• Farta da polarização entre PT e PSDB, parte da sociedade civil que se manifestou nas ruas parece esperar pela abertura de canais de diálogo mais ágeis com o Estado
Wagner Iglecias - Alias / O Estado de S. Paulo
O sistema político brasileiro tem uma arquitetura complexa. Combina um modelo presidencialista, que concentra bastante poder nas mãos do Executivo, com um Legislativo bicameral, formado por um Senado escolhido através do voto majoritário e por uma Câmara de Deputados eleita pelo voto proporcional. Câmara cuja composição não representa, exatamente, a distribuição da população pelo território e que é formada a partir de coligações partidárias e cálculos de coeficiente eleitoral que são incompreensíveis ao cidadão comum.
Nosso sistema político é marcado também por um arranjo federativo no qual os governadores têm influência considerável, inclusive junto às bancadas de seus respectivos estados no Congresso. E é caracterizado ainda por um modelo pluripartidário, formado por algumas poucas legendas de peso e uma grande quantidade de pequenos partidos, conformando uma constelação de agremiações cujas diferenças, aos olhos dos eleitores, são quase inexistentes. Para completar, as relações entre os Três Poderes muitas vezes são turbulentas, o que faz com que as atribuições clássicas de cada um deles acabem sendo atropeladas pela iniciativa dos demais.
Em meio a este panorama complicado e, na visão de tantos brasileiros, confuso, ao menos uma tendência parece se consolidar nas últimas décadas: a polarização, entre dois partidos, da disputa pela Presidência da República. De fato, já vai longe a eleição de 1989, a primeira após a redemocratização, na qual 22 candidatos disputaram a preferência do eleitor. Naquela ocasião dois azarões no começo da campanha, Collor e Lula, somaram em 1º turno cerca de 45% dos votos e qualificaram-se para a disputa final. De 1994 em diante a polarização sempre se deu entre PSDB e PT, que desde então têm se consolidado como nossos dois únicos partidos competitivos em termos de eleição presidencial. Naquele ano, Fernando Henrique Cardoso e Lula somaram 81% dos votos. Em 1998 foram candidatos novamente, perfazendo juntos cerca de 85% dos votos. Em 2002, quando Lula saiu vitorioso, ele e José Serra alcançaram juntos, no 1º turno, 70% dos votos, cabendo a Anthony Garotinho e Ciro Gomes cerca de 18% e 12%, respectivamente. Em 2006, com Lula se reelegendo, ele e Alckmin somaram, já no 1º turno, cerca de 90% dos votos. E, em 2010, Dilma Rousseff e José Serra tiveram juntos quase 80% dos votos, cabendo a Marina Silva pouco mais de 19%.
Muitos analistas têm dito que a sociedade brasileira talvez esteja esboçando certo cansaço com essa polarização, e que a expressiva votação de Marina seria uma sinalização disso. Será? As pesquisas de intenção de voto recentemente divulgadas parecem apontar para a repetição da disputa entre os dois partidos que comandaram o País nos últimos vinte anos. Muita gente vê os governos de tucanos e petistas quase que como uma continuidade, com a manutenção dos principais pilares da política econômica inaugurada em meados da década de 1990 e a ampliação e o aprofundamento das políticas de inclusão social e bem-estar, a partir dos anos 2000. Mas há quem discorde, apontando distinções importantes em relação à visão que PT e PSDB têm, por exemplo, sobre o Estado e o mercado no tocante ao desenvolvimento econômico, sobre o modelo de inserção do Brasil no cenário internacional e sobre o alcance das políticas sociais, se mais universais ou mais focalizadas.
Em meio a esse cenário de continuidades e alterações de rumo vivido pelo País nas duas últimas décadas, a chapa presidencial de Eduardo Campos e Marina Silva tem buscado se posicionar – a partir do discurso de que os dezesseis anos de FHC e Lula foram virtuosos, mas que durante o governo Dilma o País teria caminhado menos do que poderia. Aliados a algumas lideranças políticas tradicionais e de perfil conservador, Campos e Marina têm feito reiterados acenos ao setor empresarial, e seus principais gurus econômicos não diferem muito daqueles de Aécio Neves (PSDB). Os mesmos que pregam ajuste fiscal e medidas amargas a partir de 2015.
Ocorre que uma parte da sociedade brasileira, se realmente não se vê mais representada pelo nosso sistema político e se mostra farta também da polaridade entre petistas e tucanos, talvez não veja nos governos de FHC e Lula uma continuidade assim tão virtuosa. Assim como talvez não aspire a uma terceira via eleitoral que se cerque de antigas figuras da política, e tampouco que se paute por uma gestão econômica tecnocrática e insulada, cujas prioridades possam resultar em cortes de gastos públicos, sobretudo na área social. Pelo contrário, os brasileiros que têm ido às ruas, especialmente a juventude, parecem esperar pela abertura de mais e mais ágeis canais de diálogo entre Estado e sociedade, e também por políticas públicas mais abrangentes e de melhor qualidade.
Aparentemente bastante ocupados em montar palanques estaduais que lhes confiram apoio político em todo o País e acertar fontes de financiamento de uma dura e cara campanha presidencial, Campos e Marina podem estar perdendo a oportunidade de falar àqueles setores descontentes do eleitorado e, quem sabe, vocalizar suas demandas. O tempo urge, e talvez em breve a candidatura, a primeira vista tão interessante para diversificar e oxigenar o debate político que PSDB e PT fazem há duas décadas, pode vir a ser apenas mais um ensaio malogrado de ruptura com aquela polarização.
Wagner Iglecias é doutor em Sociologia e professor da Escolha de Artes, Ciências e Humanidades da USP
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