• Para mandar no futebol, Cristina fez pacto com cartolas
Valor Econômico
É difícil encontrar um exemplo mais acabado de intervencionismo estatal em uma democracia do que a Argentina. A fragilidade institucional do país vizinho já foi exaustivamente discutida, mas há uma esfera no país vizinho em que o poder público pactua, negocia a entrega e o recebimento de apoio, mas não se assenhora de seu comando. Entre o peronismo e o futebol, há uma aliança para a perpetuação mútua de suas cadeias de comando, que não envolve subordinação de parte a parte.
Cristina Kirchner não enfrentou a vaia quase certa de seus compatriotas no Maracanã no domingo. A presidente argentina, tradicionalmente, só aparece em público para plateias cuidadosamente controladas, como era o caso da recepção ontem na sede da Associação de Futebol Argentino (AFA), em Ezeiza, na região metropolitana de Buenos Aires, onde a presidente proclamou que para ela a Argentina "ganhou a partida".
A seleção vice-campeã do mundo obteve a sua melhor performance nos gramados desde 1986, invicta no tempo regulamentar de cada jogo, mas a boa relação entre o governo e a cartolagem argentina é antiga, assim como não é nova, nem decorrente do péssimo desempenho nos gramados da seleção brasileira, a indisposição do governo da presidente Dilma Rousseff com a CBF.
Há um marco emblemático deste pacto de aço: 11 de agosto de 2009, quando o governo argentino anunciou o programa Futebol para Todos. A iniciativa é tema do livro "A Política dos Gols", editado este ano, que mostra na capa uma imagem de Cristina chutando a bola para o leitor. "O governo e a AFA se tornaram sócios estratégicos no uso de uma engrenagem política", afirmou o co-autor do livro, o jornalista esportivo David Cayón.
A AFA é comandada desde 1979 por Julio Grondona, vice-presidente da Fifa. Em 1991, Grondona encerrou a era da transmissão do futebol argentino pela rede de TV aberta. Garantiu exclusividade do campeonato para o conglomerado de mídia Clarín, dono do canal pago TyC. Dezoito anos depois, com os clubes argentinos em péssima situação financeira, Grondona e o Clarín começaram a negociar um aumento do valor do contrato.
Neste instante entrou em cena o kirchnerismo, que havia rompido com o Clarín no ano anterior. Grondona, do dia para a noite, transferiu o televisionamento para o governo, que passou a transmitir os jogos gratuitamente para a população pela TV pública. Em troca, passou a receber o dobro pelos direitos do que o Clarín pagava. Desde então, pelas contas de Cayón, a Casa Rosada já teria pago 7 bilhões de pesos argentinos para a AFA, algo como US$ 860 milhões pela taxa oficial de ontem. Os dividendos políticos foram mais do que compensadores.
"O governo garante não só audiência em um horário nobre, como controla a publicidade veiculada no evento. Durante a transmissão, os torcedores são informados sobre como Cristina está fazendo mais escolas e casas populares", comentou Cayón.
O uso do futebol como propaganda vai um pouco além disso: não se trata apenas de divulgar os feitos do governo, ou de fomentar o culto à imagem de figuras queridas ao sistema, batizando o primeiro e o segundo turno da competição com nomes como "torneio presidente Nestor Kirchner", ou "torneio Evita Perón".
A ofensiva também envolve atacar os adversários. Algo que foi feito na própria cerimônia de lançamento do programa, quando, ao lado de Grondona e do ex-jogador Diego Maradona, Cristina afirmou que a iniciativa punha fim ao "sequestro dos jogos" por parte de um ente privado, em um ataque ao Clarín que era alusão óbvia ao regime militar dos anos 70.
Em 2012, uma greve dos metroviários em Buenos Aires colocou o prefeito oposicionista da cidade, Mauricio Macri, em confronto com o governo. Macri foi responsabilizado pela paralisação em um anúncio do governo veiculado durante a transmissão de um jogo. A mesma arma foi usada contra o governador de Córdoba, José Manuel de la Sota, que brigava por financiamento ao seu sistema previdenciário.
"O monopólio da publicidade está sendo usado mesmo na transmissão de competições que não são organizadas pela AFA, como a Copa do Brasil", disse Cayón. Apesar de receber recursos públicos, uma diferença importante em relação à CBF, a AFA não tem suas contas auditadas. Passa pela entidade os repasses aos clubes dos direitos de transmissão, principal fonte de sobrevivência das equipes argentinas.
Existem nos clubes argentinos cartolas governistas, como o senador Alberto Fernández, do Quilmes; ou oposicionistas, como o sindicalista Hugo Moyano, recém-eleito presidente do Independiente. O principal comunicador do país, Marcelo Tinelli, uma espécie de Silvio Santos argentino, comanda o San Lorenzo, e Macri se lançou na política ao tomar o controle do Boca Juniors. Mas Grondona reina sem adversários desde os tempos da presidência de Videla. "Seu poder tem origem fora da Argentina e ninguém jamais conseguiu confrontá-lo daqui. Trata-se de um integrante da cúpula da Fifa", explica Cayón.
No Brasil, Ricardo Teixeira perdeu a presidência da CBF em 2012 exatamente ao ser atacado de fora para dentro. O cartola brasileiro resistiu durante mais de uma década a um bombardeio de denúncias de irregularidades na trincheira doméstica. Afastou-se da linha de frente de seu império quando o presidente da Fifa, Joseph Blatter, lhe soltou a mão. O fato de ter uma relação ruim com o ministro dos Esportes, Aldo Rebelo, e com a própria presidente decerto o fragilizou, mas parece ter sido o fator secundário em sua saída de cena.
Não há mais um Grondona no Brasil e nem um governo hiperpresidencialista como o de Cristina. Mas a CBF já providenciou sua sucessão, enquanto no governo brasileiro as gestões por uma reforma do futebol são apenas mais um lance de uma campanha. Talvez por isso, com a tranquilidade de quem sabe onde estará em 2015, o presidente eleito da CBF, Marco Polo del Nero, tenha dito em entrevista o "Estado de S.Paulo" na sexta-feira de que o interesse do governo em relação ao tema é bem vindo, mas "dentro de limites".
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