Foi o Supremo que armou a confusão ao permitir o tráfico do tempo de TV e recursos do fundo partidário para o nascente PSD
Hoje o leitor me dará licença para falar do aniversário de Brasília antes de abordar as questões correntes na política nacional. Depois dos 50 anos, a cidade parece estar se livrando da implicância nacional. Vai se dissipando a velha confusão entre a cidade real e a Esplanada do poder, fonte do bem e do mal. O mal, sempre mais lembrado, é cometido pelos que vêm aqui representando todos os Brasis. Mas, por décadas, serviu para a satanização de Brasília. Passados 50 anos, vai se impondo a compreensão de que aqui vivem pessoas que sonham e produzem (bens, cultura e conhecimento), que a cidade plantada no cerrado é uma vitória da ousadia sobre a inércia, que sua singularidade urbana, seus monumentos e sua qualidade de vida são frutos da civilização brasileira, sonho que vem da Independência.
Em dia de licença, que a literatura também prevaleça sobre outros discursos. Escolhi a poesia e a prosa de duas mulheres que escreveram sobre a cidade, ao conhecê-la nos primeiros tempos, com força e beleza. . . A primeira é Sophia Mello Breyner Andresen (1919-2004), hoje um dos maiores nomes da moderna poesia portuguesa. Amante do Brasil, onde teve muitos amigos na literatura, como João Cabral de Melo Neto, Murilo Mendes, Jorge Amado, José Sarney e Manuel Bandeira, entre outros, ela fez com Murilo uma viagem de carro, do Rio a Brasília, em 1966. Na volta, escreveu o poema que se segue:
“Brasília, desenhada por Lúcio Costa, Niemeyer e Pitágoras
Lógica e lírica, grega e brasileira, ecumênica,
Propondo aos homens de todas as raças a essência universal das formas justas.
Brasília despojada e lunar como a alma de um poeta muito jovem.
Nítida como Babilônia. Esguia como um fuste de palmeira.
Sobre a lisa página do planalto, a arquitectura escreveu a sua própria paisagem
O Brasil emergiu do barroco e encontrou o seu número.
No centro do reino de Ártemis — deusa da natureza inviolada —
No extremo da caminhada dos Candangos.
No extremo da nostalgia dos Candangos,
Athena ergueu sua cidade de cimento e vidro,
Athena ergueu sua cidade, ordenada e clara como um pensamento.
E há nos arranha-céus uma finura delicada de coqueiro”.
A outra é nossa Clarice Lispector (1920-1977), que também falou de Brasília com sua prosa insólita e inquietante. Depois da primeira visita à cidade, em 1964, ela escreveu “Nos primeiros começos de Brasília”, em que diz: “Brasília é construída na linha do horizonte. Brasília é artificial. Tão artificial como devia ter sido o mundo quando foi criado. Quando o mundo foi criado, foi preciso criar um homem especialmente para aquele mundo. Nós fomos todos deformados pela adaptação à liberdade de Deus. Não sabemos como seríamos se tivéssemos sido criados primeiro, e o mundo depois, deformado às nossas necessidades. Brasília ainda não tem o homem de Brasília”.
Hoje, o homem (e a mulher) de Brasília talvez já existe. Clarice voltou em 1974, em plena ditadura. Sentiu-se “como se um gigantesco olho verde me olhasse implacável”. Depois de confessar espantos e encantos ela conclui: “Vou agora escrever uma coisa da maior importância: Brasília é o fracasso do mais espetacular sucesso do mundo. Brasília é uma estrela espatifada. Estou abismada. É linda e é nua. É um futuro que aconteceu no passado. Eterna como uma pedra. A luz de Brasília me cega. Fora isso, Viva Brasília”. Viva.
Distorções
Sob protestos e ranger de dentes, a Câmara concluirá a votação do projeto que põe ordem nas migrações partidárias. Haverá recursos ao Supremo. Mas foi o Supremo que armou a confusão ao permitir o tráfico de tempo de TV e recursos do fundo partidário para o nascente PSD. Agora, duas inverdades foram ditas à exaustão sobre o assunto, por cálculo e desinformação. Uma, a de que o projeto limita a criação de partidos. Ora, a porteira continua aberta para quem quiser ampliar ainda mais o quadro partidário. Ainda que na hora errada, o projeto corrige o STF, evitando a burla à vontade do eleitor. Pois é o que acontece quando o deputado migrante leva consigo o tempo e os recursos do fundo partidário obtidos por seu partido original nas urnas. Uma névoa também foi lançada pela legião de políticos solidários a Marina Silva, apontando-a como alvo. Ora, Marina e os que estão criando a Rede já disseram que não pretendem pescar adesões em partidos que desprezam, tanto que estão criando outro. O partido que tem um planos, de expansão via adesões é o Mobilização Democrática, surgido da fusão PPS-PMN, que apoiará Eduardo Campos. Nasceu com 17, mas pretende chegar aos 35 deputados.
Pendências
O Congresso precisa sair logo da política dos políticos para decidir sobre duas questões de interesse geral: a regulamentação dos novos direitos dos empregados domésticos, para sanar as incertezas vigentes no mercado, e a nova lei antidrogas. Milhões de famílias esperam que ela obrigue o Estado a tratar os dependentes e boa parte delas torce pela aprovação da internação compulsória.
Fonte: Correio Braziliense
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