Há exatos 30 anos, capital paranaense realizava o primeiro grande comício das Diretas Já. Movimento não conseguiu emplacar a emenda para viabilizar eleição para presidente, mas enfraqueceu ainda mais o regime militar
Rogerio Waldrigues Galindo
O ano de 1984 começou com a certeza de que a ditadura instalada no Brasil 20 anos antes estava à beira do fim. Mas ainda havia dúvidas: como e quando a democracia voltaria? E um problema mais imediato: quem escolheria o próximo presidente, responsável pela transição? Os militares e o PDS, partido herdeiro da Arena no apoio ao regime, defendiam escolha indireta, via colégio eleitoral. A oposição resolveu sair às ruas para pedir que se restituísse o direito ao voto imediatamente. “Diretas Já” era o que se exigia. E a primeira vez em que o grito se fez ouvir foi em Curitiba, há exatos 30 anos, no 12 de janeiro de 1984.
Três décadas depois, a importância do movimento iniciado pelo comício da Boca Maldita é clara. Sabe-se que a campanha pelas diretas se transformou em um dos grandes marcos cívicos da República, principalmente pela mobilização de multidões nas principais praças do país. A pressão popular, incentivada pelo PMDB e por outros partidos de oposição, não conseguiu fazer com que o Congresso aprovasse a emenda Dante de Oliveira, que viabilizaria as eleições diretas para presidente. Mas foi fundamental para enfraquecer ainda mais o regime e para sepultá-lo poucos anos depois.
Tensão e festa
No entanto, até o início da noite de 12 de janeiro, quando o povo começou a se juntar perto da Praça Osório, era difícil saber o que se seguiria. Não havia quem arriscasse dizer que o comício seria um sucesso. Curitiba, que nunca foi conhecida pela participação política, estava esvaziada pelas férias. E a população, que não tivera liberdade para se manifestar por duas décadas, lia nos jornais notícias de que, se houvesse quebradeiras ou tumultos nos comícios, haveria risco inclusive de retrocesso na redemocratização que já estava em curso. Falava-se inclusive em Estado de Sítio.
Mas, quando a praça começou a encher e os gritos se elevaram, houve alívio dos organizadores: havia interessados em apoiar a causa. E gente feliz por poder se manifestar daquele jeito.
“O que mais marcava era a emoção das pessoas, a alegria estampada no rosto”, diz o fotógrafo Carlos Ruggi, que rodou calçadão da Rua XV em busca de imagens da noite histórica para o jornal O Estado de S. Paulo. Experiente na cobertura política, ele conta que até quem estava lá por outros motivos se impressionou com a manifestação. “A gente sabia quem eram os P2 [serviço reservado da PM], que iam às manifestações para informar o governo. Um deles, no meio da noite, passou por mim e elogiou o comício. ‘Bonita manifestação’, ele falou para mim”, conta o fotógrafo. Rubens Vandresen, fotógrafo da Gazeta do Povo, diz que as pessoas sabiam estar presentes em um evento histórico.
Publicitário responsável por criar a campanha das Diretas Já e os filmes que convocaram a população para o comício, Ernani Buchmann lembra que havia receio de que tudo pudesse dar errado. “Quando bota um general no palácio, o povo imediatamente fica com medo. E imaginamos que podia ir pouca gente porque tivemos só 12 dias para organizar tudo. Mas, quando começou, subi no Hotel Braz e vi a cena: havia gente até depois da Travessa Oliveira Belo”, diz.
Disputa numérica
O número de presentes ao comício foi uma das grandes disputas nos dias seguintes. Havia quem falasse em 60 mil manifestantes. Outros, que só havia 10 mil. De qualquer jeito, era uma pequena multidão que só se via na cidade em Atletibas, diz Ruggi. O PDS, tentando desmerecer a manifestação, dizia que boa parte havia sido trazida a soldo pelo PMDB em caravanas saídas do interior. E um editorial do jornal O Estado do Paraná dizia que, mesmo se houvesse 40 mil pessoas, o número desmentia Ulysses Guimarães, o símbolo das Diretas. Como podia Ulysses dizer que 90% da população era favorável às Diretas se só 3% dos curitibanos foram às ruas?
Ulysses, que fez o discurso mais importante da noite, comemorou não só a presença da multidão, mas a calmaria do comício, que foi protegido por 3,5 mil policiais do governo paranaense, na época nas mãos do próprio PMDB. “Quando se dizia por aí – as corujas agourentas – de que isso era subversão, desordem e que iria ocorrer depredações, nós verificamos que não ocorreu qualquer incidente. Eu quero dizer que foi numa festa”, disse Ulysses, segundo relato da Gazeta do Povo. E a festa estava apenas começando.
Peemedebistas dominaram o comício
O comício de Curitiba foi organizado às pressas. A reunião em que Ulysses Guimarães definiu que a cidade seria a primeira a receber o evento ocorreu em dezembro. Nas duas primeiras semanas de 84, houve tempo apenas para fazer o máximo de contatos possível e arranjar gente que se dispusesse a subir no palanque. De fora, vieram o próprio Ulysses, Tancredo Neves e o governador de São Paulo, Franco Montoro. Das autoridades locais, o mais reticente foi o governador José Richa, que só teria ido à Boca Maldita depois de receber a informação de que o calçadão estava cheio. Ele temia um retumbante fracasso de público.
Os primeiros artistas no palanque foram Beth Mendes, Ruth Escobar, Dina Sfat e o locutor Osmar Santos. “Precisava ter alguém com pulso para fazer a locução. Ele agradou tanto que virou o locutor oficial da campanha”, conta o senador Alvaro Dias. Outros nomes nacionais que depois entraram na campanha – como Lula, Leonel Brizola, Fernando Henrique Cardoso, Fafá de Belém e Cristiane Torloni – não vieram a Curitiba.
Na Boca Maldita, quem fez o discurso mais importante, na avaliação da jornalista Elza Aparecida de Oliveira Filha, foi Ulysses Guimarães. “Era um discurso mais intelectualizado, que talvez não comovesse as pessoas como o de outros políticos. Mas foi importante ver Ulysses falar da importância não só das Diretas, mas de uma Constituinte e da volta da democracia”, diz ela.
Por que Curitiba?
Há mais de uma versão sobre o motivo de Curitiba ter sido escolhida para o primeiro comício das Diretas Já:
Cidade-teste
Segundo o senador Alvaro Dias, Ulysses Guimarães pediu a ele que organizasse a manifestação porque já havia a ideia de que a cidade era um “mercado teste”. No dia seguinte ao comício, Alvaro citou uma frase de Caetano Veloso aos jornais, dizendo que “se Curitiba aprova, o Brasil delira”.
Segunda opção
Ernani Buchmann, encarregado da campanha publicitária do comício, diz que a ideia era que o evento ocorresse em algum estado governado pela oposição. Franco Montoro, governador de São Paulo, não quis fazer o primeiro. O Paraná, único estado do Sul nas mãos do PMDB, ficou com o encargo.
Reação do regime
De acordo com a jornalista Elza Aparecida de Oliveira Filha, na época correspondente em Curitiba do jornal O Globo, dizia-se que a cidade foi escolhida por estar fora do eixo Rio-São Paulo, para testar a reação do regime ao movimento. “Havia receio e muita boataria sobre como o governo podia reagir.”
Comemoração
Exposição na Boca Maldita relembra a manifestação histórica
A prefeitura de Curitiba organizou uma exposição na Boca Maldita para lembrar os 30 anos do primeiro comício das Diretas Já. Os visitantes poderão entrar em um ônibus biarticulado colocado na Rua XV de Novembro e ver fotos da época. A mostra será aberta neste domingo e poderá ser visitada até o próximo dia 23. A exposição fica aberta das 11 às 21 horas e haverá monitores até as 17 horas. Outra comemoração das três décadas do evento ocorre no Facebook. O jornalista Eduardo Sganzerla, que em 1984 cobriu as Diretas para o jornal Folha de S.Paulo, criou um grupo para relembrar os fatos. “Foi um período muito importante para todos nós, e a ideia é reacender as memórias”, diz. O grupo “Diretas Já – 30 anos” conta com reproduções de jornais da época, charges e fotos históricas
Fonte Gazeta do Povo (PR)
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