contumaz entre cortes de despesas públicas e aumento de impostos.
Monti não veio para risos e afagos. Tanto o Popolo Della Libertà, de Berlusconi, como o Partido Democrático (filho do Partido Democrático de Esquerda e neto do velho Partido Comunista Italiano), de Pier Luigi Bersani, além de outras legendas centristas, perfilaram-se no apoio a ele. A Itália parecia ter conseguido façanha impossível na Grécia: "governo técnico" - isto é, não derivado do que os italianos chamam de "eleições políticas" - com vasto apoio parlamentar. Por pouco tempo. O próprio Monti declarou que sairia em um ano. Alem do que, e impossível manter uma coalizão de governo sustentada por um programa no qual boas notícias estão ausentes, por razões de doutrina, de empatia insuficiente com o gênero humano e até de natureza prática. A centro-esquerda ficou imobilizada pela tensão entre duas orientações de fácil compatibilização retórica, mas escassa combinação prática: o princípio da severidade fiscal, em uma Itália arruinada pela especulação desenfreada, e a defesa de medidas de retomada do crescimento e fortalecimento do Estado Social. O partido passou, ainda, por duras primárias, vencidas por Bersani - que foi desafiado por uma liderança emergente, o prefeito de Florença Matteo Renzi, defensor de teses abraçadas também pelo movimento de Beppe Grillo. Entre elas, a abolição do Senado, a redução do subsídio aos partidos, redução do salário e do número de deputados, entre várias palatáveis aos mais jovens. Não é absurdo supor que essa gente tenha engrossado as hostes de Grillo.
Já Berlusconi, durante o consulado montiano, manteve o apoio parlamentar ao governo, foi alvo de novas denúncias e colecionou quantidade inacreditável de frases diante das quais alguém minimamente razoável diria: "Este sujeito está morto". Mas o notável em Berlusconi é sua capacidade de crescer eleitoralmente com a ostensão do incorreto: em pleno Dia da Memória (27/1), que homenageia os italianos deportados para os campos de extermínio nazistas, ele não apenas dormiu durante os discursos, mas, ao sair, disse que Mussolini fez também "bone cose" (coisas boas). O segredo é simples: imensa gente pensa como ele. Sua insistência em sustentar o insustentável decorre da existência desse mercado eleitoral ínfero, do qual é acionista majoritário, como político e dono de redes de TV. O término do consulado de Monti acabou por destruir algumas crenças: a de que a centro-esquerda seria recompensada por uma vitória natural e a de que Berlusconi estava morto. No lugar disto, o que se leu na imprensa italiana foi a frase brutal de Beppe Grillo, dirigida a Bersani, após a eleição: "Sei morto" (Estás morto). Outra crença dizimada foi a da possível substância eleitoral de Monti, surrado nas urnas. Somados, Monti e Bersani não fazem governo e tudo ruiu - não apenas pela resiliência de Berlusconi, mas pelo sucesso do Movimento Cinco Estrelas (M5S), de Grillo.
As "cinco estrelas" são: água, ambiente, transporte, conectividade e desenvolvimento. Contudo, o que caracteriza o movimento é a aversão à política tradicional, a intenção de "mandar todos à casa" e eliminar a oligarquização do sistema. Uma cultura política que se crê "antipolítica". Há anos o movimento ronda a Itália, a recolher náufragos cívicos, gente tanto da direita, como da esquerda e de lugar algum. Encontrou o terreno fértil do desencanto, em grande medida preparado pela timidez da centro-esquerda. O sucesso excedeu expectativas: foi o mais votado, individualmente, para a Câmara, com 25,55%, seguidos do PD com 25,42% e do PDL, de Berlusconi, com cerca de 21%. A vitória lá acabou nas mãos de Bersani, já que sua coalizão totalizou 29,55% dos votos, meio ponto a mais do que a de Berlusconi. Vitória macérrima, mas a lei eleitoral garante ao partido mais votado um prêmio de maioria de 55% das cadeiras - uma lei, feita sob Berlusconi, conhecida na Itália sob a alcunha de "la porcata" (a porcaria). Só que no Senado Bersani obteve maioria relativa de 120 cadeiras. E é preciso controlá-lo para obtenção de "fiducia" e condições de governo. Aliar-se com os senadores de Berlusconi? Há quem defenda isso no PD, como Massimo D’Alema, mas seria desastroso. Com Grillo? Ele elegeu 53 senadores, mas não quer conversa, e sim o governo para si, sem compromissos. Tal é o drama da configuração do próximo governo, cenário que não exclui a realização de novas eleições, ou um novo "governo técnico", novo ciclo de deflação da política.
A colheita eleitoral do M5S traz-lhe desafios. A política líquida de Grillo agora tem a forma de um movimento gigantesco incrustado no sistema institucional italiano. É o mais bem sucedido movimento europeu de crítica da política. Resta saber se a maldição de Robert Michels, que dizia que grandes movimentos, sindicatos e partidos exigem comando oligárquico para durar, desta vez não se cumprirá. Por ora, reina a emergência de "gente comum", escolhida pela via da "conectividade", para compor a lista do movimento. Mas o primeiro sinal não foi auspicioso: escolheram como líder de bancada a neo-deputada Roberta Lombardi conhecida por ter dito que, antes de "degenerar", o fascismo tinha um "altíssimo sentido de Estado".
E o ex-Papa nisso tudo? Há controvérsia a respeito das razões da renúncia, mas a elucidação parece vir do próprio. Trata-se do tema da falibilidade. Não a papal, já arranhada por Pio IX, que se dizia infalível, porém falido, mas da própria falibilidade de Deus. Já quando esteve em Auschwitz, Bento XVI indagara a respeito do que fizera Deus durante o Holocausto. Nos últimos dias de papado, confessou que, diante da proliferação de hábitos pouco recomendáveis na Igreja, por vezes tinha a impressão que o "Senhor dormia". Do ponto de vista teológico, a proposição é impactante e corajosa. Ratzinger saiu de cena motivado, decerto, pela decrepitude de seu corpo físico, mas, sobretudo, pela suspeita de dissolução do corpo místico ao qual se vincula; sai afetado por uma crise teológica pessoal terrível, não de todo desprovida de beleza. A impressão que se tem é a de que a Igreja teria feito com Deus aquilo que os políticos estão a fazer com a democracia.
Renato Lessa é professor titular de Teoria Política da UFF, investigador associado do Instituto de Ciências Sociais e pesquisador visitante do Centro Internazionale Di Studi Primo Levi, em Torino.
Fonte: O Estado de S. Paulo / Aliás
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