Uma evidência da centralidade que o Supremo Tribunal Federal vem assumindo na vida republicana brasileira está na própria agenda do país. Não há semana em que um assunto de grande relevância não esteja sendo decidido pelo Supremo. Nos próximos dias, teremos ali pelo menos duas pautas importantes: o exame e depois o julgamento dos embargos declaratórios dos réus ao julgamento da Ação Penal 470, vulgo mensalão, e a apreciação, pelo plenário, da liminar do ministro Gilmar Mendes que sustou a tramitação do projeto de lei que disciplina as migrações partidárias.
Aos poucos, o meio jurídico começa a discutir esse desequilíbrio de poder. O ex-vice-presidente Marco Maciel (DEM), estudioso do direito e dos sistemas políticos, gosta de dizer que os poderes precisam ser independentes e também equipotentes. Hoje, o pêndulo está inclinado a favor do Supremo.
Para o professor de direito da USP Alamiro Veludo, a fricção entre Congresso e STF, que chegou a um ponto crítico na semana passada, está ligada ao protagonismo crescente da corte, num ativismo que "muitas vezes confunde o discurso jurídico com o discurso político". Para ele, a escalada começou no final de 2011, quando o Supremo decidiu que a Lei da Ficha Limpa valeria imediatamente, tornando inelegíveis os candidatos condenados por órgãos colegiados até mesmo por crimes cometidos no passado, antes da aprovação da norma pelo Congresso. "Quando toma uma decisão como esta, o tribunal abalroa alguns princípios jurídicos em nome de uma razão política, por mais meritória que seja. No subtexto, está dizendo que, se o povo tem discernimento limitado para escolher seus representantes, a Justiça imporá seu crivo seletivo. Isso é de um paternalismo brutal e atrita com o direito constitucional de votar e ser votado", argumenta ele.
O Congresso, diz ele, muito contribuiu para a criação desse ambiente, quer seja produzindo leis com baixa qualidade técnica exigindo a intervenção da Corte, quer seja com o hábito de alguns de seus integrantes de recorrer frequentemente a ela, muitas vezes pela mera razão de terem sido derrotados na disputa parlamentar. Agora mesmo, 10 senadores foram ao Supremo levar apoio ao ministro Gilmar e a sua liminar, reforçando, na prática, a subordinação do poder que integram.
Os presidentes da Câmara e do Senado, neste episódio, agiram com firmeza em defesa das prerrogativas do Legislativo, mas com a necessária habilidade para conter o conflito. Poderiam ter recorrido diretamente ao presidente da Corte, mas optaram por dialogar com o próprio ministro Gilmar, que agora poderá submeter sua liminar ao plenário, por iniciativa própria. Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN) e Renan Calheiros (PMDB-AL) esperam que ele faça isso logo. Não houve quem visse na liminar uma reação à aprovação de admissibilidade, pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), da Emenda 33, propondo a limitação de certos poderes do Supremo. Foi o ensaio de um erro, pois ela estava longe de ser apreciada e votada. Já a liminar bloqueou o direito de deliberar dos senadores. Por isso, o professor Virgilio Afonso da Silva, também da USP, avalia que a intervenção do ministro foi muito mais alarmante que o desatino da CCJ.
Mensalão: novo round
A apresentação dos embargos declaratórios dos réus ao julgamento da Ação Penal 470, vulgo mensalão, suscitou muita falação e pouca explicação. A declaração do presidente do STF, Joaquim Barbosa, de que eles não têm o poder de alterar condenações é correta. Mas, se eles não servissem para nada, não existiriam. O que eles podem afetar é a dosimetria das penas, caso convençam a Corte de que, em algum caso, tenha havido "obscuridade, omissão ou contradição", diz o professor Alamiro Veludo.
Mais adiante, os embargos infringentes, caso o tribunal decida que são aceitáveis, poderão levar a um novo julgamento dos pontos em que o réu obteve pelo menos quatro votos pela absolvição. É o caso da condenação do deputado João Paulo Cunha (PT-SP) por lavagem de dinheiro e do ex-ministro da Casa Civil José Dirceu (PT) por formação de quadrilha.
Boa parte dos embargos declaratórios fizeram alegações inadequadas, como o de Marcos Valério, que pediu a anulação de todo o acórdão. É remota a possibilidade de acolhimento do pedido da defesa de Dirceu para que o ministro Barbosa deixe a relatoria. Mas o conjunto aponta uma boa coleção de "obscuridades, omissões e contradições" que devem ser examinadas, contando agora com a participação do ministro Teori Zavascki, que não atuou no julgamento.
Um exemplo é a contestação de Dirceu à pena que lhe foi imposta por corrupção ativa em relação a Roberto Jefferson, a partir do momento em que este assumiu a Presidência do PTB, com a morte de José Carlos Martinez. Na fase da dosimetria, os ministros perguntaram quando foi que ele morreu. O ministro Joaquim Barbosa assegurou que foi em dezembro de 2003. Ele morreu, de fato, em 4 de outubro, quando vigia a lei antiga sobre corrupção, cujas penas eram de 2 a 8 anos. O erro sobre a data fez com que Dirceu fosse condenado, neste caso, com base na lei nova, a 10.763/2003, aprovada em 12 de novembro, após a morte de Martinez, cujas penas variam de 2 a 12 anos.
Outro exemplo: a contradição apontada por João Paulo Cunha em sua condenação por lavagem de dinheiro por ter recebido R$ 50 mil do valerioduto. Ele diz ter pedido o dinheiro ao PT para realizar pesquisas. Para o tribunal, foi propina, e o recebimento através da própria mulher, lavagem de dinheiro. Já o ex-deputado José Borba, nas mesmas condições, não foi condenado.
Segundo Barbosa, os embargos começam a ser julgados em duas semanas. Novamente, o STF estará no centro da cena pública, podendo até roubar a luz da campanha eleitoral antecipada.
Fonte: Correio Braziliense
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