Ratzinger vestia Prada; Bergoglio nem pensar
O Natal é uma ocasião de pensar nos limites do Estado democrático, isto é, leigo. Quando meditamos sobre os "valores natalinos", que não têm a ver com o comércio ou com encontros forçados na firma ou na família, as questões saem da esfera do poder político. Entram valores pessoais, éticos, religiosos. O Estado não pode obrigar você a amar os outros, a se despojar, nem mesmo a ser ético.
A Igreja teve três papas notáveis em sequência: João XXIII, que rompeu com a ideia de papa príncipe, para atualizar o ensinamento religioso e revigorar a ideia de Bem; Paulo VI, político, que consolidou num mundo hostil muito do que o antecessor, mais profeta, anunciara; e João Paulo I, que morreu em circunstâncias suspeitas. Depois deles, o longevo papa polonês reativou o conteúdo passado, enfeitando-o com a mídia mais moderna. Tudo muda com o papa argentino. Bergoglio era jesuíta. Ora, o termo "jesuíta" é tão pejorativo, para muitos, quanto "maquiavélico". Para manter o poder neste mundo, esmagando protestantes, muçulmanos ou comunistas, jesuítas aceitavam que o fim justificasse os meios. Mas Bergoglio, ao que consta depois que nosso cardeal paulista o exortou a "não esquecer os pobres", adotou um nome oposto à sua ordem, o de São Francisco: o santo menos empenhado no êxito mundano. A pureza da criança, o irmão Sol e a irmã Lua, tudo isso descarta a preocupação com pompas e potestades deste mundo. Ratzinger vestia Prada. Francisco mora num lugar modesto. A diferença é gritante.
Dilma Rousseff tentou o apoio do papa aos projetos de inclusão social do governo brasileiro. Cinquenta anos depois do Concílio Vaticano II, é claro que um papa de coração bom quer o fim da miséria e da exclusão social. Vacinas, saúde, educação, tudo isso pode ter seu apoio. Mas acaba aí a convergência da Igreja com os poderes. Ninguém imagine o papa entusiasmado com carnês da casa Bahia! O problema, para Francisco, é a miséria espiritual. Ora, como mostram vários analistas, como José Roberto de Toledo e Alberto Carlos Almeida, eleições hoje se decidem no bolso. Aqui, o crédito ao consumidor determina o crédito - ou confiança - que ele dá ao governo. Nossa política se tornou, em parte, função do consumismo. Por isso, precisamos tanto dos "made in China".
Onde entra a religião? Na constatação de um vazio profundo no cerne da modernidade. OK, no passado esse vazio era preenchido à força, com conteúdos empurrados goela abaixo de uma população não educada e supersticiosa. Mas o consumismo e a ganância atuais acentuam o vazio. Esse é um círculo vicioso. Quanto mais vazio você sente, mais consome - dinheiro, sexo, games. Para usar o termo do filósofo Pascal, você se aturde. Veste o vazio com um stress consumista que se autoalimenta. Os partidos até querem acabar com a fome; mas o que têm a dizer sobre a carência de sentido?
Vejamos os diálogos dos últimos papas com quem não é católico. Bento XVI cometeu a gafe de citar um teólogo medieval que demonizava os muçulmanos. João Paulo II acusou o budismo de ser uma "religião ateia", o que aliás é certo, pois Buda não foi Deus: sua meta é um aprimoramento ao alcance de todos. Já Francisco falou bem dos ateus, talvez o primeiro papa a respeitá-los como sujeitos éticos. Uma religião ateia como o budismo, esse paradoxo aos olhos cristãos, tem aumentado de fiéis estes anos, promovendo o que Colin Campbell chamou "a orientalização do Ocidente": no fundo, uma busca de sentido.
Tudo isso abre orientes novos. Daí, o que pensar estes dias de Natal? Que há valores que não são os do Estado ou da política, mas que podem ser harmônicos com os da democracia e dos direitos humanos; mais até: que podem ir além deles, se derem conteúdo ético ao que, para o Estado, é apenas lei. É bom que o Estado se limite a ver se eu cumpro a lei, não perguntando por quê; pois, se ele inquirir meus motivos, se transformará em inquisição. Mas é bom que a religião exija mais.
É bom que para pessoas de fé a expressão "minha casa, minha vida" seja, não errada, mas insuficiente. Meus bens não são minha vida! Até porque, pela primeira vez na história do mundo, é viável economicamente extinguir a miséria e, depois, a pobreza; as gerações que hoje dividem o planeta são as primeiras a viver para além da carência e da necessidade. Podem desenhar o novo, e fazê-lo com base em valores éticos. Estas questões ultrapassam a política e apontam, não só para a ética, como para a felicidade. Você é dono dos seus bens ou escravo deles? Eis um tema bom para meditar na passagem de ano.
Vou contar uma história real. Em 1980 um jovem americano ganhou o prêmio Chopin e foi estudar piano na Polônia. Quando ensaiou, no apartamento alugado, o "Concerto para o fim dos tempos", de Boulez, o senhorio entrou transtornado no seu quarto: O que o senhor está tocando? Essa música não existe! Eu a ouvi uma única vez, faz quarenta anos, no campo de concentração nazista, e o autor, a composição devem ter desaparecido, tragados pela guerra.
Era verdade. Esse concerto é provavelmente a única grande peça musical que estreou num campo de concentração. Agora, imaginem o sentimento de um homem que ouviu isso aos vinte anos, e nunca mais; e na velhice reescuta uma música da qual já não tinha memória. Imagine o leitor algo precioso que viveu muito tempo atrás e um dia volta, não como a namorada ou o álbum marcados pelo tempo, mas intacto. Não é casual que Boulez seja católico: pois esse episódio real diz a experiência da ressurreição, quando tudo ressurge perfeito, sem falha.
Por isso, Boulez dava mais importância ao espírito do que à guerra.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
Fonte: Valor Econômico
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