quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

30 anos do MST. Entrevista Raul Jungmann

“MST é autoritário e profundamente antidemocrático”

Por Roldão Arruda

O Movimento dos Sem-Terra (MST), que acaba de chegar aos trinta anos, surgiu como um braço da Igreja Católica, vinculado à Teologia da Libertação, e estruturou-se como um partido leninista, profundamente autoritário. Quem faz essa análise é o ex-ministro Raul Jungmann. Para ele, uma prova do caráter antidemocrático do MST seria o fato de ter à sua frente, há quase trinta anos, os mesmos líderes, entre eles João Pedro Stédile. “O movimento segue o exemplo dos antigos partidos comunistas”, afirma.

Jungmann é filiado ao PPS. Foi o articulador e principal responsável por questões fundiárias no País durante os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) na Presidência da República. Entre 1996 e 2002 chefiou o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o Ministério Extraordinário de Política Fundiária e, depois, o recém-criado Ministério do Desenvolvimento Agrário.

Foi durante sua gestão que o MST chegou ao auge de suas ações. Na mesma época também aconteceu o maior número de assentamentos da reforma agrária. Na entrevista abaixo, ele conta que Fernando Henrique não tinha intenção de realizar a quantidade de assentamentos que acabou acontecendo. A inflexão na política teria ocorrido com o Massacre de Eldorado de Carajás, em 1997, quando 19 sem-terra foram mortos em um trecho da rodovia que liga Marabá a Eldorado, no Pará.

Para o ex-ministro, o movimento vem perdendo força desde que o PT chegou ao poder.

O MST está completando trinta anos de existência. Como o senhor avalia esse movimento?
Para compreender o MST é preciso falar de três características que o acompanham desde que nasceu, na década de 1980, na Encruzilhada Natalino (RS). A primeira é que se trata de uma costela da Teologia da Libertação, com a sua leitura marxista da história.

Seria um braço da Igreja Católica?
Uma coisa fundamental para entender o MST – e da qual as pessoas não se dão conta – é o seguinte: a expansão capitalista no campo, com a mudança nas relações de produção, desestruturou a agricultura familiar, que abrigava o estoque da Igreja para a produção de padres e freiras. A única pesquisa já feita no Brasil sobre o local de origem dos padres mostra que o seu recrutamento é rural. Está concentrado na agricultura familiar e, sobretudo, na Região Sul, exatamente onde nasce o MST. O seu parto tem, portanto, de um lado a expansão da Teologia da Libertação; e, do outro, a expansão do hoje chamado agrobusiness, que desarticula a agricultura familiar e o estoque de recrutamento de padres.

Quais seriam as outras duas características às quais o senhor se referiu?
A segunda é que o MST surge ainda durante a ditadura militar, num momento de profunda desconfiança e rejeição das instituições. A institucionalidade política vigente na época era a da Arena e do MDB. O que o movimento apresenta, como contrapartida, é a ação direta, fora da instituições. A terceira característica é o afastamento de movimentos tradicionais do campo, como o sindicalismo, as cooperativas, associações. O MST nasce procurando um novo formato, o que resulta num movimento de esquerda camponês, quase um partido, com características da Igreja Católica. Enquanto anarquistas, comunistas, socialistas, socialdemocratas e outros sempre se autodenominaram laicos, o MST é um movimento de fundo confessional. Quem forma, informa e dá apoio logístico ao movimento, até hoje, é a Igreja.

E o Partido dos Trabalhadores?
Logo que surge, o PT passa a hegemonizar os movimentos sociais, entre eles o MST – que alcança seu apogeu com o crescimento do partido. Os dois crescem sobretudo no governo de José Sarney. Ainda sobre a organização interna do MST, é preciso dizer que ela ocorre em bases profundamente autoritárias. Até pouco tempo atrás, uma parte da direção do MST era mantida na clandestinidade. Segue o exemplo dos partidos comunistas, que, como forma de defesa, mantinham uma parte do comitê central na clandestinidade. No fundo, trata-se de uma organização profundamente antidemocrática.

Poderia explicar melhor?
O grupo que fundou o movimento, trinta anos atrás, permanece na direção até hoje. Ocorreram poucas variações. Você nunca viu, em jornal nenhum, qualquer notícia sobre congresso, votação, eleição, qualquer processo democrático interno do MST. Nunca viu e nunca vai ver, porque eles se organizam praticamente como um partido leninista e essa é uma de suas principais características. As centrais sindicais, como a CUT, quando fazem um congresso e trocam de diretoria fazem um carnaval, divulgam, mas nada disso ocorre com o MST. Permanecem fechados, autoritários e avessos a processos democráticos internos. Entendem, a exemplo dos antigos partidos comunistas, que estamos numa ditadura da burguesia e que não se pode fazer concessões em período de guerra.

Foi no governo de Fernando Henrique que as invasões de terra atingiram o seu auge. Como explica?
É o período também de ascenso do PT, quando se elege o governo de Fernando Henrique como principal adversário. É preciso lembrar também o simbolismo da tragédia, o martirológio alcançado com Eldorado dos Carajás, em 1997 – um episódio de violência extraordinária e, obviamente, inaceitável. Em seguida tudo foi emblematizado e glamourizado com aquela novela, O Rei do Gado, que tinha o Antonio Fagundes e a Patrícia Pilar entre os principais atores.

Nos movimentos populares é a época da bandeira contra o neoliberalismo, contra as privatizações.
É um momento de mudança, de inflexão no governo Fernando Henrique, com o enterro da grande ideologia nacional, o nacional-desenvolvimentismo, com as privatizações e tudo o mais. Tem um caldo, uma cultura fértil para o ascenso desses movimentos. A Igreja, os movimentos sociais, o PT passam por um período de ascenso ao confrontar o governo.

Para vários analistas o episódio mais decisivo foi Eldorado.
O episódio deu maior projeção nacional e internacional ao MST, que apareceu como a novidade no combate à desigualdades sociais. Depois que se resolveu o conflito distributivo da inflação no Brasil, o centro da arena política tem sido a questão da desigualdade social.

Concorda que o massacre deu força à bandeira da reforma agrária?
Fernando Henrique dizia que a reforma agrária não gera impasse – e que tudo aquilo que não gera impasse não é prioritário em termos de agenda. Mas o tema foi recolocado na agenda, com o MST tendo apoio logístico da Igreja.

O que muda com a chegada do PT ao poder?
Abre-se um período de crise na história do MST. Em primeiro lugar porque desaparece o grande inimigo, aquele que aglutina, que causa coesão, emblematiza todos os problemas, o grande Satã, até mesmo dentro de uma visão religiosa, demonológica, que era o governo neoliberal. E agora? O que o movimento vai fazer? Pressionar o seu próprio poder? O MST não sabe como enfrentar essa crise. O segundo problema que surge com a ascensão do PT é a expansão das bolsas, como as do Programa Bolsa Família.

Por que?
Ela representam uma alternativa à ação do MST e o esvaziamento dos seus estoques, de sua capacidade de arregimentação. Há um terceiro problema com a chegada do PT ao poder, que é o processo de cooptação que vai se dando, com dinheiro e o aparelhamento do movimento social. Isso amortece o MST. Ele perde o seu húmus e o sentido. O que se vê hoje é o seu esgotamento. Ele não pode atacar o PT, porque isso beneficiaria o outro lado, que ele detesta. Prefere ficar com o PT, que abre o Estado para ele, num grande processo de cooptação. Há que se notar também que a Igreja passou por um processo de redirecionamento, de diferenciação com o MST. Aquela simbiose com o movimento não desapareceu, mas diminuiu muito.

Acha que a questão da reforma agrária, que era uma das principais bandeiras sociais na década de 1960, faz sentido na atual conjuntura?
Na década de 1960 não se podia organizar um projeto para o Brasil sem passar pela reforma agrária, sem romper com o latifúndio e liberar mão de obra para reduzir o custo da mão de obra no processo da industrialização. Também era preciso reduzir o latifúndio para liberar terras para a produção de alimentos e baixar os seus preços. Não é a situação de agora. O Brasil se transformou numa potência mundial, não tem crise de alimentação, a industrialização está dada, o agrobusiness, com a revolução verde, está aí. A questão que fica é: para quê reforma agrária?

O MST enfatiza a questão da produção de alimentos e afirma que o agronegócio só se preocupa com a produção de grãos.
Todos sabemos que a agricultura familiar é fundamental para a produção de alimentos. Mas esse segmento passou a ser coadjutor em relação ao grande capital. Isso significa que vamos comer grãos? Não, idiota. A questão é que a produção de grãos representa a possibilidade de divisas para o País.

Fonte: O Estado de S. Paulo

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